O distópico mundo cyberpunk de Aldri Anunciação
Por Décio Torres Cruz Em: 08/06/2024, às 10H20
O distópico mundo cyberpunk de Aldri Anunciação
Décio Torres Cruz*
A ficção científica possui várias vertentes e uma delas é o subgênero cyberpunk (termo criado pelo escritor Bruce Bethke em 1980 para o conto de mesmo nome, fundindo o prefixo ciber de cibernética com punk) que contrasta a alta tecnologia de ciência avançada e tecnologias de informação com a baixa qualidade de vida num mundo distópico e poluído a serviço de megacorporações que tudo controlam. Bastante explorado pelo escritor estadunidense Philip K. Dick e suas histórias famosas que geraram filmes também conhecidos, como Blade Runner: o caçador de androides (1982), dirigido por Ridley Scott, Total Recall (1990), Minority Report (2002), O pagamento (2003) e tantos outros, esta vertente literária se espalhou pelo mundo. Contudo, um dos temas aliado a esse subgênero, a distopia, também é considerada um subgênero literário que aborda construções sociais alternativas em mundos infernais resultantes de ações políticas ligadas a megacorporações. Temos vários exemplos deste subgênero aqui no Brasil, conforme atesta a tese A distopia na literatura brasileira do século XX, de Pedro F. de Oliveira Neto. A Bahia também tem seus representantes: Admirável Brasil Novo (2001), de Ruy Tapioca; O ditador honesto (2018), de Matheus Peleteiro; -13, -38: amanhã de novo (2019), novela gráfica de Igor de Albuquerque; Depois de hoje (2021), de Vagner Santos; A vida e as mortes de Severino Olho de Dendê (2022), de Ian Fraser; e Quando as traças criaram asas (2024), de Lícia Soares de Souza.
Distopia e racismo
Um dos mais expressivos representantes desse gênero que liga a distopia ao tema do racismo estrutural é a obra de Aldri Anunciação. Namíbia, Não! (Edufba, 2012) faz uma análise bastante contundente do preconceito contra a população negra brasileira e traz à baila o racismo que foi se estruturando silenciosamente em nosso país até escancarar de modo escabroso. A peça teatral estreou em Salvador na Sala do Coro em 2011, com direção de Lázaro Ramos, e retornou ao palco principal do Teatro Castro Alves em 2018. Tornou-se sucesso de público, sendo assistida por mais de um milhão de espectadores em dez anos de temporadas pelos teatros do Brasil. A peça encenada pelo próprio autor/ator é tão impactante quanto a leitura do livro. O que chama atenção neste livro que ganhou o Prêmio Braskem de melhor texto (2011) e o Prêmio Jabuti (2013) é a sua sagacidade, sua criatividade e capacidade de transformar eventos da nossa história passada e contemporânea em uma ficção científica num futuro não muito distante do tempo da encenação (apenas cinco anos à frente, como o autor chama a atenção dos leitores). Em 2020, o livro ganhou uma adaptação cinematográfica com o título de Medida provisória, dirigida e roteirizado por Lázaro Ramos.
O enredo da peça e do filme mostra um futuro distópico, no qual uma medida provisória é decretada pelo governo brasileiro como uma tentativa de reparação pelo nosso passado escravocrata. O Congresso Nacional reage e aprova uma medida que obriga os cidadãos negros a migrarem para a África, forçando-os a retornar a suas origens. Com sua ficção, o autor conseguiu antever os problemas reais que o Brasil de fato enfrentaria nos anos seguintes, com um presidente e um Congresso controlado pela extrema-direita. De modo sagaz, Aldri estabelece relações com a história da Libéria (país criado na África entre 1821 e 1822 com a ajuda de uma organização privada chamada American Colonization Society [Sociedade de Colonização Americana] para receber escravizados libertos dos Estados Unidos) e faz referência a outros livros e filmes tanto da tradição literária clássica quanto do gênero cyberpunk. Do mesmo modo que os androides de Blade Runner são caçados e capturados por terem fugido das colônias para onde tinham sido enviados como trabalhadores escravizados, os personagens de Aldri se transformam em brasileiros de “Melanina Acentuada” que, em um revés da diáspora forçada, são capturados para serem devolvidos aos países africanos para o governo não ter de pagar a reparação aos danos causados durante anos aos africanos escravizados e trazidos ao Brasil. Além disso, o autor transforma o Navio Negreiro (cujo texto de Castro Alves é citado ao final com trechos traduzidos para o alemão, uma das línguas oficiais de Namíbia) em um Boeing Negreiro onde os brasileiros de Melanina Acentuada são transportados de volta à África.
Além das reconhecidas citações textuais de Shakespeare, Kafka e Castro Alves incorporados ao texto da peça, o livro de Aldri também traz ecos de outras obras distópicas da literatura inglesa, como Admirável Mundo Novo, de Aldous Huxley, A revolução dos bichos e 1984, de George Orwell, e ainda nos reporta aos textos distópicos de autores brasileiros consagrados, como Não verás país nenhum (1981), de Ignácio de Loyola Brandão e Sombras de reis barbudos (1972), de José J. Veiga.
Embora Namíbia, não! apresente trechos com sutilezas de humor que provocam gargalhadas na plateia e nos leitores, aos poucos as pessoas se apercebem que não há absolutamente nada de engraçado naquilo tudo, já que aquela ficção é bastante real e é apenas um espelho de nossa realidade racista. O autor trata, com maestria, história e contemporaneidade através das questões de reparação social, escravidão, racismo, preconceito, identidade, diáspora, lugar de pertença, solidariedade e exploração humana.
Para quem desejar adquiri-lo, o livro encontra-se em sua segunda edição e pode ser encomendado diretamente nos sites da Amazon ou da Edufba: https://edufba.ufba.br/livros-publicados/namibia-nao
Foto do autor Aldri Anunciação (Fonte: X)
Sobre o autor
O baiano Aldri Anunciação é dramaturgo, escritor, roteirista, diretor de teatro, ator. Possui doutorado em Dramaturgia pela UFBA. É autor de: Namíbia, Não! (2011); Pretamorphosis: Biografia não autorizada de um ex-branco (Malê; 2023); e A Trilogia do Confinamento (Perspectiva, 2020). Recebeu os seguintes prêmios: Comenda do Mérito Cultural (2014); Melhor Roteiro, no Indie Film Festival, de Memphis, EUA; Prêmio Manuel Barba de Melhor Roteiro no Festival de Huelva na Espanha; Candango de Melhor Ator no Festival de Cinema de Brasília (2018). Foi um dos roteiristas do longa metragem Medida Provisória. Adaptou o livro para o teatro e dirigiu a peça Pequeno Manual Antirracista, de Djamila Ribeiro. Protagonizou a série de ficção científica A Benção, do Canal Brasil. Apresenta e roteiriza os programas Conexão Bahia e Conversa Preta na TV Bahia. Atuou nos filmes Ilha e Café com canela, dirigido por Ary Rosa e Glanda Nicácio. Atualmente, está adaptando o romance Torto Arado, de Itamar Vieira Jr, para o teatro.
* Escritor, membro da Academia de Letras da Bahia, da ACL e da Caspal. Autor de A poesia da matemática (Caravana, 2024) e Histórias roubadas (Penalux, 2022), dentre outros.