SÃO duas minúsculas meninas, índias, nuas, no outro lado do rio, entre as árvores. Na outra margem do Igarapé do Inferno estão, vejo-as, entre as colunas das árvores, vêm da curva descendente que sai do verde-escuro para o verde-cré até a fímbria da saia de aço da fria lâmina do rio. Como nessa matéria nada é absoluto, comece afirmando que as imagens dos seus lábios são, elas mesmas, somente belas. Pois o que faz a beleza é a beleza de sua aparição, naquele momento, da realização, lá, no inesperado, e surpresa. Quê! E elas vieram de lá. Estão na minha frente. São duas meninas. Duas índias Numas, inconfundivelmente Numas. Desafio. Indução. Paixão e banho clássico. Estão lá, em movimento lento. Silenciosíssimas. Que uma é menina. Outra, adolescente. Perfumam o ar em que se movem. Balanço. As pernas longas. Descendo esguias, virgens, na arqueologia da margem, o delicado encanto, e cuidado. Sim, e sim. Agora - e que sorriso se desenha nos seus olhos ... - está tocando a maior a ponta do rio, na delicadeza do pé. Experimenta a água, e goza. Eletrizada. Arranca do corpo a substância, e a transmite à vida da superfície. O rio geme, corda retesada, tocado. O rio está cheio de óleos negros. Melpomene num plinto de coluna de terraço. Naquele movimento de mínima precipitação, qualquer erro é fulminante. Ato terminal. Calor, prazer. O morno rio ressurge, como látex do sangue aquecido. Curvas. Finas. Detalhe de estuque do forro de salão de gala. Excreção brusca, violenta, do humor que escorre. Espuma de sangue. A vista cerrada, não as consigo ver. Nuvem branca primeiro no corpo todo. Nas partes sólidas, estreitas. Elas não me vêem. Não me sabem. Só desaparecem. Uma na outra. Se acariciam. Se tocam. Se introduzem no ar. O vento me encobre, elas não se alertam de mim.
Não sentem meu cheiro. Mas as vejo. Pois fui o primeiro a ver uma fêmea Numa.
As águas correm desde o sem princípio das partes íntimas da narrativa animal sob as árvores de 70 metros de altura; as águas vêm dos desconhecidos lugares da origem Numa; são águas da sobrevivência, são esquecidas e passam. Frias. Se perdem. Perigo; atroz. A princípio não se podem delimitar com precisão, onde as terras dos Numas, onde as do Seringal Manixi. Depois se vêem. Se sentem. No cheiro. Raras, marcas, macias. A flecha, especada no talo da árvore, atravessa a picada, a vermelha. O galho quebrado diz: “Não passarás”. E além da Curva do Tucumã, a passagem do eixo do rio se separa. Pode-se banhar e pescar, deste lado. Mas aos poucos os Numas se infiltravam, avançavam, atravessavam. Passavam além de si mesmos, não respeitando seus próprios limites. Atravessando o rio e a ordem que o rio exercia na floresta. A conduta, o êxtase, acima da curva onde moro, que se faz mediante o perfeito domínio que os Numas exercem sobre os múltiplos lados do rio em “S”, o domínio invisível (não se pode vê-los), e secreto, em torno do qual se distribuem os seringueiros, naquela parte alta, em terra-firme, no cuidadoso controle quase cordial. O Seringal todas as noites invadido por fantasmas. O mundo se economizava. Harmonia, economia de gestos, de nenhum momento involuntário, violento, rompendo o pacto tênue e presente do espírito do silêncio armado. Não basta saber. É não esquecer a conduta, é não falar alto, assegurar a paz, conforme um crime, como se a paz dependesse formalmente do silêncio. Do Silêncio. Não assustá-los, não provocá-los. Não ameaçá-los com procedimento que quebre a funesta hierarquia estabelecida, porque fantasmáticos e míticos, porque em liberdade de vento. Porque nada eram. Ou o Nada.
QUANDO, em 1876, Pierre Bataillon chegou naquelas partes, primeiramente encontrou uma pequena aldeia Caxinauá no temor dos Numas quase sujeita, na exterioridade e mobilidade do poder Númico. Poder-se-ia dizer que os Numas os toleravam, temporariamente, e a qualquer momento, resolvessem vir, para os supliciar e exterminar. A aldeia Caxinauá se espremia entre os Numas imprevisíveis e a parte civilizada e conhecida do Rio Juruá, lá onde só era possível encontrar seringueiros perdidos, gente ficada da expedição de 1852. Os Caxinauás tiveram contato com Romão de Oliveira. Os Numas não. Reagiram violentamente desde 1847, quando o sábio Francis de Castelnau por ali passou e os descreveu na Expeditiondanslespartiescentrales de l’AmeriqueduSud, raro exemplar na biblioteca de Pierre Bataillon. Também Travestin, em Lefleuve Juruá, se refere àquelas lutas que tiveram contra os Numas. Em 1854, João da Cunha Correa, no cargo de Diretor dos Índios, subiu o Tarauacá, descobrindo o Gregório e o Mu, sem contato. Pierre Bataillon chegou em 1876. É o que digo. Naqueles anos os Numas não estavam. Passaram-se vários anos sem eles. Pierre estabeleceu o seu domínio com facilidade, sobre as terras dos Caxinauás pacíficos. Aquela era uma das inúmeras aldeias Caxinauás da Amazônia. Pierre impôs a paz, a ordem. Destruiu a cultura Caxinauá pelo progresso, novo deus que era, e a quem eles se submeteram sem reclamos, quase alegres. A partir de então as mulheres e os rapazes Caxinauás se transformam em objetos do Seringal, pela força da tropa de guerra do Coronel. E a pequena aldeia, empestada de tifo, malária, sarampo e sífilis quase desapareceu: uma epidemia de gripe, em 91, dizimou um terço da população. Os Caxinauás se reduziram a 84 viventes agricultores, servos da gleba do Coronel.
Dez anos depois, voltando os Numas das montanhas peruanas, o quadro mudou molecularmente.