Mais um conto de Guilherme

O motorista do ônibus pediu ao passageiro que ficasse na manha, assim seria melhor.

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

  

(http://opatifundio.com/site/?p=1832)

 

 

  

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

(http://blogdoduilio.folha.blog.uol.com.br/arch2009-04-01_2009-04-15.html)

 

  

  

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

(http://sorisomail.com/email/2310/afinal-o-diabo-existe-mesmo.html)

 

 

 

 

 

  

 

 

                     Homenageando vida e obra do Dr. José Ângelo Gaiarsa (1920 - 2010)

  

 

 

 

 

19.10.2010 - Baú quer dizer 'ônibus' e ficar na manha significa 'ficar calado'  - Muito interessante nos contos do geógrafo e escritor Guilherme Carvalho da Silva, além da qualidade literária de suas narrativas, é que ele utiliza, nas suas estórias curtas, expressões que ouvimos na rua, em Brasília, nos dias de hoje.  F. A. L. Bittencourt ([email protected])

 

 

 

O BAÚ
 

                                Guilherme Carvalho da Silva

 

A espera na parada sempre é infinita. Dois minutos, uma hora, meia, cinco dias. Vai saber quanto tempo se passa desde que você chega nela. A moça simpática fica logo com a cara fechada quando você acende um cigarro e da simpatia você vê surgir um ar de serrismo-antitabagista-paulistano-elite-classe-média-arauto-da-moral-e-dos-bons-constumes. Pô, espaço público, área aberta. Debaixo de uma árvore na verdade, porque o ônibus para, não na parada, mas antes dela alguns metros. Beleza que você tem panturrilhas maravilhosas e esse ar de simpatia molhada. Aí vou pra mais longe, com minha culpa cristã nos pulmões e nas têmporas. E nada de ônibus. Mas, excetuando-se a migração eterna em prol de não matar instantaneamente alguém com minha fumaça, o cigarro é o melhor companheiro da espera.

Escolha sem carro. Falta de dinheiro mais que tudo. Podia ter feito um financiamento em oito, dez anos, escolhi o ônibus. E ele nunca vem na hora certa. Dureza mesmo é quando nem com cigarro se está. Aí o processo é louco. Dia estranho mesmo foi aquele em que quando cheguei lá estava o ônibus parado me esperando. Vi-o de longe, não corri porque sei que toda vez que corro ele sai voado. Fui calmamente, avistava-o com certo furor e ansiedade, mas ia devagar, contando os passos para a redenção. Quando cheguei ao lado da porta do ônibus, o motorista a abriu e disse: “só faltava você”.

Confesso que fiquei meio grilado de entrar no baú. Sei lá, parecia coisa do tinhoso. Mas a vontade de se realizar uma vez na vida com o ônibus parado me esperando foi maior que qualquer medo. Quando fui pagar os dois reais, algo mais surreal ainda aconteceu, o motorista/cobrador mandou: “pra você, é de graça”. Achei aquilo meio nonsense, mas não questionei. Passei a roleta e notei que havia apenas umas oito pessoas no ônibus. Sentei-me como de costume meio na frente, meio no meio, mas num banco livre para poder esticar as pernas sem relar em ninguém.

Um dos tiozinhos que estava no ônibus tinha um Masbaha e parecia orar. Olhou pra mim e me ofereceu o terço. Fiz uma cara de “qualé?” e virei minha cara pra olhar pela janela. Pelo reflexo no vidro eu vi que um casal que estava quase ao meu lado se amassava forte, a garota enfiava a mão dentro da calça do cara. Achei meio louco aquilo, me virei e olhei sem ser pelo reflexo. A mina me olhou e perguntou: “quer se juntar?”. Achei extremamente atraente a proposta, mas o tiozinho potencialmente muçulmano me olhou com um ar recriminador. Fiquei na minha e fiz uma cara de “hoje não, mas…”.

Havia começado a chover. A chuva era torrencial e o trânsito estava parado. Peguei meu “Porque te amo NÃO nascerás” e comecei a ler o segundo capítulo, quando de repente a luz do baú se apagou. Fiquei meio puto, e gritei pro motorista: “tem gente querendo ler!”. O motora respondeu lá da frente: “fica na manha que sem luz vai ser melhor”.

“Vai ser melhor o que?” pensei com os meus botões, mas resolvi abdicar de uma reclamação mais veemente, porque, afinal, o motora tinha me esperado e me deixado entrar sem pagar nada. Encostei a cabeça no vidro e fiquei escutando uns gemidos baixinhos. Olhei pro lado e vi que o casal estava até comportado, quando olhei pra trás reparei que um tiozinho tava carcando outro. Olhei logo pra frente pra não receber outro convite.

Do nada uma mina sentou-se ao meu lado. Não tinha visto aquela garota até então. Ela tinha um ar meio macabro, ainda mais no escuro do buzão. Ela pegou o aparelho celular dela e começou a brincar com um joguinho, fiquei curioso e vi que era o da minhoca. Quando olhei pra ela melhor, vi que ela tinha um aspecto ainda mais macabro, com aquela luz abafada iluminando a cara dela. Ela começou a falar qualquer coisa numa língua não identificável, fiquei com mais medo da dona. Foi aí que ela desligou o celular passou o braço sobre meus ombros e começou a me fazer um cafuné. Fiquei mais tranquilo, afinal, sou amplamente favorável à música: “um cafuné na cabeça, malandro, eu quero até de macaco”.

“Existem outras luzes que você deve deixar te tocar”, disse a maluca do meu lado enquanto fazia o cafuné. “To afim de luzes não, esse cafuné ta tudo de bom”, disse me recostando em seu ombro. Logo ela começou a falar na língua bizarra e eu comecei a ficar com medo de novo. Sai de cima do ombro dela e olhei bem em seus olhos. Um calafrio me percorreu a espinha. Ela me deu um beijo na testa se levantou e sentou-se em outro banco.

Quando tudo ia ficando mais tranquilo, e o ônibus parecia até que ficava mais rápido que um poste por minuto, uma tiazinha levantou e começou a falar “tira a mão seu louco, tira a mão!”. Tentei reparar no que acontecia de fato, mas não vi direito, só sei que a tiazinha passou a roleta e se sentou ao lado do motorista. Não consegui ver direito quem era o doidão que tava passando a mão nela, mas fiquei ligado pra não chegar mais um maluco do meu lado.

A chuva começava a passar e dava pra ver melhor do lado de fora, foi aí que eu vi que o ônibus tava em qualquer lugar que não era o rumo da minha casa. Desembacei o vidro da janela e vi uma estrada de terra e um matagal. Fiquei meio atônito, dei o sinal, passei a roleta e fui pra porta do baú. O motorista parecia que nem tinha ouvido o sinal, puxei de novo a cordinha e falei pro cara “pô, abre essa m. aí cara, pensei que o buzão fosse pra Sul…”. “Esse aqui vai pra onde você quiser, é só pensar”, disse o motorista enquanto acendia as luzes do ônibus. “(Pô), só quero ir pra casa agora…”, falei meio sem saco e pegando um cigarro. “Pode fumar a vontade”, ele alertou. “Mas eu não pedi” falei enquanto acendia o cigarro. “Ok, é sua casa mesmo? Tem muitas possibilidades pela frente, todas na verdade” o motorista falou manso.

Fiquei fumando o cigarro um tempo enquanto olhava a galera dentro do buzão. Todos me olhavam com um sorrisinho de canto de boca, a maluca que falava coisas na língua dos et’s me chamava com a mão e o casalzinho se pegava forte me chamando também.

Olhei o motora e vi que tinha um rabão dependurado no banco. Era um rabo meio careca, mas com alguns pelos e na ponta fazia um triângulo quase perfeito. Supus comigo “caraca, acho que esse motora é o cramulhão…”. Cheguei bem do lado dele e confirmei: um puta cheiro de enxofre. “É, minha observação foi sagaz, trata-se mesmo do sete-pele”, concluí.

Confesso que fiquei com medo, mas fui decidido, olhei pro diabão e falei: “mano, eu quero descer na porta da minha casa, ok?”. “Só isso?”, disse ele. “SÓ!” falei bruscamente. “Bom, cada um com seus desejos…” falou o capeta arregaçando no acelerador. Quando notei já estava de frente a minha casa, só que o maluco não abria a porta. “Abre essa m., mermão, ta ficando louco?”, bradei com toda a minha coragem. “É só agir com polidez e apertar a minha mão, pra gente selar esse acordo”, retrucou calmamente o belzebu da cooperativa de transportes. Apertei a mão do figura e ele me deu uma unhada que saiu sangue. “Fila da p.!” gritei.

A porta do baú abriu e eu saí. Cheguei a minha casa bastante confuso e maldizendo o transporte público: “se eu tivesse um carro nunca teria rolado isso, só quem é quebrado que tem que passar por esse tipo de situação”, pensei enquanto cuidava da unhada do filho das trevas.

Enfim, desde esse dia eu não confio em ônibus parado à minha espera. O problema é essa sensação de vazio que não passa nunca desde então, parece que falta algo aqui dentro…

E esse ônibus nunca vem.

(http://catandocontos.wordpress.com/2010/10/18/o-bau/)