O Natal da parentada

[Carlos Castelo]

 

– Bota mais uma tacinha de cidra pra dona Gertudes!

 – Tá na mão, depois passa a garrafa pro Genésio.

 – Faltam dois minutos, bora brindar, gente!

 – Não bate os copos antes, dá azar.

 – Nena e Zequinha, fiquem junto da gente que, daqui a pouco, Papai Noel chega.

 – Cadê o seu Honorato e a Wanda, precisa estar todo mundo na mesa.

 – Na cozinha, a Wanda está dando os últimos retoques no peru.

 – No peru de quem?

 – Cala a boca, Fonseca, toda vez que bebe é esse palavreado tosco.

 – Doralice, deixa o celular no jeito pra fazer a selfie!

 – Olha aí, 11 e 59!

 – 5, 4, 3, 2, 1 e…

 – Feliz Naaaatal!!!

Para o deslumbramento, não só das crianças, o forro da sala se abriu e dali surgiu Papai Noel, se equilibrando numa corda. Cotinha foi a primeira a perceber a “novidade” no morador da Lapônia e berrou:

– Que palhaçada é essa?

Amâncio, travestido de Bom Velhinho, resolvera colocar um pouco de ideologia na tradicional personagem: em vez de vermelho e branco veio trajado de verde e amarelo – inclusive na barba postiça.

Estabelecia-se a polarização e a consequente discórdia na ceia.

– Tava demorando pra começar a baixaria política.

 – Pelo amor de Deus, gente, isso é uma confraternização…

O Papai Noel patriota ignorou os reclamos. Abriu seu saco verde-amarelo e começou a distribuir os mimos para a garotada. Para as meninas; minibíblias; para os garotos, revólveres de brinquedo. Da ponta da mesa, Zezé protestou:

– Pra mim, o Papai Noel passou dos limites.

Foi apoiado por um coro de parentes:

– Sai fora, velho fascista!

Em meio à turba, uma fatia do pavê preparado pela senhora do doutor Campos envolveu a cara de Amâncio. Ele caiu sentado para risos gerais. Muito rapidamente foi amparado pelas criancinhas, que choravam, assustadas, e pela ala à direita da árvore de Natal.

O líder dos que ficaram ao lado de Papai Noel era o sargento Venâncio, da PM, casado com a Geraldina, do armarinho.

– Eu quero ver alguém encostar a mão nesse que é um símbolo da família e da pátria! – disse o militar.

Tio Renê, o mais gozador da parentada, aproveitou o momento em que Amâncio se erguia do piso, e passou a mão em sua bunda.

– Óóóóóóóó! –  horrorizaram-se os verde-amarelos. Dona Flor puxou o Hino Nacional. A vaia e os apupos tiveram início à esquerda da árvore natalina. Os nacionalistas respondiam à altura:

– Desrespeito! 

 – Comunismo!

 – Vão pra Cuba!

Garrafas de vinho, latas de cerveja, rabanadas e até uma cabeça de leitoa voavam pelo ambiente. Comadre Santina, politicamente neutra, aproveitou a deflagração para puxar os cabelos de tia Lurdes, que lhe tomara um noivo em 1987.

No apogeu do charivari, o sargento disparou o Taurus 38 para o alto. Todos se lançaram ao chão. O milico deu a palavra final:

– Tá todo mundo em cana! É intervenção militar, porra!

Foram necessários quatro camburões para conduzir todos os comensais à delegacia do bairro. A sorte foi que o Itagiba, amásio da Eneida, é advogado e entrou com o habeas-corpus. Ainda conseguiram passar o Ano Bom em casa. Só que cada um em seu quadrado.

(Publicado no Estadão)