Elmar Carvalho

 


Certo domingo, estava eu no bar do abrigo do Liceu, a iniciar o segundo copo de cerveja, quando aparece o engenheiro Edilson de Albuquerque Mourão, natural de Parnaíba. Era ele professor da Universidade Federal do Piauí, desde o início de sua instalação. Embora não fôssemos amigos íntimos, tínhamos um bom relacionamento, iniciado através de um conterrâneo e amigo comum, em cuja casa já nos havíamos encontrado em duas ou três ocasiões festivas, com direito a libações e churrasco. Era ele uns doze anos mais velho que eu, mas se mantinha bem conservado. Ao me cumprimentar, perguntou:
- Posso tomar umas duas ou três doses de uísque em sua mesa, poeta?
- Pode até muito mais, professor.
 
Sentou-se, e logo o garçom trouxe sua bebida. Notei que ele já estava levemente afogueado pelo álcool. Com certeza já tomara umas três doses antes de sair de casa. Viera a pé, posto que mora perto do colégio, no qual estudei em minha adolescência. Começamos a conversar sobre assuntos diversos e aleatórios, quando fomos abordados por uma moça, que nos entregou dois prospectos de propaganda de uma agência de viagem, nos quais era anunciada uma viagem ao Sul e Sudeste do país, mormente ao Rio de Janeiro e Rio Grande do Sul. Havia belas fotografias desses dois estados. Comentei que era um matuto empedernido, e que praticamente nunca saíra do Piauí, a não ser três vezes, assim mesmo para participar de congresso de minha área profissional e para receber um prêmio literário.
 
O meu interlocutor me narrou uma viagem que fizera ao Rio de Janeiro, num dos navios da Moraes S/A., no final de sua adolescência. A tripulação era composta de aproximadamente 15 pessoas, entre piloto, maquinista, mecânico, foguista e os arrumadores ou porcos d' água, encarregados de carregar e descarregar o “vapor”. Foi uma viagem costeira demorada, com a embarcação fazendo paradas em vários portos, sobretudo das capitais, para carga e descarga de mercadorias. Em virtude das esperas, seja em decorrência da disponibilidade dos rebocadores e das docas, seja por causa da burocracia aduaneira e da operação de retirada das mercadorias fabricadas pela Moraes e da colocação no navio das que a firma comprava, mormente insumos ou as encomendas de frete, o navio ficava de dois a três dias em cada cidade portuária. À noite, quase toda a tripulação ia para os cabarés da beira do cais. Edilson, rapaz sério, estudioso, mas bem humorado e de fácil relacionamento, não tardou a conquistar a amizade dos marinheiros, e ia com eles para essas incursões boêmias e eróticas.
 
Ainda no começo da viagem, alguns marujos, todos analfabetos, pediram para que ele respondesse às cartas de suas várias namoradas. Havia embarcadiço que tinha namorada ou rapariga em quase todos os portos da rota. Edilson escrevia bem e passou a gostar dessa função de missivista, tornando-se uma espécie de escrivão de bordo. Enfeitava as cartas com alguma frase de efeito ou versos, fosse de sua lavra ou não. Os porcos d' água gostavam dessa afetação, e ficavam encantados com esse seu talento. O cozinheiro, que estivera de mal com sua mulher, pediu que Edilson fizesse uma carta de reconciliação. O rapaz, estimulado por essa missão de cupido, caprichou ao extremo, e soube expressar com belas frases os sentimentos que invadiam a alma do cozinheiro, a sua ternura, a saudade que lhe roía o peito, o desejo de reconciliação, e arrematou tudo com uns arrebatados e alambicados versos líricos de piegas poeta romântico, mas que eram tiro e queda no derretimento de corações femininos. A carta surtiu o efeito desejado, pois dias depois chegava às mãos do mestre cuca uma amorosa carta da mulher, em que essa lhe perdoava a ofensa. A partir de então, o jovem passou a comer do bom e do melhor, na quantidade que desejasse.
 
Como dito, Edilson acompanhava os marinheiros em suas idas aos lupanares da beira do cais. Bebia do que eles bebiam, comia do que eles comiam, sem nada pagar. Eles se cotizavam e pagavam até meretriz para o rapaz, com o preço previamente acertado. Num dos portos, por entraves burocráticos e comerciais, o navio demorou quatro dias para partir. A rapariga, com a qual ele ficara na primeira noite, terminou se apaixonando por ele, e não lhe cobrava nada, sequer a “chave”, que era o pagamento pela ocupação do quarto. Pediu-lhe viesse no dia seguinte, por volta das dez horas da manhã. O rapaz nesse dia se esbaldou, como nunca havia feito antes. Bebeu e comeu por conta da mulher dama, como se dizia. Transou com ela várias vezes, aprendendo coisas e posições com as quais nunca sonhara, em verdadeiras lições de kama sutra prático e ao vivo. Ela lhe pediu para não mais seguir viagem, pois o sustentaria; que ele seria o seu único gigolô. Era nova e bonita, e por isso mesmo era uma das mulheres mais recrutadas, o que lhe permitia um faturamento considerável. Na última noite, a mulher se embriagou. Na hora da despedida, agarrou-se com Edilson, no grande salão, na frente dos marinheiros, rogando que ele não fosse embora. No desespero da paixão e do álcool, armou o maior barraco, chegando a rasgar a camisa de Edilson. Os homens e as outras prostitutas conseguiram levá-la para o seu quarto, e recomendaram que o jovem se retirasse, para evitar novo escândalo.
 
No último cais, antes do destino final, os marinheiros disseram que iriam fazer uma surpresa ao Edilson. Foram a determinado prostíbulo, e lá confabularam com certa mulher, sem a presença dele. Algumas garrafas de cerveja depois, disseram para que a mulher o levasse para o quarto e procedesse na forma combinada. Ao entrarem na alcova, ela mandou que ele entrasse num tanque que havia, uma espécie de banheira rústica. A água fria quase provocou um choque térmico no adolescente, e lhe engelhou a pele, mormente na região dos mamilos e dos testículos, que quase sumiram. Ao sair do banho, a profissional do sexo o enxugou com uma macia toalha, ao tempo em que lhe dava um banho de língua, dos pés à cabeça, murmurando e rosnando palavras, como uma gata manhosa e dengosa, com idas e vindas, com volteios e atalhos, com retiradas estratégicas e inesperadas de certos pontos mais sensíveis, com paradas logísticas mais demoradas em outros. A língua parecia de veludo em certos momentos; em outros, parecia uma palanqueta de máquina de costura, a se movimentar, lenta ou freneticamente, para cima e para baixo, para um lado e para o outro. Edilson, com a voz embargada, levemente arfante, perdido em suas lembranças, arrematou a narrativa:

- Depois desse ritual, do qual não contei tudo, ela mandou que eu me deitasse de costas, sobre uma espécie de divã estreito que havia, creio que feito de encomenda para o que ela pretendia fazer. A seguir, me cavalgou; escanchada, quase nas pontas dos pés, sem usar as mãos, com habilidade de mestra consumada, conseguiu a conexão de praxe. Recomendou que eu não me mexesse em hipótese nenhuma, que ela comandaria todos os movimentos necessários. Não sei se ela usara pedra ume, mas o fato é que nem antes e nem depois encontrei outra mulher tão apertada quanto ela. Parecia ter um esfíncter no vestíbulo vaginal, que funcionava como uma espécie de torniquete ou garrote, que parecia querer enforcar o meu membro. Após algum tempo, ela fixou esse aro de estrangulamento um pouco abaixo da glande, e, então, sem movimentar o corpo, apenas com os músculos da região vaginal, começou a sugar o meu pênis, como se fosse um bezerro a mamar, apertando e afrouxando, com breves e delicadas contrações de vai e vem. De tempos em tempos, ela fazia um remelexo rotatório, como se estivesse fazendo um teste drive numa alavanca de câmbio. Terminei tendo um forte orgasmo, seguido de breve desmaio. Quando voltei a mim, ela já estava vestida. Ao deixar o quarto, os marujos já haviam pago a conta; fomos logo embora, pois de manhã cedo seguiríamos para o final da viagem.

Ante tão instigante narrativa de viagem, com grande interesse e curiosidade, indaguei:
- E a volta? Como foi a viagem de retorno?
- Que porra de retorno, poeta... Fiquei lá, para prosseguir nos meus estudos – disse Edilson, com certa e magoada nostalgia.
 
Ele, então, me contou que seu pai era empregado da indústria Moraes S/A. Era o encarregado do almoxarifado. Pelo seu zelo, assiduidade e honestidade nesse encargo, ganhou certa consideração de um dos diretores da empresa, o senhor Zeca Correia. Um dia, no final de 1961, o chefão perguntou a seu pai sobre sua família, sobre a quantidade e idade dos filhos. O almoxarife Albuquerque respondeu que tinha um filho e duas filhas. Zeca perguntou se o filho estudava e que ano escolar fazia. O empregado disse que o rapazola estava terminando o ginásio, e que passava com as melhores notas, sendo sempre classificado entre os três primeiros lugares de sua turma. Acrescentou que o jovem tinha bom comportamento e não lhe causava preocupação. O empregador perguntou se ele não desejava prosseguir nos estudos. O outro respondeu que era o seu sonho, mas que não tinha condições financeiras de mandá-lo estudar em outro estado mais desenvolvido, e nem tinha parentes que pudessem hospedá-lo.
 
Para surpresa de Albuquerque, Zeca Correia, num grande rasgo de generosidade, disse que iria ajudar seu filho. Prometeu empregá-lo, em expediente de meio turno, na unidade industrial da Moraes no Rio de Janeiro, para que o rapaz pudesse ter algum dinheiro, para merenda e refeições. Acrescentou que ele poderia usar algum restaurante estudantil, mais barato, e que autorizaria ficasse ele hospedado no alojamento da fábrica carioca, destinado a diretores em trânsito. Prometeu, ainda, que o estudante viajaria de graça, num dos navios da firma, no começo do ano seguinte. Fora essa a viagem narrada pelo Edilson.