Maiakovski/Faustino: confronto

Por Carlos Evandro Martins Eulálio

“A palavra, a exemplo da estrutura social, da vida cotidiana, da roupa, do ar, exige ventilação, limpeza, lavagem.” Maiakovski
 
“A boa poesia eleva, aperfeiçoa a língua: a má avilta o idioma, e o mau poeta contribui para rebaixar-lhe os padrões.” Mário Faustino
 
I – Maiakovski / Faustino: situação
 
            Maiakovski e Mário Faustino possuem algo em comum, não apenas pelo fato de terem realizado uma obra de crítica literária de caráter pedagógico, mas também por terem produzido seus trabalhos de estética em países que, coincidentemente passavam, na época em que escreveram, por radicais transformações de cunho literário.
            Na Rússia, a atuação de Maiakovski acontece com o surgimento do Futurismo e com o desencadear do Cubo-Futurismo nos anos 1910 / 1912, sendo nesse país o período de 1917 a 1927 uma das décadas mais fecundas no âmbito da criação artística.
            No Brasil, o trabalho crítico e literário de Mário Faustino acontece na época mais fértil de nossa história literária, após o Modernismo de 1922: o final da década de 1950, que registra no campo editorial a publicação de obras do porte de “Grande Sertão: veredas”, de Guimarães Rosa, e “Duas Águas”, de João Cabral de Melo Neto. Ressaltem-se nessa época o despontar e a ascensão do Concretismo e de outros movimentos literários que a ele se somavam, caracterizando o que denominamos vanguardas brasileiras.
            Maiakovski, falecido aos 36 anos, esteve ligado às mais avançadas pesquisas estéticas da Rússia, no começo do século. Fez poesia, crítica, pintura e cinema. Deixou-nos a obra “Como fazer versos”, de relevância didática, onde expõe ensaios de poética e algumas noções de como fazer poesia.
            Mário Faustino, também prematuramente falecido aos 32 anos, foi poeta, ensaísta, crítico de arte, tradutor e jornalista. Teve papel destacado no meio intelectual de seu tempo. No período de 1956 a 1958, época de maior efervescência de nossa poesia de vanguarda, editou no Suplemento Dominical do Jornal do Brasil (SDJB) uma página intitulada “Poesia-Experiência, na qual exerce como pioneiro entre nós uma crítica literária de caráter instrumental e didático, dedicada exclusivamente à poesia.
 
II Diálogos de Oficina e A Poética de Maiakovski
 
            O ensaio “Diálogos de Oficina”, de Mário Faustino, reflete acerca da teleologia poética, da deontologia do poeta e da natureza da poesia. O texto segue o estilo dos diálogos de Platão. Os interlocutores são dois poetas que entre si trocam experiências poéticas, manifestando concepções a respeito da arte de fazer poesia:
                                       “Dois poetas trabalham na oficina que compartilham. Nas
                                        Horas de trégua, quando guardam fatigados o silêncio, dis-
                                       cutem seu ofício. Não pretendem dizer-se novidades, nem
                                       um ao outro expor-se à admiração; querem somente escla-
                                       recer, fixar e trocar experiências.” (FAUSTINO, 1977)
 
            Os “Diálogos” compreendem três partes: Para que poesia?, O poeta e seu mundo e Que é poesia? 
 
 
PARA QUE POESIA?
 
            Nessa primeira parte, Faustino supõe a arte poética como um meio e jamais como um fim em si mesma. Poesia que, para o autor, converte-se em instrumento apto a ensinar, comover, deleitar. Deleitar, no sentido de rejubilar os homens, neles estimulando a alegria de viver; comover, à medida que privilegia o trágico ou qualquer outra forma de poesia absoluta, como elemento gerador, pela qual sublima a alma humana ante as vicissitudes da vida, advindo daí, por consequência, a intenção pedagógica do fazer poético:
 
                                   Poucos instrumentos de iluminação do negro espaço, onde
                                   vemos, parecem-me mais poderosos, mais diretos,     mais
                                   seguros e mais duráveis que a luz que emana de um genu-
                                   íno poema.”(FAUSTINO, 1977)
 
            Surpreendemos nos textos de Maiakovski idêntica concepção, quando ele se refere à criação artística como instrumento capaz de agir em nossa vida, de modo a organizá-la e a melhorá-la.
            O didatismo poético de ambos concebe a poesia como decorrente de um trabalho necessário e útil às nossas vidas:
 
                                   A criação artística é reconhecida como trabalho necessário,
                                   de acordo com as exigências de nosso consumidor autênti-
                                   co de hoje, não  como  uma palavra  para descanso, como
                                   divertimento, mas como elaboração  das palavras capazes
                                   de organizar e melhorar a nossa atuação na vida.” 
                                   (MAIAKOVSKI, 1971)
 
            Em outro trecho, Mário Faustino enfatiza o caráter social da poesia; a maneira como a poesia age sobre a sociedade na qual se manifesta: resgatando o seu passado, consolidando a sua cultura, criando utopias, alimentando ideologias que possam contribuir para a transformação social de um povo, enfim, tornando a língua mais apta e mais bela, mediante o exercício da mais alta expressão verbal: “Sem uma linguagem eficiente, precisa, maleável, clara, econômica (e bela), uma sociedade dificilmente poderia desenvolver-se.” (FAUSTINO,1977)
            Maiakovski também alude à poesia que se identifica com a realidade contemporânea de um povo. Ciente desse fato, soube, como nenhum outro artista de seu tempo, registrar o revolucionário momento em que vivia a Rússia nos anos de 1916 e 1917. Admite a relatividade da produção poética, ao declarar que é importante “ter sempre diante dos olhos o auditório para o qual o poema se dirige.” Ao tempo em que sugere o emprego na poesia de uma linguagem clara e concisa, adverte contra os riscos da vulgaridade.
            Sobre os excessos de rebuscamentos, contra os quais, também à maneira de Faustino, insurge-se Maiakovski, ao defender a economia de meios na linguagem artística:
 
            “Lembrem-se constantemente de que o regime de economia na arte é sempre uma regra importantíssima para toda a produção de valores estéticos.” (MAIAKOVSKI, 1971).
            Em sua declaração de princípios poéticos, o autor reforça o que teoriza:
 
            “Eu
            à poesia
            só permito uma forma:
            concisão,
            precisão das fórmulas
            matemáticas.”                                 
                                      (MAIAKOVSKI, 1978)
 
 
O POETA E SEU MUNDO
 
            Nesse capítulo, “os diálogos” não só propõem caracterizar o poeta contemporâneo diante dos problemas de sua época, mas também procuram revelar, do ponto de vista do artista, os possíveis mistérios que presidem o fenômeno da criação poética. É nesse particular que nos defrontamos com dois teóricos que, embora com objetivos imediatos e aparentemente antagônicos, apresentam, inconfundível semelhança de propósitos.
            Para Mário Faustino, o poeta é visto de duas formas: a primeira como ser humano, cuja condição de vida não ultrapassa a dos demais indivíduos; a segunda, como artista, capaz de comportar em si o duplo: receptor de fenômenos naturais e sociais e emissor dessa percepção, de modo totalizador, de um e de uma época.
            Concebendo a poesia como forma de produção, Maiakovski não insere o poeta numa categoria especial, pois o considera “um produtor” cujo trabalho deve ser comparado à tarefa do operário e, como tal, deve portar-se. Aqui vemos implícito em Mário Faustino esse tipo de raciocínio:
 
                                               “O primeiro dever do poeta é ser bom poeta, como a
                                               principal obrigação perante si mesmo e à sociedade,
                                               de um médico, de um motorista e de um lavrador, é
                                               serem bons profissionais, cada um em sua atividade.”
                                                                                                   (FAUSTINO, 1977)
 
 
            Ao tentar estabelecer as regras do jogo poético, Mário Faustino adverte o poeta, alguém especial capaz de perceber e expressar a sua realidade, no sentido de alimentar, aperfeiçoar e exercer potencialmente essa dupla aptidão, pois do contrário a percepção resultará em simples observação do mundo que o cerca.
            Considerando que o poeta deva perceber o universo de forma concreta e abstrata ao mesmo tempo, não só por meio dos sentidos, mas também pelo raciocínio, Faustino aponta os seguintes mecanismos desse raciocínio: I – pensar o mundo com objetividade; II – raciocinar a um tempo sintética e analiticamente. Para isso, acrescentem-se ao poeta certa medida de conhecimentos filosóficos, sociais e políticos, noções de estética geral, intimidade com a prosa e as demais artes, familiaridade cotidiana com os acontecimentos do mundo exterior, autoconhecimento, autocrítica etc.; III – raciocinar em projeção, levando sempre em conta o ritmo das transformações atuais em situações futuras; em outras palavras: conceber o mundo em evolução.
            Esse último tipo de raciocínio está ligado intimamente ao raciocínio utópico, entendida a palavra utopia, não como sonho irrealizável, mas como algo possível de acontecer, dentro das coordenadas do presente conhecido.
            Retomando as formulações teóricas de Maiakovski, vamos identificar, com relação a esses aspectos, muitos pontos em comum com as de Mário Faustino. Para Maiakovski, um produtor de versos deve também dedicar-se ao trabalho incessante, diário, para o aperfeiçoamento no ofício e acúmulo das preparações poéticas. Somente após ter em vista um encargo social claro, bem definido, é que o poeta deve iniciar seu empreendimento artístico. Para a compreensão desse encargo, urge que o poeta esteja no centro dos acontecimentos e trabalhos, devendo levar em conta: o conhecimento da teoria econômica, o conhecimento da vida real, a penetração na História da Ciência. (MAIAKOVSKI, 1971). Note-se nesse aspecto que os objetivos de Maiakovski são direcionados para a produção de um texto poético mais engajado politicamente, em virtude do papel do poeta à época em que viveu na Rússia, no ano de 1917.
 
 
 
 
QUE É POESIA?
 
 
            Na terceira e última parte, “os diálogos” prendem-se ao conceito de poesia, questionando-a, inicialmente, em oposição à prosa. Como a distinção mais comum que se faz entre prosa e poesia (formal e quantitativa) limita-se à dissociação da prosa de verso, Mário Faustino concentra-se na linguagem como forma de depreender as fronteiras do prosaico e do poético. Assim, para o autor, o prosaico será o discurso sobre o objeto, e o poético, o discurso criador / recriador do objeto: “No poético, o artista organiza, nomeia, reconstitui, recria o universo por meio de palavras-objetos,que doa, que oferece ao leitor ou ouvinte.” (FAUSTINO, 1977).
            A linguagem prosaica, comunicativa por natureza, beira o inconfundível; a linguagem poética, criativa por excelência, irmana-se ao ambíguo e ao mistério, daí a sugestão de Mário Faustino: “o poético não teria de ser compreendido e sim percebido.”
            Os conceitos de Mário Faustino aproximam-se aos de Jakobson, quando o linguísta admite o poético na obra literária, se a função poética tem alcance decisivo: “A palavra é então experimentada como palavra e não como simples substituto do objeto nomeado, nem como explosão de emoção.” (JAKOBSON, 1978). Partindo desse princípio, Chklovski, na esteira de outros formalistas russos, estabelece que a oposição essencial entre as leis da linguagem poética e as da não poética está na perceptividade da primeira e automatização da segunda (cf. Schnaiderman, 1971, p. 14). A linguagem poética torna estranho o habitual, apresentando-o numa esfera de percepção nova, num contexto inesperado.
            Com relação ao aspecto formal da poesia, Maiakovski é categórico:
                                                          
                                               Não queremos saber de nenhuma diferença entre a poesia a
                                               prosa e a linguagem prática. (...) Nós conhecemos um único
                                               material da palavra e aplicamos a ele a elaboração de hoje em
                                               dia. (...) Trabalhamos com a organização dos sons da língua,
                                               a polifonia do ritmo; a simplificação das construções vocabula-
                                               res, a precisão da expressividade linguística, a elaboração de
                                               novos processos temáticos.” (MAIAKOVSKI, 1971).
 
            Tanto para Mário Faustino quanto para Maiakovski, a poesia deve existir na confluência dos constituintes formal e social. O formal compreende tão-somente a novidade e o inesperado que desautomatizam a manifestação da linguagem, mas também consiste no emprego da medida e do ritmo inovadores que subvertem a tradicional pontuação e eliminam os velhos clichês que geralmente comparecem na tradicional sintaxe linear.
            Para Faustino, o social deve na poesia expressar sua época, seu povo e sua terra, por meio de uma arte poética participante, crítica e transformadora. Para Maiakovski, o social diz respeito ao encargo decorrente da conscientização do poeta, ao dar-se conta da existência em torno de si de problemas cuja solução é concebível por meio de uma obra poética.
            Deste confronto concluímos que, embora Maiakovski tenha vivido outra realidade, em razão do contexto social e político da Rússia de seu tempo, suas ideias no campo da poética são afins com as formulações de Mário Faustino. Os dois poetas, com propósitos pedagógicos semelhantes, manifestaram identidade de princípios acerca do fenômeno da criação poética. Da perspectiva de Mário Faustino, a poesia de hoje é um continuum da poesia da tradição, fonte de saber contemporâneo, cabendo ao poeta revivificá-la e aproveitá-la, readaptando-a a novas necessidades. Maiakovski, ao  conclamar os trabalhadores da palavra para que reexaminassem o acervo do velho material vocabular, sugeria que se criasse, a partir daí, um novo discurso que também pudesse expressar a realidade atual.               
 
REFERÊNCIAS
 
ARISTÓTELES, Poética. Tradução de Eudoro de Sousa. São Paulo : Abril Cultural, 1979.
FAUSTINO, Mário. Poesia-experiência. São Paulo : Perspectiva, 1977
JAKOBSON, Roman. O que é a poesia. In Círculo Linguístico de Praga, org. Dionísio Toledo, Porto Alegre : Globo, 1978.
MAIAKOVSKI. Como fazer versos. In SCHNAIDERMAN, Boris. A poética de Maiakovski. São Paulo : Perspectiva, 1977.
PEIXOTO, Fernando. Maiakovski: vida e obra. Rio de Janeiro : Paz e Terra, 1978
SCHNAIDERMAN, Boris. A poética de Maiakovski. São Paulo : Perspectiva, 1977.