(Miguel Carqueija)

Um famoso escritor de ficção científica, trabalhando em seu novo romance, recebe uma visita inesperada e pouco amigável.

O FANTASMA DA FICÇÃO CIENTÍFICA




    Pablo Hernández digitava furiosamente em seu micro, o capítulo 7 de sua novela “Esperma alienígena”:
    “... e aí Tim enterrou o seu punhal no ventre da andróide. Ela recuou, segurando as tripas que já começavam a extravasar, e olhou para ele, com os olhos brilhando de ódio:
    — Por que fez isso, filho da mãe? Olhe, você não vai conseguir que os Líderes fecundem as fêmeas da Terra... e nós temos que servir a eles, quer vocês queiram quer não...
    — Pois antes que os seus malditos amos façam isso, eu vou acabar com a sua maldita vida!
    Avançou, trêmulo de cólera, e erguendo o punhal visou a carótida da andróide...”
    PUF!
    A tela se apagou subitamente e voltou a se acender. Pablo se assustou, mas o seu susto foi ainda maior quando apareceu no monitor a figura do robô de “Perdidos no Espaço”:
    — O que é isso?
    — PERIGO, PERIGO — disse a conhecida voz grave.
    — Que m.... é essa? Eu detesto o Irwin Allen, tenho certeza que não botei isso...
    — É claro que não, seu idiota — disse o robô, apontando com sua garra para o escritor. — Eu vim aqui para falar com você. E não ouse desligar o computador.
    — Mas... mas... o que é que eu posso ter a falar com o robô de “Perdidos no Espaço”?
    — Porque eu não sou o robô de “Perdidos no Espaço”, seu burro. Essa é apenas a forma que eu estou usando agora.
    — Não posso acreditar — monologou ele, os cabelos em pé. — Os vírus de computador estão super-evoluídos!
    — Olha aqui, seu panaca — disse o robô, com raiva — eu não sou um vírus coisa nenhuma. Você é que tem algum vírus de burrice na cabeça. Eu sou o Fantasma da Ficção Científica.
    — Como assim? A ficção científica não morreu! Como ela poderia ter fantasma?
    — Aí é que você se engana, seu espírito de porco. A ficção científica ingênua, aventurosa, heróica, idealista dos velhos tempos, essa morreu, e foi VOCÊ quem a matou!
    — EEEUUU???!!! Como é que eu pude fazer uma enormidade dessas? Você deve estar enganado.
    — Evidentemente — prosseguiu a voz monocórdia — você não fez tudo sozinho. Mas foram vocês, os cyberpunks, os contraculturistas, que tiraram toda a ingenuidade e todo o fascínio que a ficção científica exercia como literatura. Primeiro, acabaram com os heróis. Segundo, encheram os textos de palavrões. Terceiro, foram mais longe ainda, resolveram partir para a escatologia, falando em gases intestinais; para a malhação, imitando o cinema-lixo de Hollywood; para a violência indiscriminada, imitando os quadrinhos de super-heróis, e para a pornografia mais perversa. Esqueceram de tal modo o ambiente próprio da ficção científica — explorações, viagens ao desconhecido, mistérios a desvendar, problemas sociais e humanos do futuro, catástrofes cósmicas, utopias e distopias, personagens idealistas tentando resolver graves questões do amanhã, contatos com alienígenas, descobertas de outras dimensões ou universos, tecnologias imaginárias... em suma a fantasia com roupagem científica e espírito infanto-juvenil, aventuroso... que levou gerações a se emocionarem com as aventuras do Capitão Nemo ou do Flash Gordon... ou mesmo do Spock e do Lucky Skywalker... ora tudo isso acabou, e hoje vocês preferem narrar métodos de extermínio dos adversários em épocas futuras... ora, para isso não precisavam escrever ficção científica... o que vale ela sem poesia e sem idealismo?
     — Ó meu... você não acha que está sendo muito quadrado? E não falo só da sua anatomia.
    — Depende do ponto de vista. Pode ser que o quadrado seja você. Mas o fato é que a memória de Edgar Allan Poe, Júlio Verne, Beliaev, Zamyatin, Rosny-Ainè, H.G. Wells, Aldous Huxley, Clifford Simak, Poul Anderson, Isaac Asimov, clama contra vocês. Sim, vocês que mataram a ficção científica como literatura de entretenimento e de discussão! O que restou, senão o contínuo exercício de vaidade que vocês praticam, cada qual preocupado com o seu ego intocável e considerando-se o máximo? Mas vocês passarão, e aí se verá que o que fizeram não ficou para a posteridade. E isso, porque a posteridade é mais exigente que a mídia ou a atualidade, ou a colegialidade de vocês...
     — Olha aqui, sua lata de sardinha...
    — Insultos não levarão a nada e eu já falei o que tinha que falar. Adeus!
    A imagem se apagou de repente, sendo substituída pela mensagem “seu computador já pode ser desligado com segurança”.      
    — Mas como é que essa p.... desligou?
    Meio trêmulo, Pablo resolveu apagar de todo o micro e tomar uma cerveja para relaxar. Tentava se convencer de que andara tendo uma alucinação.
    “É melhor continuar amanhã”, pensou, no bar de seu apartamento, ao notar o tremor da mão no momento de encher o copo. “Hum... talvez seja melhor o Tim não fazer um esfaqueamento com estupro ao mesmo tempo. É um pouquinho pesado demais”.
    “Mas um retorno à inocência, à leveza? Não, isso não... isso acabou... a literatura, o cinema, a televisão, o quadrinho... tudo hoje tem que ser brutal e cínico... para que valores na ficção, se na vida real eles não existem?”
    Enquanto isso, em seu quarto, o filho de Pablo, de nove anos, assistia extasiado um episódio de “Voyager”, e vibrava com a Capitã Janeway...