MUDANÇAS E HÁBITOS NA PAISAGEM FÍSICA E HUMANA DO RIO DE JANEIRO
Por Cunha e Silva Filho Em: 30/04/2022, às 15H09
MEMÓRIAIS
MUDANÇA DE HÁBITOS NA PAISAGEM FÍSICA E HUMANA DO RIO DE JANEIRO
Cunha e Silva Filho
Parodiando Machado de Assis (1839-1908), direi: “Mudei eu ou o mudou o Rio de Janeiro?” Acho que mudamos ambos. A cidade não é a mesma do tempo de Machado. Não é mais aquela cidade que, num mural enorme de um prédio da Rua Ouvidor, mostra a paisagem física e humana do Rio antigo, sobretudo no ponto central da vida urbana: a hoje Avenida Rio Branco, outrora Avenida Central. Além do mural, há um trecho de uma crônica de Machado alusiva àquela paisagem, fruto de uma foto ampliada e reproduzida naquela mural.
O tom da narrativa do autor de Dom Casmurro (1899) é irônico. A crônica fala da Rua do Ouvidor, a mais elegante do tempo de Machado. Rua estreita, mas preciosa, rua das modas vindas de Paris ou mesmo algumas de Londres. Não me lembro bem do núcleo do tema da crônica, mas vou voltar ao local do mural para comentar, em outra crônica, sobre o que o bruxo do Cosme Velho anotava sobre a condição topográfica dessa principal estreita artéria carioca, sobretudo à altura do século XIX.
Fixo os olhos novamente no mural. Vejo, nas calçadas, de ambos os lados da avenida, pessoas com as vestes elegantes do século XIX e da primeira década do século XX Os homens com chapéu, bengala à inglesa, guarda-chuva, conversando em duplas. As mulheres, elegantes, com seus vestidos longos, figuravam a moda daquele tempo. Na rua, carroças puxadas por trabalhadores humildes, carros elétricos, charretes, gente atravessando de uma calçada a outra. Olho para os prédios, com as suas fachadas, com suas placas anunciando algum produto. Procuro vislumbrar se, comparado com o que existe hoje na mesma avenida, algum prédio ainda está de pé até hoje. Ressalto ao leitor que o mural não corresponde exatamente ao tempo da crônica machadiana. Contudo, suas características arquitetônicas o situam nas primeiras duas décadas do século XX.
Consigo ver alguns velhos prédios que atravessaram o século XX. Fico em dúvida onde estariam outros prédios que não mais existem. Com nitidez, vejo o velho prédio, no qual ficava o famoso Jornal do Brasil, do tempo da Condessa Pereira Carneiro.
O que salta à vista é que a paisagem arquitetônica amalgamou o antigo e o moderno, onde o antigo tem mais destaque, principalmente se o nosso olhar se coloca em direção aos prédios do Theatro Municipal, do Museu Nacional de Belas Artes, da Biblioteca Nacional.
Retomo o meu olhar novamente para dentro do mural, da foto ampliada. Olho detidamente aquele agrupamento de gente dispersa nas duas direções da avenida. Paro a minha vista naquelas pessoas estáticas na fotografia. Abstraio essas pessoas que parecem estátuas, imóveis e imagino-as em movimento de vida, resolvendo seus problemas no Centro do Rio. Cada uma com a sua vida pessoal conversando sobre assuntos diversos. Rindo, ou caminhando simplesmente na sua solidão e anomia da cidade que crescia, majestosa e bela. Quem seriam elas? Todas desaparecidas. Todas nos seus lugares eternos, no silêncio dos tempos. Todas tragadas pelo tempo. Nasceram, tornaram-se crianças, adolescentes, adultas, idosas viúvos ou viúvas, se casaram de novo ou permaneceram na viuvez ainda exibindo seus anéis de matrimônio. Cumpriram a sua travessia no espaço e no tempo. Hoje, apenas uma foto ampliada. Nada mais.
Entretanto, penso comigo: foram gente de carne e osso, não ficções, não criaturas imaginadas pela cabeça de um escritor ou poeta, ou dramaturgo. Viveram, sofreram, foram felizes ou não, tiveram filhos, netos. Casaram ou ficaram solteiros. Amaram, sorriram, brincaram, trabalharam, foram alguém na vida. Fizeram o bem ou o mal. Enfim, existiram. Parodiando outro grande escritor, o poeta Carlos Drummond de Andrade (1902-1987): hoje são apenas uma foto no mural, ia dizendo “na parede.”
Esta crônica, se o leitor atentar para o título, subentende outro aspecto que desejo explorar nas minhas observações da vida carioca. Esse aspecto é o do contraste entre o que era o Rio de ontem, ou melhor, o Rio dos séculos XIX e XX e o do nosso século. Quanta diferença, abissal diferença no que se pensa das duas realidade temporais, sobretudo do que se podia fazer com o espírito aberto, sem medo do medo abominável que, por vezes, nos assalta a nós, moradores da Cidade Maravilhosa, hoje tão vilipendiada pela violência que teima em crescer sem respeito a ninguém, mudando hábitos de vida, quer de dia, de tarde ou de noite.
O Rio é inseparável da carioquice, da alegria, do samba, do carnaval, do futebol, das praias, da sua vocação para ser uma cidade do mundo e não só nossa, das piadas apimentadas, da sedução, do sensualismo; o Rio com a sua imagem das curvas femininas nyemarianas. O Rio do Centro e do hibridismo de construções misturando todas as épocas desde a sua fundação.
O Rio da Zona Sul dos belos bairros aburguesados (Copacabana, Ipanema, Leblon, ou de classe média da Zona Norte (a ex-aristocrática Tijuca, Vila Isabel, Méier, Grajaú), até os um tanto esquecidos bairros dos cariocas dos subúrbios (Madureira, Cascadura, Vila da Penha, ou o Rio da Barra da Tijuca, do Recreio, da Zona Oeste), com cada bairro e suas diferenças de modos de vida da Zona Sul. Ou ainda os belos bairros da Zona Sul de frente para o mar, Sul, do lado de cá do túnel, de classe média e media alta (Flamengo, Botafogo, Urca), e ainda os Glória, Catete, Glória Laranjeiras, de classes misturadas.
De resto, mesmo em bairros luxuosos, às vezes, convivem classe altas, médias e pobres, a se ver pelos morros que os cercam. Todo esse patrimônio de beleza, de antiguidade, de variedades está em perigo de se perder com os tentáculos da violência instalada, fazendo o carioca de nascimento e o carioca de coração mudarem sensivelmente o que podiam fazer anos atrás: sair de casa em sossego, voltar para casa em paz, poder andar a pé, sem uma espécie de paranoia que, contra a nossa vontade, nos acomete nos dias de hoje.
Há quem enfrente ainda os lugares agradáveis, mas sempre com certo receio de enfrentar algum problema relacionado à violência: o assalto, a presença inopinada de pivetes, o sequestro, a bala perdida, os furtos, os roubos, os tiroteios entre criminosos dos morros, ou entre estes e a polícia. Criminosos mais bem armados do que a própria polícia.
Para os que podem andar em seus carros, a despeito também de neles não se sentirem seguros, essa é a melhor forma de locomoção, ou senão tomar um táxi a fim de irem a um espetáculo musical, um cinema, um shopping, um teatro, um lançamento em livrarias da Zona Sul.
Por isso, o carioca nato ou de coração, mormente se está com idade mais avançada, vai perdendo o gosto de sair às ruas da cidade, dar um passeio no Centro, visitar um dos poucos sebos, ver um museu, andar pela Avenida Rio Branco, sempre apinhada de transeuntes para lá e para cá no tumulto incessante da grande cidade que não para de movimentar-se.
Imagine-se um mural reproduzindo uma foto da paisagem humana da Rio Branco de hoje repetindo os mesmos gestos meus de flâneur voltado ao mural do passado do século XIX e das primeiras décadas do século XX. Ou seja, um outro flâneur qualquer no futuro, olhando o mural do século XXI, em outro prédio, de preferência moderno, quando todos os contemporâneos de hoje virarem uma retrato no mural visto por uma habitante querendo fazer um nostálgica comparação da Avenida Rio Branco para a posteridade.
Só aguardo que esse outro flâneur não mais encontre a Cidade Maravilhosa no estado infernal em que se encontra agora, porém seja uma urbe semelhante àquela imagem belíssima e comovedora de um conto de Oscar Wilde(1854-1900), em que inocentes criancinhas, por terem atravessado o muro proibido pelo gigante egoísta, a fim de nele brincarem, eram por ele rechaçadas.
Ao perceber o gigante que a saída das criancinhas fazia murchar as flores do seu belo jardim, de repente compreendeu que só com a presença delas ali brincando, as flores de seu jardim novamente retornavam à antiga e verdejante beleza. Com isso, o gigante egoísta se transformou num bom gigante e o cenário, antes desolador, transformou-se num paraíso logo que o gigante mandou derrubar o muro proibido. O conto termina com o gigante brincando alegremente com as criancinhas.
NOTA. Voltei ao lugar do mural para confirmar o que, em linhas gerais, dizia o Machado da famosa Rua do Ouvidor. Na referida crônica, Machado comentava o lado íntimo que a Rua do Ouvidor não podida perder. Essa particularidade, segundo ele, é que devia permanecer. Um rua estreita, "aconchegante," própria para se falar ao pé do ouvido com um companheiro, uma rua de apreciação das modas, até de olhar para um sapato "de bico fino"de uma senhora que passasse. Rua apropriada aos cumprimentos mais fáceis de um lado a outro da calçada, podendo-se mesmo dar um aperto de mão sem difculdades. Ao afirmar isso, Machado era contra alargar-se a Rua do Ouvidor - tema central da crônica. Se fizesem isso, ela perderia todo o seu encanto, o seu sossego, a sua privacidade, a sua tranquilidade doméstica.Outras ruas poderiam alargar, mas não a Rua do Ouvidor.