Nélida Piñon
Nélida Piñon

[Antônio Torres* - Da Academia Brasileira de Letras]

 

Se eu me chamasse Vladimir, o da Flauta vertebrada, lhe ergueria o crânio repleto de versos, do qual retiraria um assim:

Que Hoffman celestial te pôde inventar, bendita?  

Outra seria a pergunta, se eu me chamasse Federico:

Qué tiene tu divino

Corazón en fiesta?

Que um itabirano (de Itabira, Minas Gerais, Brasil) chamado Carlos, traduziria assim:

Como viver sem conviver, na praça de convites?

Isto para dizer que Nélida Piñon (Rio de Janeiro, 3/ 5/ 1937 – Lisboa, 17/12/2022) foi uma musa inspiradora para quantos tiveram o privilégio da sua convivência, entre eles o autor destas linhas, ao longo de meio século.

Não dá para imaginar que a esta altura ainda haja, pelo menos no mundo das letras lusófonas e de suas vizinhanças, quem não saiba de quem se trata aqui. Ainda assim não custa lembrar que estamos a evocar uma colecionadora de prêmios nos dois lados do Atlântico – de alguns dos mais importantes do Brasil, ao Juan Rulfo, do México (o de maior repercussão na América Hispânica), sem esquecermos o Vergílio Ferreira, de Portugal, muito menos o Príncipe de Astúrias, no qual desbancou uns trinta e tantos grandes nomes mundiais, entre eles o norte-americano Paul Auster e o israelense Amos Oz.

E mais e mais: no Chile, Colômbia, Estados Unidos...

Traduzida em mais de 30 países, Nélida foi louvada por sumidades internacionais, como o vencedor do Prêmio Camões de 1990, Eduardo Lourenço – o autor de O labirinto da saudade: psicanálise mítica do destino português -, Gabriel García Márquez, Octavio Paz, Carlos Fuentes. Mário Vargas Llosa a definiu como uma das pessoas mais encantadoras que ele já conhecera, “não apenas uma escritora muito fina, mas uma mulher extraordinária”.

E o Brasil, como a via/ lia?

Uma síntese dessa visão/ leitura pode ser pinçada no prefácio à edição comemorativa dos 30 anos do monumental A República dos Sonhos (Editora Record: Rio de Janeiro, 2015), no qual o conceituadíssimo escritor carioca Alberto Mussa destaca a grande marca estilística de Nélida, “o que a irmana e simultaneamente a distingue numa longa e antiga fila de escritores primais, subversores de idiomas, criadores de linguagens, sejam de matriz popular ou erudita”.

Obra gigantesca, tanto em tamanho (mais de 700 páginas) quanto em significação, A República dos Sonhos figurou, no ano 2000, num balanço do jornal El País, de Montevidéu, entre os 5 melhores romances americanos do século 20, ao lado de Grande Sertão: Veredas, de João Guimarães Rosa, Cem anos de solidão, de Gabriel García Márquez, Pedro Páramo, de Juan Rulfo, e O som e a fúria, de William Faulkner.

Sim, estamos a lembrar um dos altíssimos pontos da extensa e diversificada bibliografia da romancista, contista, ensaísta e igualmente brilhante conferencista Nélida Piñon, que desde a sua estreia literária aos 24 anos (1961), com Guia-mapa de Gabriel Arcanjo, passou a dedicar a sua vida à literatura, de forma obstinada.

Aos 83 anos, ela voltaria a navegar nas águas profundas do romance com um fôlego impressionante, para nos legar um primor de narrativa, num texto cadenciado, luminoso, deslumbrante, que torna a última flor do Lácio ainda mais encantadora, além de coroar plenamente a sua poderosa trajetória literária:

- Um dia chegarei a Sagres. E na condição de herdeiro do rei – eis aí o mantra do protagonista da história, o plebeu Mateus, um personagem do século 19 que nas suas aventuras e desventuras, do extremo Norte ao extremo Sul de Portugal, é levado à fronteira da nostalgia do glorioso passado de um país de conquistadores dos mares, desde o pai da pátria, o infante D. Afonso Henriques, tendo aos ouvidos a heroica poesia de Camões, e a cruzar com “cortejos de miseráveis na esteira de uma monarquia que devia trono e fortuna ao seu povo”. E assim somos levados à travessia das mais de 500 páginas de Um dia chegarei a Sagres sem pestanejar.

No calor da sua despedida, o escritor brasileiro Evandro Affonso Ferreira escreveu um dos mais perfeitos epitáfios de quantos lhe foram dedicados ao apagar das luzes de um ano a se ir, junto com ela:

“Nélida fez da palavra via de acesso ao sublime”.

Assim como do seu sorriso, da sua voz, do seu convívio, do seu coração de festa, que tanta falta já nos fazem. 

*Site oficial: www.antoniotorres.com.br