O nascimento de Lindoia
Por Washington Ramos Em: 11/05/2024, às 13H20
O NASCIMENTO DE LINDOIA
Lindoia nasceu numa coroa do rio Parnaíba, num fim de tarde de junho. Marina, sua mãe, com o barrigão no pé da goela, tinha ido assistir a uma partida de vôlei na coroa em frente ao Troca-Troca. Foi contra a vontade de todos em casa, seu pai, sua mãe, sua cunhada, seu irmão. Todos disseram que ela não fosse. Mas ela teimou e foi. Já estava até sentindo algumas contrações e leves dores. Mas foi. Foi contra até mesmo a própria lógica médica, pois, na última consulta com o obstetra, ele lhe dissera que, logo nas primeiras contrações e dores, ela o procurasse. Silenciosamente, dizia a si mesma que queria ver seu marido jogando e sentir a brisa no meio do rio. Ele, antes de sair de casa, pediu que ela não fosse. Não houve jeito, ela foi. Sua mãe, muito preocupada, se calou para não contrariar a filha, causar uma briga e talvez provocar um aborto espontâneo, mas, intimamente sorrindo, a chamava de louca.
Morava na rua Álvaro Mendes, a uns 300 metros do Parnaíba. Saiu de casa na companhia de Rejane, que se recusou terminantemente a deixá-la ir sozinha. Tomaram uma barca no cais do Troca-Troca e atravessaram para a grande faixa de areia no meio do rio, que faz parte do quarteto Teresina-água-areia-água-Timon.
Quando a barca encostou no improvisado píer de madeira, as duas mulheres, com as chinelas na mão, pisaram a tábua e depois a areia ainda um pouco úmida, pois fazia pouco tempo que o inverno teminara. Tinha sido intenso, e a areia ainda não estava 100% fofa. Marina retornou para a margem e pôs os pés na água: sentiu um gostoso arrepio. Sentiu vontade de tomar um banho ali mesmo com vestido e tudo. Deu alguns passos para dentro do rio, ficou com água nos joelhos. Veio-lhe uma forte vontade de urinar. Não resistiu e mijou ali mesmo, em pé. O jato desceu forte, quente, inundando a calcinha e descendo pelas coxas. Abaixou-se para lavar o vestido e a calcinha. Sentiu a fria maciez da água passando por seu corpo, inclusive pelo barrigão. Sentiu seu filho mexer-se. Já ia atirando-se para nadar quando Rejane chegou e puxou-a pelo braço. “Marina, mulher, tu tá doida?” “Quero nadar um pouco, Rejane.” “Não, de jeito nenhum! Essa correnteza pode te levar. Eu não deixo, anda, vamos para o seco.”
Rodrigo chegou e foi logo dizendo:
- Eu pedi pra Você não vir pra cá, sua louca, teimosa!
- Todo mundo em casa pediu também, Rodrigo, mas não teve jeito, ela teimou e veio – disse Rejane.
- Tá bom, tá bom! Chega de tanta reclamação de Vocês dois!
- Volte pra casa, Marina! – Rodrigo pediu.
- Não! Quero ficar aqui. Vim pra te ver jogar, mas tu me recebe me chamando de louca, então vou me deitar na areia e cochilar um pouco. Pode voltar pro teu vôlei.
- Tudo bem, mas vai te deitar lá mais para o meio da coroa, pois aqui a areia ainda está muito úmida e pode te fazer mal, e cuidado para uma bola não bater em tua barriga.
- Tá, pode deixar; vamos, Rejane.
Dirigiram-se para além do meio da coroa, aonde a bola não podia chegar com força, mas de lá se ouviam os gritos dos jogadores: bloqueia, saca, levanta...
Marina não se incomodou com o vestido e a calcinha molhados, se deitou na areia e fechou os olhos. Rejane ficou sentada, brincando com a areia, fazendo montículos.
Marina começou a se lembrar das aulas de literatura no Liceu Piauiense, onde seu professor gostava de declamar poemas que empolgavam a turma. Navio Negreiro, Canção do Exílio e vários outros textos eram recitados entusiasticamente. Mas aquele em que o mestre mais se exaltava era o episódio da morte de Lindoia, de O Uraguai. Ele caprichava no verso final: “Tanto era bela no seu rosto a morte.” Marina não gostava desse desfecho. Sentia um arrepio quando o ouvia. Mas se encantava com o nome Lindoia. Gostava e ainda gosta muito dele. Um dia, após uma aula, prometeu a si mesma que, se um dia tivesse uma filha, daria a ela esse nome. Admirava também a coragem de Lindoia em preferir se matar a se casar com um homem que ela não admirava. Via, nesse gesto extremo de Lindoia, a fidelidade a seu sempre amado Cacambo. “Rejane, estou ouvindo som de oboé vindo do céu, vindo de lá de depois da ponte metálica, entre Piauí e Maranhão, mas bem no meio do rio, mas lá em cima. É tão suave, tão bonito e vem vindo em nosso rumo. Chegou. Parece que está deslizando em minha barriga. É sinal de que esse som, Rejane?” “É sinal de que estás delirando, Marina. Vamos pra casa.” “Não quero ir pra casa, Rejane.” “Mas tens que ir; de repente, as contrações podem começar; já estás bem perto de completar nove meses de gravidez. Ou já completou?” “Completa depois de amanhã, Rejane.” “Pois então, vamos pra casa, dois dias não fazem diferença nenhuma.” “Não quero ir agora. Me ajuda, Rejane. Nunca fui de pedir pra comer coisas estranhas durante minha gravidez. Uma amiga minha pediu pra comer toucinho assado na brasa, mas fez questão de ver o toucinho chiando sobre o braseiro. Fechou os olhos e ficou ouvindo o som e sentindo o cheiro. Outra pediu pra comer feijão vermelho amassado com rapadura, mas ela mesma fez questão de raspar a rapadura e amassar com o feijão. Dizem que nessa mistura falta apenas um grau para se tornar venenosa. A única coisa estranha que faço é vir pra esta coroa. Olha, Rejane, tem um líquido descendo aqui. Eita, Marina, é tua bolsa que rompeu. E agora!? Está doendo muito, Rejane. Vou tirar a calcinha. Parece que meu filho já vai nascer. Ele tá mexendo muito. Ai!!! Me ajuda, Rejane! Ai!!! Estou te ajudando, sim! Fica deitada, Marina! Isso, assim, vai! Eita, Marina, a cabecinha da criança já começa a sair! Te levanta mais, Marina! A cabecinha dele já está quase batendo na areia. Eita! Bateu. Mas já estou aparando ele, Marina. É uma menina, Marina. Pega, segura. Marina segurou sua filha e, mesmo vendo um pouco de areia na cabeça, percebeu o quanto era bela no rosto de sua filha a vida. “Anda, minha filhinha, pega, lambe e mama este seio direito, pois és a primeira pessoa a sugar meus seios. Homem nenhum jamais sequer pegou neles, nem mesmo teu pai. Foram sempre reservados para ti, minha linda menina.”