NOVO TEXTO DE "A PANTERA"
Por Obras integrais Em: 08/01/2019, às 14H30
Conheci um judeu que fugiu de um campo de concentração.
Mas ele nunca falava a respeito.
Nunca disse para ninguém como conseguiu fugir, o que se passou. Nem a mulher, que era minha amiga, nunca soube de nada. Nada era para lembrar, mas para apagar do passado, para sempre, para trás, para o esquecimento.
Mas imagino como foi.
Deve ter sido da mesma maneira como chegamos ali, eu e Jara, uma índia maacu, tentando apagar tudo o que se passara antes.
Encontramos aquelas cabanas de paxiúba como um acolhimento celestial, ainda que suspeito de que Jara já sabia onde estariam aquelas palhoças na beira daquele igarapé onde uns cães nos vieram latindo mais para nos saudar do que nos atacar.
E as pessoas nem se assustaram conosco, armados como estávamos, com fuzis e revólveres, acostumados talvez a ver surgir do mato garimpeiros, traficantes e bandidos.
Negociando nossos fuzis e alguns dólares, aluguei uma “voadora”, canoa com motor de popa, que seguindo veloz pelo igarapé chegou àquele rio e nos deixou numa cidade, cujo nome não me quero lembrar.
Desembarcamos no cais do hotel onde nos hospedamos regiamente; Jara trazia uma bolsa cheia de dólares americanos.
Dali mesmo telefonei para membros de nossa organização que me instruíram para onde ir e o que fazer.
Descansamos, compramos roupas, cortamos o cabelo e fretamos um táxi aéreo até certa cidade onde descemos de táxi até a cidade onde já nos esperava uma senhora de nossa organização que nos escondeu e providenciou nossos novos documentos para sairmos do país.
Partimos para Paris.
Ficamos no Hotel Fondary, na rua do mesmo nome.
Ao lado morava minha amiga Annie, que nos convidou para seu apartamento.
Jara se recusou a entrar no elevador, pequeno e ameaçador, por isso subimos sete andares de escada, eu e ela.
Annie nos serviu um maravilhoso chá com torradas, mistura que só ela sabia fazer.
- Quando chegaram? – perguntou Annie.
- Ontem, respondi.
- Ahh – fez Annie – com uma expressão de espanto e admiração.
Ficamos um tempo em sua sala e depois saímos todos em direção à Torre Eiffel que não era longe.
Atravessamos a praça Duplex, por baixo do metrô e nos metemos numa daquelas ruas.
Ao passar pela Avenida Motte Picquet 52 parei para mostrar para Jara a galeria “Paris-Manaus”.
No dia seguinte, tomamos o café no hotel e fomos, eu e ela, conhecer um pouco de Paris.
Almoçamos no “Le Roi du Couscous” e nos mudamos para o Hotel Du Petit Louvre, ali perto, mais conveniente e maior.
Em Paris, conforme o combinado pelo telefone, encontrei meu tio no “Bistro Duplex”, que fica em baixo do “Hotel du Petit Louvre”.
Estava com um café na mesa.
Parecia um parisiense.
Sua alegria foi grande.
Sentamo-nos com ele e ouvimos suas novidades.
Meu tio já tinha comprado um lote de livros e de Cds.
- Não existe mais a Paris do meu tempo, disse ele, triste.
- Acabou com a guerra, respondi. E perguntei:
- Quanto tempo mais quer ficar aqui?
- Uns seis anos!
E caímos na gargalhada.
Sim, mas estávamos felizes.
- Ótimo, respondi. Posso resolver isso.
Dias depois, aluguei um apartamento ali perto, na rue Violet, onde nos alojamos.
Era um sala e dois quartos com um bom hall de entrada. A sala era dividida por um biombo desbotado. Eu e Jara ficamos num quarto, meu tio no outro.
Na sala, um jogo de sofás, perto da cozinha e do banheiro.
Comprei uma máquina de costura usada.
Depois desses ajustes, tudo ficou ótimo e passei a desenhar, cortar e costurar um vestido para Jara e fiz um magnífico sobretudo para meu tio.
Ele adorou e disse-me que eu era um gênio da moda.
Realmente vinha-me, cada vez mais, um desejo antigo de costurar. Meu tio trouxera meus antigos desenhos de moda, queria que eu me tornasse estilista de moda.
- Estamos em Paris, disse ele. A capital da moda.
É isso que você faz muito bem.
E assim, e como eu precisava de um visto de estudante,
incentivado por meu tio Carlos, matriculei-me na
“Ecole de la Chambre Syndicale de la Couture
Parisienne”.
Ali estudei estilo, desenho de figurino, silhueta,
movimento, posições do corpo, criação de uma coleção
pessoal, montagem, acabamento e modelismo.
O curso, mantido em colaboração com agentes do
mundo profissional, habilitava os alunos a aprofundar
seus conhecimentos de técnicas de design de
vestuário, tradicionais e contemporâneas, com
abordagem criativa para modelar e desenvolver suas
habilidades estilísticas através de registros de uma
coleção pessoal.
E para complementar oferecia o conhecimento do
ambiente dos negócios econômicos do setor da moda.
Na realidade, preparavam-nos para ser um empresário
da moda.
Era tudo o que eu queria.
Logo vi que tinha muito a aprender e aperfeiçoar, mas eu era muito bom naquilo que aprendi ainda menino.
Um dia um professor, vendo-me trabalhar na gola de um casaco, me perguntou:
- Com quem você aprendeu a fazer isso?
- Com minha mãe, respondi.
- Quem era ela? Coco Chanel?
E rimos.
De certo modo era verdade. Minha mãe era discípula de Chanel à distância.
Decidi morar em Paris até o fim dos meus dias. Não podia sentir medo diariamente, vendo inimigos em toda parte.
Com meu tio e Jara, ganhava recuperava a família que perdida.
Para fixar-me em Paris, dei entrada no pedido de cidadania francesa, já que meu pai era francês.
Mas meu tio voltou para o sítio.
E nós continuamos em Paris, no apartamento da rue Violet. Tomado por Paris, ele disse que voltaria, que ia arrendar o sítio, mas nunca voltou.
Eu e Jara éramos felizes.
Eu estava cada vez mais animado com o curso, e logo me especializei em modelos especiais (senhoras baixas, gordas e idosas).
Nisso eu era bom.
Mas tudo mudou quando Jara começou a dizer que queria voltar para a tribo.
A princípio, não levei a sério, mas ela repetia, e eu comecei a suspeitar que estivesse louca.
Por fim, tomou decisão de voltar sozinha e disse que ninguém poderia impedi-la.
Ela embarcou sozinha para Manaus, onde meus companheiros a esperavam e a levaram para a mata e ali ela desapareceu.
Não mais vi Jara.
Desesperado, organizei, mesmo de Paris, expedições em sua busca.
Mas como aquilo começava a chamar atenção da mídia e era falado em Manaus, desisti.
Sem Jara, cai no mais fundo da sombria noite de depressão.
Eu chorava sozinho em meu quarto e durante dias não saí de lá.
Depois, continuei meu curso de costura e já fazia pequenos trabalhos em diversos ateliers além de ser um auxiliar de ensino na própria escola.
Era fácil desenhar e costurar roupas para aquelas modelos altas e magras, mas difícil era fazer o que eu fazia, trabalhar com senhoras de meia idade baixas, ou idosas, gordas e barrigudas como as freguesas de minha mãe.
Entretanto eu conseguia que elas se sentissem elegantes. Sabia realizar o milagre. Era o que eu ensinava na escola, uns truques, a poucos alunos.
Mas eram senhoras milionárias, podiam pagar bem.
A minha especialidade foi logo reconhecida.
Eu recuperava minha mãe naqueles vestidos.
A escola reconhecia logo quem sabia fazer o difícil, os melhores em cada caso. E eu me destaquei, nisso era um consumado mestre.
Então compreendi havia algo em Jara que dizia “sou livre, sou um animal selvagem, uma caçadora solitária da floresta”.
Jara era solitária pantera.
Mas eu estava quase morto, no fundo de mim algo morrera. O meu âmago chorava diariamente.
Tentei esquecê-la buscando novas relações a qualquer preço.
Toquei minha vida. Sempre fui um sobrevivente, um guerrilheiro.
Não mais vivia com o dinheiro dela que estava com a organização e comecei a ganhar alguma coisa como costureiro.
Vivia modestamente, tomava o café de manhã em casa, ia para as aulas na Escola. Voltava para casa. Lia até bem tarde. Era o meu cotidiano.
Paris é uma cidade cara. Comecei a pensar em morar num quarto no subúrbio.
Meu tio faleceu pouco depois. Foi outra grande perda. Não fui ao seu sepultamente.
Um dia, uma senhora, diretora da Maison Rivière, me procurou perguntando se eu poderia atender uma freguesa.
Fui apresentado como estilista a uma senhora baixa, mal-humorada, gorda, barriguda e poderosa que tinha rejeitado todos os modelos apresentados anteriormente.
Era a Madame Adele.
Ela era a viúva de um magnata oriental, uma espécie de príncipe, que necessitava de uma roupa para um evento, o que eu desenhei na hora, e ela gostou, porque era algo que ela podia vestir com conforto e beleza, com uma capa de seda e lã em dois planos, sem nenhum enfeite, mas deslumbrante. Na realidade desenhei dois vestidos, um mais claro, outro mais escuro, e eram simplesmente notáveis (eu mesmo reconheço) e possibilitavam que ela usasse suas jóias, que certamente ela deveria de ter.
O detalhe majestoso estava na gola, uma espécie de cocar indígena franzido na própria fazenda que a “levantavam”, que a fazia maior, mais alta, além do cabelo e do salto.
Ela gostou e comprou na hora por uma fortuna, não discutiu preço, e se foi.
E a equipe de costureiras em alvoroço começou a preparar as fazendas e a cortar, sob a minha supervisão.
O milagre da obra eram aquelas costureiras e bordadeiras.
Quando Mme Adeloe voltou para as provas disse que estava magnífica e encomendou outras roupas e foi assim que eu me tornei estilista daquela senhora, que me pagava regiamente, viúva de um dos homens mais ricos do mundo.
Comecei na ganhar pequenas fortunas dela e de outras freguesas que ela indicava.
E me ocupava naquela profissão, o que me ajudava a esquecer Jara.
Eu dormia e sonhava com diversas roupas, luxuosas, vestidos daquelas mulheres que se pareciam com a Rainha Vitória, a mais indígena das rainhas.
Mas Jara me acalmou, conseguiu me dizer que eu estava em paz, e me deu água e comida..
(CONTINUA)