Modernistas por Belo Horizonte

Petrônio Souza

Em 1924 chegava a jovem capital mineira um grupo de intelectuais paulistas, que há dois anos hastearam de São Paulo para o Brasil, e quiçá para o mundo, a bandeira modista da arte moderna brasileira. Liderados por José Oswald de Souza Andrade ou Oswald de Andrade e Tarsila do Amaral, desembarcaram em nossa capital nomes como: Mário Raul de Moraes Andrade, ou simplesmente Mário de Andrade, Fernand Léger, Brancusi, Godofredo Telles, o suíço-francês e ex-combatente da Primeira Guerra Mundial, Frédéric Sauser ou Blaise Cendrs, a filha dos Barões de Pirapitingui, Olívia Guedes Penteado e seu genro, Godofredo Teixeira Leite da Silva Teles, e o filho de Oswald, José Oswald de Souza Andrade Filho, o Noné. 


O grupo vinha do carnaval carioca, movido pela idéia de assistir à tradicional Semana Santa mineira, mas antes de chegar a Belo Horizonte, havia passado pelas históricas São João Del Rey, São José Del-Rey, Ouro Preto, Mariana e Divinópolis. De Belo Horizonte o grupo passaria por Sabará e Lagoa Santa, depois partiria debandando-se entre profetas, passando por Congonhas do Campo. Na noite do dia 24 de abril de 1924, os modernistas davam entrada no Grande Hotel, que ficava na rua da Bahia, onde hoje está a loja do Ponto Frio.


Poucas horas depois da entrada do grupo de Oswald, chegava à porta do Grande Hotel, o jovem poeta mineiro, que se tornaria um dos maiores poetas brasileiros de todos os tempos, o itabirano Carlos Drummond de Andrade. Drummond estava acompanhado pelos amigos: Pedro Nava, Martins de Almeida e Emílio Moura.

Juntos, os jovens iluminados mineiros formavam o grupo Estrela, uma versão literária do Clube da Esquina nos anos 20. A citação do Clube da Esquina se torna válida, pois ambos, em nenhum momento tiveram um caráter comportamental, mas sim artístico/cultural, grandioso em si mesmo. 

O Estrela, que tinha este nome devido ao Café Estrela, que ficava na rua da Bahia, assistia em Carlos Drummond de Andrade a alfa da constelação, seguida pelas não menos brilhantes, Alberto Campos, Emílio Moura e Milton Campos. Ao lado desta plêiade, se juntariam nomes como: Abgar Renault, Mario Casassanta, Aníbal Machado, Francisco Martins de Almeida, João Alphonsus de Guimaraens, Hamilton de Paula, Pedro Aleixo, Mário Álvares da Silva Campos, Gustavo Capanema Filho, João Passos, João Pinheiro Filho, e mais tarde, Pedro Nava, Dario de Almeida Magalhães, Ciro dos Anjos, Luís Camilo e Ascánio Lopes Quatorzevoltas.


Carlos Drummond de Andrade era natural de Itabira do Mato Dentro, que depois se chamaria apenas Itabira, sem o belo pico do Cauê. Nasceu a 31 de outubro de 1902, filho do fazendeiro Carlos de Paula Andrade e de Dona Julieta Augusta Drummond de Andrade. Em 1919 veio morar em Belo Horizonte, onde estudou no colégio Arnaldo, ao lado de Afonso Arinos e Gustavo Capanema. Anos depois, em 1934, Drummond mudaria da capital mineira para ser o chefe de gabinete do novo Ministro de Educação e velho amigo, Gustavo Capanema,no Rio de Janeiro. 


Milton Soares Campos era natural de Ponte nova. Filho do magistrado Francisco Rodrigues Campos e Dona Regina Soares Campos, Milton nasceu a 19 de agosto de 1900. Segundo Drummond, Milton Campos era "o orientador involuntário e despretensioso de nossa geração". Milton Campos figura hoje como um dos grandes homens público deste nosso país tropical. 


Emílio Guimarães Moura nasceu em Dores do Indaiá a 14 de agosto de 1902. Emílio era filho de Elói de Moura Costa e de Dona Cornélia Guimarães Moura. Emílio em 1928 recebia sua carta de Bacharel, retornando para Dores do Indaiá, onde lecionaria na Escola Normal Oficial da cidade, voltando anos depois para a capital mineira. Emílio era primo de Alberto Campos, ou melhor, de Alberto Álvares da Silva Campos, filho de Jacinto Álvares da Silva Campos e de Dona Azejúlia Alves e Silva Campos. Nasceu em Dores do Indaiá a 13 de fevereiro de 1905. Formou-se em direito pela Faculdade de Direito de Belo Horizonte em 1928. Em 1933, atuando como advogado do Banco do Brasil no Rio de Janeiro, falecia o jovem poeta e advogado, sendo sepultado em Belo Horizonte, cidade em que ele sempre fora estrela. 


O Estrela, influenciado pelo piquenique cultural da Semana da Arte Moderna de 22, queria ver de perto,o quê para ele era referência na literatura brasileira do início do século. Em 23, o grupo Estrela já havia tomado contato com a literatura modernista por meio do livro "Paulicéia Desvairada", de Mário de Andrade. Os mineiros naquela inesperada noite de abril, estiveram com Oswald de Andrade, com quem marcaram para a noite seguinte um jantar com a comitiva modernista. E foi em uma distante noite de abril, que surgiu um dos mais belos poemas da língua portuguesa, guiado pela mão do modernista Mário de Andrade, surgia na noite mineira, o iluminado "Noturno de Belo Horizonte", publicado em "Clã do Jabuti", que figura como uma homenagem aos primeiros anos da nossa capital.


Depois do jantar, que havia sido marcado na noite anterior, Carlos Drummond de Andrade, Pedro Nava, Martins de Almeida, Emílio Moura e Mário de Andrade, seguindo uma sugestão do próprio Mário, saíram para um passeio pelas ruas da nossa capital, "entre coágulos de sombra e as maravilhas de centenares milhares de brilhos vidrilhos", nas imediações do Grande Hotel. Mário passeou pela Avenida Afonso Pena e rua da Bahia, no centro de Belo Horizonte. Dali, daqueles passos noturnos, começaria a nascer o Noturno de Belo Horizonte. 

E foi na última noite da estada do grupo na capital que o poema saltou ao papel. De súbito, embebido por um espírito surgido dos fundos das Gerais, Mário de Andrade compunha na sacada do primeiro andar do Grande Hotel, o "Noturno de Belo Horizonte", uma beleza de construção da poesia moderna.

Mário que estava na salinha de espera do primeiro andar do Hotel, de repente levantou-se e foi andando para a sacada. Ali parou, pôs a mão no parapeito, respirou longamente o ar impregnado de Brasil e deixou verter de seus poros, seu coração, suas mãos, o mistério condensado nas Minas Gerias, o espírito irrequieto dos Bandeirantes, a busca incessante dos amantes, as quedas das Cascatas-Dantas-Motas, o segredo eterno dos Buritizais... Entre tantos versos maravilhosos, podemos ler: "...Formamos um assombro de misérias e grandezas...", "...Somos aqui nesta terra, o grande milagre do amor...". 


O poema vai longe, ora com calmaria de riacho, ora sinuoso montanhês... As palavras e expressões nos remetem a um Brasil de brasilidades. País das "noites cabindas, das ribanceiras dolentes, do silêncio fresco despencando das árvores, das carapinhas fofas polvilhadas com a prata da Via Láctea, das planícies altas, dos mineiros pintando diariamente o céu de azul com os pincéis das macaúbas folhadas, da barcaça descendo o rio ritmada pelos golpes dos remeiros, dos cerrados onde o guache passa rápido, da serra do Rola Moça, das esmeraldas das araras, dos rubis dos colibris, das orquídeas desiguais - filho luso da beleza e da melancolia... Brasil, nome de vegetal...". 


De 1924 para cá, posso dizer que o poema de Mário de Andrade permanece atual, como o bigode de Carlitos, a música de Mozart, os quadros de Van Gogh. É no Noturno de Belo Horizonte, que sabiamente Mário filosofa: "o amor não é a paz, bem mais bonito que ela, porque é um completamento!...’. Mário sabia o que estava falando e falava pela boca de um anjo, um anjo poeta...

Petrônio Souza é jornalista e escritor[email protected]