O lirismo encantatório de Rita Santana
Por Décio Torres Cruz Em: 18/05/2024, às 13H07
O lirismo encantatório de Rita Santana
Décio Torres Cruz*
A atriz, escritora e professora Rita Santana acaba de lançar seu novo livro de poemas Borrasca (2024) pela Editora Villa Olívia. Nascida em Ilhéus, a autora possui uma história dividida entre o teatro, cinema, televisão, literatura, história, o ensino, e uma carreira exitosa de publicações. Graduada em Letras pela Universidade Estadual de Santa Cruz, a autora ganhou o Prêmio Braskem de Cultura e Arte para autores inéditos com o livro de contos Tramela (2004). A partir daí, enveredou pela poesia com Tratado das Veias (Letras da Bahia, 2006) Alforrias (Editus, 2012), e Cortesanias (Caramurê, 2019), iniciando um périplo por festivais e bienais, tendo participado do Festival Internacional de Poesia de Buenos Aires (2019) e da Bienal do Livro da Bahia (2022 e 2024). Em março deste ano, lançou Borrasca pela Villa Olívia e participou da coletânea Eros sobre os Abismos, publicado pela P55. Inaugurando a série de entrevistas desta coluna, a poetatriz fala sobre seus livros e sobre a experiência deste ser fragmentado entre diferentes artes e áreas distintas.
Entre prosa e verso entrevista Rita Santana
- Em sua carreira multifacetada, com qual arte ou área você mais se identifica?
Meus interesses e minha atuação se fundem na literatura que escrevo e, quando atuo, levo o conhecimento para a criação das personagens. A história é uma área pela qual tenho paixão, mas não tenho formação. Fiz uma especialização em Cultura e História Afro-brasileira para colaborar com a minha atuação em sala de aula e para a minha composição pessoal como uma mulher negra. Foi muito importante aquela experiência de estudos. Gosto muito de pensar que umas disciplinas que fiz como aluna especial do Mestrado em Letras na UFBA também colaborou bastante com a minha forma de pensar; eram professoras especiais, Ívia Alves e Fátima Ribeiro, mestras e amigas queridas que trago comigo sempre. O teatro vem de Ilhéus, da juventude ainda no Ensino Médio e depois a formação de grupos que atuaram na cidade e ocuparam espaços em festivais pelo interior do estado e na capital. O próprio contato com Poetas da Praça foi proporcionado pela atuação do Caras e Máscaras, o grupo que mais resistiu. A atuação de uma atriz negra no meu tempo de juventude era muito difícil porque ficávamos muito dependentes de produções de fora que nos subutilizavam. Espero poder atuar agora na maturidade, mas já não sou aquela jovem que corria atrás de testes e se lançava ao mercado e suas possibilidades. A literatura me deu um conforto de atuar em casa, através de leituras, pesquisas e na elaboração do meu próprio discurso, num campo de atuação em que eu posso gerir o tempo, a produção e os desejos. Adoro o desafio da atuação, mas é imprescindível escrever. Posso viver sem o palco, mas não posso viver sem labutar com palavras e acredito que a atriz encontra na escrita uma forma especial de existir.
- Você atuou nos palcos, no cinema e na televisão sob a tutela de grandes diretores nacionais. Sentiu alguma diferença em termos de exigências para o trabalho de atriz a depender da modalidade e do meio? Com qual desses ambientes você se sentiu mais realizada como atriz?
Fiz pequenas personagens no cinema. Fazer a personagem Flor tão jovem e ser dirigida por Luiz Fernando Carvalho, contracenar com atores tão jovens e talentosos foi uma experiência fabulosa porque havia tempo e apuro para o nosso trabalho. Além de encontrarmos e contracenarmos com atores lendários, maduros, ícones da nossa dramaturgia. Walter Carvalho era o diretor de fotografia e sempre muito atento às sutilezas, em busca dos melhores ângulos, delicado. Tudo inesquecível e muito rico. A nossa pequena obra foi selecionada para compor o acervo do Museu da Imagem e Som devido ao primor daquele trabalho. Fizemos história! No teatro, a base foi muito bem firmada em Ilhéus com a audácia de jovens que criavam, através de colagens, os textos que seriam encenados, o que nos deu ferramentas de criação importantes; ganhei prêmio de melhor atriz em dois festivais importantes da região grapiúna, em 1994, Troféu Jupará e o Terra à Vista, como um espetáculo intimista e lírico montado com poemas de Drummond e Adélia Prado. Um espetáculo que me deu a exata noção do quanto a arte move vidas e transforma destinos; o público se encontrava no espetáculo e revelava decisões íntimas a partir do contato com os textos e as nossas interpretações. Éramos eu, Tereza Damásio e Jorge Batista no palco a Casa dos Artistas, que já não existe mais em Ilhéus, infelizmente. Em Salvador, a grande experiência foi no Teatro Vila Velha, com Márcio Meireles e um elenco poderoso, onde interpretei a Margarida de Fausto. Foi um grande desafio, uma grande aprendizagem. Fernando Fulco, Gustavo Mello, Chica Carelli e o elenco do Teatro dos Novos. Foi intenso! Ser dirigida por Márcio foi uma aprendizagem incrível. Ele é doce e acompanha cada noite de apresentação com observações, anotações, tudo muito de perto. É um mago do teatro brasileiro!
- Sua vida literária se inicia em 2004 com o livro de contos Tramela, ganhando o Prêmio Braskem de Cultura e Arte para autores inéditos. Recentemente, você publicou o conto “A mulher e o tigre” na antologia Eros sobre os abismos (P55, 2024). Fale um pouco sobre este conto e aqueles do livro Tramela e de que forma a contista de 2024 difere daquela de 2004.
Os contos de Tramela foram escritos na Faculdade de Letras da Uesc, a partir da leitura de Rumor Branco de Almeida Faria. Durante a leitura daquele livro senti que precisava escrever uma narrativa e que seria uma escrita profissional, importante. Além daquele livro, tivemos leituras de uma dramaturga portuguesa chamada Eduarda Dionísio, seu livro também me tocou profundamente. O primeiro conto foi Tramela e eu senti que deveria mostrá-lo para a minha professora-interlocutora Tica Simões e George Pellegrini, colega de amigo fiel, também escritor e artista. Daí, escrevi os outros contos que eram narrativas muito ligadas ao universo feminino, aos conflitos das relações amorosas que tinham a Região como cenário. Quando mudei para Salvador, escrevi alguns outros para completar o que seria o livro. “A Mulher e o Tigre” é um conto com uma estrutura formal específica para narrar a história de dois personagens que se amam em Salvador. A proposta para o livro, feita por Marcus Vinícius Rodrigues, era sexo na cidade. E eu trabalhei muito para apresentar um panorama da Salvador que me agrada, aquela Cidade Baixa, telúrica, interiorana e sedutora. Depois a Feira das Sete Portas que também é um portal para um outro tempo e um outro contexto. Foi um exercício árduo para que a linguagem fosse elaborada com elegância, sofisticação formal e o erotismo - tecido com canções também - funcionasse para contar a história. Aqui, há uma contista mais madura, mais velha e com necessidades mais rigorosas para criar um conto. Utilizo da religiosidade afro-brasileira e alguns dos seus arquétipos para criar minhas personagens.
- Em 2006, você lançou Tratado das Veias (poesia) pelo selo Letras da Bahia. Em 2012, foi a vez de Alforrias com temas que passeiam pela criação poética, negritude, africanidades, sexualidade, desejo, o ser mulher, deuses gregos e africanos, mitos pop e clássicos. O que mais te agrada nesses dois livros?
Alforrias é o livro mais amado pelos leitores ou o livro que tem leitores mais apaixonados. É impressionante como ele atinge, principalmente os jovens! O livro foi feito de uma forma muito mágica, pois os poemas surgiam pequenos, com uma imposição lírica liberta, erótica. O elementos identitários negros estavam muito presentes na minha própria experiência de leituras recentes da especialização que havia feito e leituras sempre atualizadas para o exercício em sala de aula, como professora regente. São poemas musicais que cativam o leitor. A arte do livro foi tramada por George Pellegrini, que era funcionário da Editus à época e a quem apresentei o livro. Tratado das Veias é uma experiência mais erótica e apresenta poemas que também seduziram de imediato os leitores. Ali, já sinto a necessidade de lidar com as artes plásticas. Foi aprovado pelo Selo Editorial Letras da Bahia e a capa é especial porque foi um ensaio feito por um fotógrafo amigo meu que reside em Maputo e naquelas praias ele buscou a imagem que representaria o livro. Chico Carneiro me deu um belíssimo presente.
- Depois de Alforrias, você partiu para Cortesanias (Caramurê, 2019), sempre com títulos curtos e bastante simbólicos. Discorra um pouco sobre este último.
Eu estava vivendo uma licença-prêmio e havia decidido que tomaria aqueles dias para trabalhar no próximo livro. O trabalho já existia, mas eu teria o tempo livre para uma dedicação mais plena. O editor da Caramurê, Fernando Oberlaender soube da minha escrita e resolveu me convidar para publicar com eles. De início, recusei porque o trabalho que eu estava realizando duraria muito tempo, mas depois aceitei o desafio porque me lançava numa vida mais concreta e prática. Foi saudável ousar e gosto muito do resultado que obtivemos ali. Há poemas muito especiais no livro. É um livro bonito.
- De lá para cá, você vem desenvolvendo um admirável passeio pela poesia, sem abandonar sua incursão pelo conto. Em seus livros, o leitor se depara com um lirismo encantatório que chega a doer na alma de tanta beleza. Fale sobre Borrasca (Villa Olívia, 2024), lançado recentemente, e como se processou sua criação. Você sente alguma mudança na temática e forma de sua escrita do primeiro livro ao atual?
Sim, Borrasca é o livro da mulher madura. É um livro pós-pandemia, pós processo político dolorido demais em todos os planos, inclusive o cotidiano das relações que foram atingidas pela polaridade política. Tudo isso nos transformou a todos inexoravelmente. E Borrasca é um projeto que surge pela necessidade de transformar toda aquela dor em alguma beleza. Chico Buarque me inspira com a palavra em sua música “Que tal um samba?”: Que tal uma beleza pura no fim da borrasca? Então, pensei na palavra borrasca e iniciei o primeiro poema do livro. Chico e Caetano lançaram discos que discorreram sobre o que passamos. Como artista, senti que também eu precisava expressar todo aquele turbilhão, mas sem que cair no panfletário. Gosto do dialogismo que estabeleço com minhas paixões na Literatura, no Cinema e nas Artes Plásticas. Na tentativa de entender o que fiz em Borrasca, estou lendo O Mapa de Desleitura de Harold Bloom e penso que foi uma intensa desleitura o que construí no livro. É um belo livro e o considero muito diferente dos demais e gosto muito desse processo distinto, sem me prender às velhas formas, sem repetir o já feito. Foi um voo mais livre, mais ousado. Foi uma artista que envelhece e que assume mais o seu discurso.
- E para encerrar, o que mais você gostaria de acrescentar para seus leitores?
Gostaria de salientar que a escrita de Borrasca me deu um grande prazer, pois o trabalho foi intenso, exaustivo na busca pela forma, pela sonoridade, e por uma síntese na busca pela palavra ideal. O resultado, em muitos poemas, me agrada muito. Criei um universo, através da provável desleitura, de intensidade e beleza cujo teor quero levar comigo para os próximos projetos. Uma responsabilidade estética ainda maior, mais palpável. Após Borrasca, o meu rigor estético tende a se acentuar. Sou ainda mais exigente com o objeto artístico que crio. Com tudo isso, reflexões em torno dos meios de produção do livro, o retorno financeiro, a crítica e como os espaços lidam com artistas que não são publicados por grandes editoras tornam-se mais agudas e intensas.
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A escritora e atriz Rita Santana
Quem quiser conhecer a poesia fascinante desta multiartista, todos os seus livros podem ser adquiridos nos sites das editoras e em lojas online da Amazon, Estante Virtual etc. Os pedidos de compras de Borrasca podem ser feitos diretamente no endereço da editora Villa Olivia: https://www.villaoliviaartes.com.br/. Alforrias encontra-se disponível para venda física ou pode ser lido gratuitamente no Repositório Institucional da Editora Editus da UESC, podendo ser acessado no seguinte endereço: http://www.uesc.br/editora/livrosdigitais2015/alforrias.pdf. Boa leitura!
* Décio Torres Cruz é membro da Academia de Letras da Bahia e da Academia Contemporânea de Letras de São Paulo. Autor, dentre outros, de A poesia da matemática (Caravana, 2024), Histórias roubadas (Penalux, 2022), e Paisagens interiores (Patuá, 2021).