Na Caverna Virtual
Por Marcelo Martins Eulálio Em: 05/08/2025, às 09H47

Na Caverna Virtual: breve ensaio sobre a irreflexão contemporânea
[*Marcelo Martins Eulálio]
Vivemos, hoje, presos numa caverna, não a caverna física de Platão, e sim uma caverna virtual, onde sombras digitais substituem a luz da realidade, e os ecos de opiniões ruidosas substituem o silêncio fecundo da reflexão. É preciso coragem para dizer isso em tempos de vozes estridentes e egos inflamados, mas como Riobaldo, personagem de Guimarães Rosa, confesso: “gosto muito de moral. Raciocinar, exortar os outros para o bom caminho, aconselhar o justo.” E é em nome dessa inquietação ética que escrevo.
Há algo profundamente errado em nossa forma de conviver. Estamos desaprendendo as regras mais elementares da boa convivência no meio social. O tecido social parece esgarçado por tensões constantes, por uma prontidão agressiva que nos deixa armados emocional, verbal e até fisicamente, a qualquer momento. Vivemos uma espécie de “estado de guerra civil simbólica”, onde cada interação carrega o risco do confronto. Parece-me que estamos no estado de natureza de Thomas Hobbes, movidos pelos instintos, pelo conatus, caracterizado pela “guerra de todos contra todos (bellum omnium contra omnes). Parece-me uma eterna verdade o que disse Hamlet: “O mundo está fora dos eixos; Ó! que grande maldição eu ter nascido nele para traze-lo à razão”.
A intolerância se tornou um traço comum nas relações cotidianas. Desconfiamos, julgamos e condenamos com a mesma rapidez com que rolamos a tela do celular. Não somos capazes de habitar o lugar do outro; a alteridade se tornou um território estrangeiro. Estereotipamos condutas, reduzimos pessoas a rótulos e interpretamos o mundo com pressa e superficialidade. Esquecemos que toda interpretação é sempre limitada, e que quando ela é feita às pressas, torna-se perigosa. Como nos lembra Hannah Arendt, tornamo-nos sujeitos da irreflexão.
Conviver, no entanto, é aceitar a diferença. Diferenças de ideias, de valores, de experiências, de estilos de vida. E, infelizmente, temos demonstrado pouco esforço em cultivar uma cultura do respeito mútuo. Há uma proliferação de personalidades autoritárias, que mascaram sua ignorância sob o verniz de valores morais, muitas vezes falsos, muitas vezes performáticos.
Vivemos numa época paradoxal. Evoluímos nas ciências, nas tecnologias, nos métodos de produção de conhecimento. Mas nossas relações humanas involuíram. A qualidade do afeto, da escuta, da empatia, da presença foi corroída. As redes sociais, ao invés de nos aproximarem, muitas vezes nos distanciam. Aproximações tecnológicas não garantem proximidade humana. E talvez a maior ironia seja essa: se antes éramos desprezíveis apenas em pensamentos ou em espaços privados, agora temos plataformas públicas onde a "banalidade do mal" se propaga em tempo real. As redes sociais, como já se disse, nos adulteram. Bastam dois passos no mundo virtual para que percamos o contato com a vida real.
Vivemos, portanto, dois mundos: o real e o virtual. Mas é inegável que estamos cada vez mais presos ao segundo. Como acorrentados na caverna platônica, vemos apenas projeções distorcidas, filtradas, manipuladas e perdemos o senso da realidade. À medida que a realidade virtual se expande, a realidade concreta parece encolher. Vivemos sob um Véu de Maya, entendido por Schopenhauer como o véu que nos impede de ver as coisas como elas realmente são, e alimentados diariamente por ilusões. Precisamos nos desapegar de realidades falsas. E mais ainda: na virtualidade, testemunhamos condutas menos éticas e mais irresponsáveis. Escondidos sob avatares e perfis, há aqueles que sentem uma falsa liberdade para agredir, distorcer, humilhar. E tudo isso se dá dentro de um sistema de vigilância constante - a grande casa do Big Brother digital - onde cada palavra pode ser capturada, julgada, condenada por uma multidão anônima, autoritária e radicalizada.
Com os “olhos tão habituados às sombras, dificilmente conseguiremos dizer se a luz é a luz de uma vela ou de um sol resplandecente” (Homens em tempos sombrios, Arendt). Precisamos urgentemente de um novo paradigma. Assim falou Zaratustra, precisamos alcançar a virtude dadivosa, resgatar nossa soberania e o comando de nossa própria vida e, como na alegoria da caverna de Platão, nos libertar das correntes, ver o mundo tal como ele é e, mesmo sob zombaria ou violência, ousarmos retornar e tentar mostrar a verdade aos demais. Cada um, um novo Sócrates digital, talvez. Ou apenas um ser humano disposto a superar-se, a resgatar o que há de mais nobre em nossa “condição humana”.
Como escreveu Bergson, “os olhos veem apenas o que a mente está preparada para compreender”. Talvez estejamos cegos porque nossa mente se fechou. Precisamos resgatar nossa capacidade de pensar e elaborar juízos críticos e reflexivos. O pensar deve preceder o julgar e o agir.
Mais do que nunca, precisamos “iluminar o mundo”, abrir os olhos e o coração. Precisamos pensar de novo, respeitar de novo, ser humanos de novo. Que cada um de nós, enfim, comece a se libertar da caverna virtual antes que a luz da realidade nos seja, definitivamente, inacessível.
*Marcelo Martins Eulálio é advogado, professor universitário e Mestre em Políticas Públicas pela Universidade Federal do Piauí.