Mário Faustino
Mário Faustino

Prof. Carlos Evandro M. Eulálio

 

Palestra proferida no 8° Círculo Literário Virtual de Entretextos: Leituras Compartilhadas de Mário Faustino, no dia 17 de outubro de 2020.

 

Na próxima quinta-feira, 22 de outubro, o poeta e crítico literário Mário Faustino dos Santos e Silva completaria 90 anos, não fosse o fatal desastre aéreo que o vitimou, na madrugada do dia 27 de novembro de 1962.  Nesse ano, Mário completara 32 anos de idade.

No âmbito da poesia brasileira, 1930, ano de nascimento do poeta, constitui extraordinário marco na história do Modernismo Brasileiro. Após a Fase de Ruptura, ele prossegue na década de 1930 revigorado pelo espírito de liberdade estética, tanto pelos poetas que se utilizam de soluções poéticas consagradas pela tradição, com uma lírica essencial, antipitoresca, e antiprosaica, quanto por poetas que põem em prática uma poesia mais avançada em matéria de formas e temas, em constante processo de pesquisas expressivas e sempre em dia com a evolução do espírito e da literatura de  vanguarda, originária de Oswald de Andrade.

Nessa linha de produção literária, destacam-se Manoel Bandeira, Jorge de Lima, Carlos Drummond de Andrade e Murilo Mendes, sendo mais tarde ampliada com a participação de João Cabral de Melo Neto. São poetas mais empenhados em superar a dispersão e gratuidade lúdica da poesia demolidora da primeira geração modernista, sendo agora os legítimos continuadores do roteiro de liberação estética, rumo à objetividade. Esse panorama cultural brasileiro vai influir na formação literária de Mário Faustino, sobretudo em suas primeiras poesias.

Em Belém, onde residiu com familiares desde os 10 anos de idade, a convite do jornalista Carlos Castelo Branco, Mário Faustino inicia com 16 anos o jornalismo cultural no jornal A Província do Pará e, em seguida, no periódico A Folha do Norte, entre 1947 e 1949. No Suplemento Literário de A Folha do Norte, Mário colabora com os escritores Haroldo Maranhão, Oliveira Bastos, Benedito Nunes, Max Martins, Rui Barata e Clarice Lispector.

O nome do poeta vem a público pela primeira vez, em 25 de abril de 1948, quando o ensaísta e professor de literatura portuguesa da Universidade Federal do Pará, Francisco Paulo do Nascimento Mendes, publica no Suplemento Literário do jornal A Folha do Norte um longo comentário sobre os primeiros poemas de Mário Faustino, intitulado “O poeta e a rosa: primeira notícia sobre a poesia de Mário Faustino.”

O Primeiro Poema é dedicado a “F. Paulo Mendes, amigo”. Eis um fragmento desse texto:

 

Por que vos espantais se eu venho sobre as ondas?

Trago a paz e as distâncias vêm comigo

na boca tenho mundos e nos olhos palavras.

Ouvi-me.

[...]

Mas eu não sou senhor

embora venham comigo a Música e o Poema.

Por que vos ajoelhais se eu vim por sobre as ondas

e só tenho palavras?

Ouvi a minha voz de anjo que acordou:

Sou Poeta

                                               21/2/1948

 

Nesse poema percebe-se, pela seleção vocabular, a formação erudita de Mário Faustino. O eu-lírico, de procedência não revelada, declara o poder de interpretar o mundo, porque tem uma maneira singular de vê-lo. Isso é possível pelo dom da criação que somente os poetas o possuem.

Em 1955, no Rio de Janeiro, Mário publica o seu único livro de poesias, O Homem e sua Hora, com 23 poemas, assim distribuídos: O soneto “Prefácio”, que antecede os demais poemas do livro, um conjunto de 13 poemas, sob o título Disjecta Membra; Sete Sonetos de Amor e Morte e o poema-título “O Homem e sua Hora”, com 235 versos. O soneto “Prefácio” é o poema de abertura da obra. O poeta anuncia o trabalho que pretende realizar:

 

Quem fez esta manhã, quem penetrou
À noite os labirintos do tesouro,
Quem fez esta manhã predestinou
Seus temas a paráfrases do touro,
A traduções do cisne: fê-la para
Abandonar-se a mitos essenciais,
Desflorada por ímpetos de rara
Metamorfose alada, onde jamais
Se exaure o deus que muda, que transvive.
Quem fez esta manhã fê-la por ser
Um raio a fecundá-la, não por lívida
Ausência sem pecado e fê-la ter

Em si princípio e fim: ter entre aurora
E meio-dia um homem e sua hora.

 

           

Com versos decassílabos, o poema mantém cesura regular na 6ª sílaba. Quanto à forma de distribuição dos versos, segue a tradição inglesa, sem a visual partição em dois quartetos e dois tercetos. Através desse texto, o poeta anuncia a obra que pretende realizar. Os versos anafóricos “Quem fez esta manhã” (três vezes repetidos) reiteram a necessidade e o propósito de renovação da poesia brasileira.

Num lance metalinguístico, os temas poeta e criação literária são postos em evidência. A alusão ao poeta artesão, “aquele que faz”, é em seguida associada à imagem do poeta inspirado e à do poeta agonistes, na luta pelo domínio da expressão verbal. Salientem-se as principais metáforas que comparecem no texto:

A palavra manhã simboliza o tempo cuja luz ainda é pura; na Bíblia indica o tempo da graça divina e da justiça humana (Salmo 101,8); a metáfora manhã, por sua vez, significará também a nova poesia decorrente do esforço inventivo do criador que terá o poder de promover mudanças.

labirintos do tesouro: lugar da poesia; algo muito complicado e difícil de se realizar;

paráfrases do touro: o trabalho do poeta, aqui representado como símbolo de coragem e de poder fecundador;  

metamorfose alada: mais um atributo do poeta, aquele que se transforma em altos voos;

deus que muda: o poeta como alguém que sempre se transforma e tem o poder de transformar;

raio a fecundá-la: quem fez esta obra, fê-la com a intenção de instaurar o novo. O raio simboliza a suprema potência criadora.

Esse desejo de renovação da poesia brasileira, tão preconizado por Mário nos anos 1950, reflui no poema-título “O Homem e sua hora”, logo em seus primeiros versos, quando o poeta os inicia lembrando o trecho final da doxologia cristã (glorificação)  “e pelos séculos dos séculos”:

 

Et in saecula saeculorum: mas
Que século, este século - que ano
Mais-que-bissexto, este -
                                  Ai, estações -
Esta estação não é das chuvas, quando
Os frutos se preparam, nem das secas,
Quando os pomos preclaros se oferecem.
(Nem podemos chamá-la primavera,
Verão, outono, inverno, coisas que
Profundamente, Herói, desconhecemos...)
Esta é outra estação, é quando os frutos
Apodrecem e com eles quem os come.”

 

 

Essa inquietação tem seu desfecho, após dois anos da publicação do livro, no ensaio “A poesia ‘concreta’ e o momento poético brasileiro”, publicado no Jornal do Brasil, no dia 10 de fevereiro de 1957. Nesse artigo, Mário é incisivo ao cobrar dos consagrados poetas da  época uma participação mais efetiva no processo inovador da poesia de seu tempo. Faz um apelo a Carlos Drummond de Andrade, para que se manifeste não só como poeta, mas também como crítico de poesia. E o censura duramente por seu mutismo. 

Reconhece a ação de João Cabral de Melo Neto que, além de saber que a poesia tem problemas culturais, políticos e éticos, atua mais no sentido de “puxar o cordão da poesia brasileira em suas evoluções por outras praças.”       Destaca o trabalho de Bandeira como aquele que “sempre deu o que pôde, além de sua poesia, fez crítica, fez história literária, ensinou, ajudou. Não foi bastante, mas não foi culpa sua”.

Lembra Jorge de Lima por ter contribuído para libertar a linguagem poética de muita sintaxe, de muito cacoete e, apesar de ter estimulado outros, isso não bastou, não foi o suficiente.

Compara Cecília Meireles a Manuel Bandeira. Destaca a obra “O Cancioneiro da Inconfidência” como o mais harmonioso livro de poemas já publicado no Brasil, embora afirme que Cecília Meireles “esteja no seu canto; não age no sentido transformador,não puxa nem empurra”.

Há Murilo Mendes que, apesar de escrever bem sobre uma e outra coisa, posa de intelectual – “Mas também não chega”.

A respeito de Vinícius de Morais acrescenta: “Tinha muito para vir a ser um grande poeta. De repente, não se sabe o que aconteceu, foi viajar e começou a mandar de longe, para os jornais, uns poemas que não eram. Continua fazendo coisas que não são.”

Também censura Cassiano Ricardo, por publicar poemas inéditos em jornais e ao mesmo tempo manter-se à distância da crítica literária: “Os poetas nacionais não agem bem publicando poemas inéditos em jornais. Geralmente não dá certo. Deviam fazer crítica, falar-nos sobre poesia, sobre suas experiências com esta, e assim por diante. O Sr. Cassiano Ricardo também não resolve nosso problema.”

Sua reação ao marasmo em que se encontrava a poesia brasileira conflui para a Geração de 1945: é uma geração que não existe, apenas o contexto lhe confere uma existência e, quanto ao soneto, mesmo que alguns fossem de boa qualidade, isso não bastava, não passava de elemento acessório.

Finalmente o poeta-crítico justifica o extremismo da experiência concretista, afirmando que esta poderia salvar a poesia brasileira do marasmo discursivo-sentimental em que se encontrava (apesar dos esforços de João Cabral de Melo Neto e de alguns outros).

A seguir mostra o papel dos concretistas de 1956, ao propor o desaparecimento do eu-lírico em benefício da plenitude da superfície gráfica e visual; o rompimento definitivo com a sintaxe discursiva do verso, reivindicando para o texto uma estrutura própria e objetiva (ideogramática) e extraindo da palavra, enquanto objeto, suas possibilidades plásticas e sonoras. Valoriza-se então o espaço em branco do papel, como elemento funcional na construção do poema-objeto.

Apesar de aplaudir com entusiasmo essa iniciativa dos concretistas, diversa é a opção de Mário Faustino, que continua insistindo na manutenção do verso e da sintaxe linear, capazes ainda de explorar riquezas inesgotáveis na construção do fazer literário. Dirigindo-se ao leitor, questiona:

 

“Mas afinal, dirá o leitor honesto, de que precisa a poesia brasileira? Precisa de dinheiro. De uma estrutura estável como alicerce. Precisa de que  o Brasil seja rico e autoconfiante e independente em todos os sentidos. Precisa de universidades, enciclopédias, dicionários, editoras, cultura humanística, museus, bibliotecas, público inteligente, críticos de verdade, agitação, coragem. Precisa contar com uns poetas que leiam grego, com outros perseguidos pela polícia e com uns terceiros que ao mesmo tempo leiam provençal e ameacem a sociedade. Isso sem contar com uns dois ou três cuja poesia realmente consiga levantar o povo. Na falta disso, no momento, precisa-se talvez de um homem, de um que seja os três Andrades ao mesmo tempo: Mário, Oswald, Carlos. A cultura, a revolução, a boa poesia. E, sobretudo, que ame esta última acima de si mesmo – que oriente, que ajude, que ensine, que empurre” (FAUSTINO, 1977, p. 215)

 

Mário continua o ensaio, propondo soluções práticas para consecução desse propósito. E, mais adiante, o conclui com estas palavras:

 

“Finalmente, que os “concretistas”, como artistas de vanguarda, têm todo o direito, e quiçá mesmo o dever, de serem extremistas, combativos, proselitistas, exclusivistas etc. Cabe aos que não embarcam em sua arca, levá-los a sério, aproveitar-lhes a experiência, aplicá-la noutros setores e de outras maneiras, incorporá-la, enfim, à corrente viva de nossa poesia.” (FAUSTINO, 1977, p. 218) .

 

 Além do livro O Homem e sua Hora, Mário nos deixou como legado um grande número de poemas inéditos, esparsos em jornais de Belém e do Rio de Janeiro. São poemas, crônicas, contos, artigos sobre arte cinematográfica, impressões de viagens, ensaios de poética (em destaque os Diálogos de Oficina) e de crítica literária sobre poetas nacionais e estrangeiros, traduções de poetas franceses, espanhóis, ingleses, norte-americanos e de outras nacionalidades.

Todo esse material é produto da militância do poeta, durante mais de dois anos como crítico de poesia. Esse acervo tem sido publicado nos anos que se seguiram à morte do poeta, inicialmente por Assis Brasil, em 1964, ao organizar e apresentar uma coletânea de ensaios críticos sobre Mário Faustino, publicada pelas Edições GRD do Rio de Janeiro. Posteriormente Benedito Nunes, herdeiro de todo acervo bibliográfico do poeta, foi sem dúvida o seu maior estudioso.

Augusto de Campos, reuniu grande parte das traduções e Maria Eugênia Boaventura é incumbida de publicar as obras completas de Mário, em cinco volumes, pela Editora Companhia das Letras. Já foram editados “O Homem e sua Hora e outros poemas”, “De Anchieta aos Concretos” e “Artesanatos de Poesia: Fontes e Correntes da Poesia Ocidental”.

Mais recentemente Lilia Silvestre Chaves publicou “Meu caro Bené: Cartas de Mário Faustino a Benedito Nunes”, pela Secretaria de Estado de Cultura  (Secult), com apoio da Prefeitura de Santarém – Estado do Pará.

A partir de 1956, Mário Faustino passa a residir no Rio de Janeiro, onde desenvolve intensa atividade crítico-literária no Jornal do Brasil, de propriedade na época da condessa Pereira Carneiro, sua defensora intransigente (Maurina Dunshee de Abranches Pereira Carneiro, mais conhecida como Condessa Pereira Carneiro, que se casou com o conde Ernesto Pereira Carneiro, proprietário do Jornal do Brasil, jornal que herdou em 1953 e reformulou, representando uma revolução na imprensa nacional).

No Suplemento Literário do Jornal do Brasil (SDJB), Mário cria a página Poesia-Experiência, dedicada exclusivamente à poesia, cujo lema era: “Repetir para aprender, criar para renovar”. Aprender com o passado aquilo que contribuísse para revitalizar a criação poética do presente ou, conforme Benedito Nunes, “O repetir para aprender, mimese interna da literatura, como apropriação seletiva de modelos, é o make it new poundiano, capaz de reatualizar as formas do passado, em função das exigências do presente” (apud FAUSTINO, 1977, p.8).

 Essa página circulou de 23 de setembro de 1956 a 11 de janeiro de 1959. No final desse ano (1959), “decepcionado com os rumos que o suplemento tomava, Mário Faustino muda radicalmente de rota: passa a desempenhar as funções de redator e editorialista do mesmo jornal, formando dupla com Hermano Alves [...] Abandona a militância literária, mas não desiste da poesia.” (BOAVENTURA, 2002, p.19).

O interesse maior do poeta agora era compor um poema longo, a partir de fragmentos, numa perspectiva épica e dramática, à maneira dos cantos de Ezra Pound.

Mário Faustino pretendia reunir um bom número de fragmentos e publicá-los de cinco em cinco anos. O poema longo, de unidade fragmentária, seria então uma obra em progresso, que deveria durar enquanto o poeta vivesse. Os versos desses fragmentos, como afirma o poeta, equivaleriam a takes ou tomadas, isto é, a cenas montadas de um filme. O método seria ideogrâmico (ou ideográfico), não apenas linear.

Desse poema longo, cujo projeto foi interrompido com a morte do poeta,  foram encontrados apenas 12 fragmentos por Benedito Nunes, que os publicou na edição póstuma do livro O Homem e sua Hora, pela Editora Civilização Brasileira, em 1966.  

Esses fragmentos seriam escritos em diferentes momentos da existência do poeta, possibilitando-lhe estabelecer uma íntima relação entre o existencial e o poético, isto é, entre o viver e o fazer poesia, conforme palavras de Mário Faustino, dirigidas em carta de 14 de setembro de 1960 a Benedito Nunes:

 

“Conto-te como trabalho. De certo modo estou procurando fazer em poesia aquilo que, em mística, os santos chamam de oração contínua. Isto é: penso (quando verdadeiramente penso...) já em estado de poesia. Se posso, se estou sozinho, se tenho papel e lápis à mão, vou escrevendo em bruto, da mesma maneira que em cinema se tomam takes que mais tarde serão montados. Essa parte do meu trabalho se confunde com minha vida, i.e., com minha verdadeira vivência”. (NUNES, 1987, p.16).

 

Eis o trecho de um fragmento:

 

Juventude –

a jusante, a maré entrega tudo –

maravilha do vento soprando sobre maravilha

de estar vivo e capaz de sentir 

maravilhas no vento  -

amar a ilha, amar o vento, amar o sopro, o rastro  -

maravilha de estar ensimesmado

(a maravilha: vivo!)

 

Nesses fragmentos, sem abdicar do verso, o poeta adere à proposta ideogrâmica, rompe com a liearidade e faz uma exaltação à juventude. Benedito Nunes, no livro Leitura de Poesia, org. de Alfredo Bosi, publicado pela Editora Ática, 1996, p.171, faz uma belíssima análise desse poema.

O projeto do poema longo inicia-se em 1959. Por esse motivo o poeta abandona a ideia de lançar um outro livro: “A Reconstrução”. Conforme o plano de elaboração dessa obra, ela teria oito partes. Apenas a primeira foi feita, pois o poeta estava envolvido em intensa atividade crítico-literária. Nessa atividade, ele associava a experiência criativa do fazer poético com à atividade reflexiva de crítico, fenômeno observado por Benedito Nunes, ao constatar que a atividade de crítico de poesia, exercida por Mário Faustino, “teria refluído sobre o seu trabalho poético, assim como este, à medida que ia se fazendo, interferiu naquela, enquanto exercício de um saber fazer, de uma técnica ou prática do poema (apud FAUSTINO, 2002, p49).

Ressalte-se que nessa atividade, Mário Faustino identifica-se como pedagogo e enfatiza a poesia e o poeta como temas recorrentes, tanto nos ensaios de poética quanto nos poemas que produziu, em caráter instrumental e didático. Esse propósito didático tinha por finalidade não apenas ensinar a arte da poesia, mas também elevar o padrão da linguagem poemática.

Assim, perfilhando a tradição horaciana, Mário associa a experiência do fazer poético à atividade crítica. Esta comparece nos Diálogos de Oficina, aquela está implícita na maioria dos poemas que compõem o livro O Homem e sua Hora, em especial no poema-título da obra.  

Conforme Ivo Barbieri, “O Homem e sua Hora guarda e descortina, em ação poética, os princípios da poética de Mário Faustino. Diálogos de Oficina, divulgados um ano depois da publicação do poema, não são mais do que uma tradução em linguagem ensaística dos compromissos do autor já manifestados no corpo da linguagem propriamente poética.” (BARBIERI, 1979, p.72) 

O ensaio Diálogos de Oficina constitui a teoria poética mais importante de Mário Faustino. Esse ensaio representa o lado teórico da experiência prática de Mário Faustino na obra O Homem e sua Hora. Sobre esse trabalho teórico, afirma Benedito Nunes: “Se bem atentarmos para a crítica realizada em Poesia-Experiência, concluiremos que ela se coadunou com o espírito de O Homem e sua Hora, da qual é o prolongamento reflexivo. Os Diálogos são a suma poética desse livro, que relido por Mário Faustino em 1957, pareceu-lhe uma espécie de relatório de meia dúzia de anos de aprendizado poético.” (NUNES, 1986, p.34).

Os Diálogos de Oficina compõem-se de reflexões acerca do conceito, finalidade e natureza da poesia e ainda sobre a função do poeta no mundo em que vive. O texto segue o modelo dos diálogos de Platão. Os interlocutores são dois poetas que entre si revelam experiências e manifestam concepções a respeito da arte de fazer poesia. Mário Faustino assim os define:

 “Dois poetas trabalham na oficina que compartilham. Nas horas de trégua, quando guardam fatigados o silêncio, discutem seu ofício. Não pretendem dizer-se novidades, nem um ao outro expor-se à admiração; querem somente esclarecer, fixar e trocar experiências.” (FAUSTINO, 1977).

Os Diálogos de Oficina dividem-se em três sessões: Para que Poesia?, O Poeta e seu mundo, O que é Poesia?

Na primeira parte, Para que Poesia?, o autor questiona a arte como meio e jamais como um fim em si mesma. Poesia como instrumento para ensinar, comover, deleitar. Deleitar no sentido de rejubilar os homens através do vivido concreto do poema; ensinar no sentido de transmitir ao leitor não só conhecimentos, mas a experiência existencial de seu criador. Nesse ponto, grande parte da produção poética de Mário Faustino é metalinguística e está concentrada na temática da poesia e do poeta, como nestes versos do poema-título, O homem e sua Hora:

 

[...]

 

Em cemitérios amorosos, eu,

Pigmalion, talharei a nova estátua:

Estátua de marfim, cândida estátua,

Mulher primeira, fêmea de ar, de terra,

De água, de fogo – Hephaistos, sobe, ajuda-me

A compor essa estátua; fácil corpo,

Difícil Face, Santa Face – falta

O sopro acendedor de tua esperta

Inspiração...

Pronta esta estátua, agora, os deuses e eu

Miramos o milagre: branca estátua

De leite, gala, Galateia, límpida

Contrafação de canto e eternidade...

(,,,) Tomba a noite,

Mas pronta é nossa estátua, armada e tão

Plácida, prestes, pura quanto Pallas

Bordando seus bordados sem brandir

Égide aterradora. Parte, estátua,

Na terra cor de carne as vias fremem

Duras de sangue e seixos – vai aos homens

Ensinar-lhes a mágica olvidada:

Ensinar-lhes a ver a coisa, a coisa,

Não o que gira em torno dela, (...)

Vai, estátua, levar ao dicionário

A paz entre palavras conflagradas.

Ensina cada infante a discursar

Exata, ardente, claramente: nomes

Em paz com suas coisas, verbos em

Paz com o baile das coisas, oradores

Em paz com seus ouvintes, alvas páginas

Em paz com os planos atros do universo –

.....................................................................

(...) Retorna a mim, que passarei mil anos

A contemplar-te, ouvir-te, cogitar-te.

           

 Esse poema constitui um longo diálogo do poeta com o mundo, sugerindo mais do que afirmando. O poeta tem o propósito de mostrar ao leitor o verdadeiro sentido da poesia, para tanto, emprega estas metáforas eloquentes: Galateia: estátua a quem foi dada vida por Vênus (nome latino da divindade grega Afrodite, deusa da beleza e do amor), que atendeu a prece do escultor Pigmalião. Metaforicamente podemos crer que seja o próprio poema: contrafação de canto e eternidade. Hephaistos é uma referência a Hefesto, que na mitologia grega era o deus do fogo, filho de Zeus e de Hera. Teria participado da criação de Pandora, fazendo-lhe o corpo com lama. No poema é invocado pelo poeta, para que o ajude a construir sua obra.  Pigmalion: na mitologia grega, Pigmalião, famoso estatuário da Ilha de Chipre. Fez uma belíssima estátua de mármore e por ela se apaixonou. Afrodite, apiedando-se, transformou a estátua em mulher, com quem Pigmalião se casou. A estátua a que se refere Mário Faustino metaforicamente é o poema em construção. Pallas: na mitologia grega é a filha do deus Tritão, divindade protetora do Lago Tritônio, foi companheira da deusa Atena, em sua juventude. Atena a matou acidentalmente. Dali por diante, a deusa adotou o nome ritual de Palas Atena e fabricou o Palácio em honra da morta. No poema, o poeta compara sua criação a essa deusa.  E finalmente Estátua, que é metáfora do próprio poema (Galateia)

 

Na segunda parte, O poeta e seu mundo, os diálogos tratam dos deveres do poeta contemporâneo, diante dos problemas humanos de sua época e do papel que lhe cabe desempenhar no meio social em que vive, como ser humano e como artista. Como ser humano sua condição de vida não ultrapassa à dos demais seres; como artista é aquele que em si comporta o duplo: receptor de fenômenos naturais e sociais e emissor dessa percepção, de modo totalizador de um mundo e de uma época.

Consciente dessa capacidade de perceber e de expressar, cabe ao poeta aperfeiçoar e potencializar essa dupla aptidão, pondo-a em prática, pois do contrário a percepção resultará numa simples observação do mundo que o cerca. 

Considerando que o poeta deve perceber o universo, simultaneamente, concreta e abstratamente, não só através dos sentidos, mas também do raciocínio, sugere em seguida os mecanismos desse raciocínio: pensar o mundo com objetividade; raciocinar a um tempo sintética e analiticamente (para isso acrescente-se ao poeta certa medida de saber científico e humanístico); raciocinar em projeção, dando-se sempre em conta do ritmo de transformação das situações atuais em situações futuras - em outras palavras: raciocinar sobre o mundo de forma criativa e transformadora. 

O ponto alto e mais instigante dessa sessão, consiste nas considerações que faz Mário Faustino, ao abordar questões éticas do ofício do poeta, relacionando-as com o campo estético e vice-versa. Diz o poeta: 

 

“A poesia ensina: o mau poeta é um criminoso da mesma laia de um mau professor. A poesia prega: o mau poeta é igual ao falso profeta. A boa poesia eleva, aperfeiçoa  a língua:  a má avilta o idioma e o mau poeta contribui para rebaixar-lhe os padrões. Em suma, creio ser útil repetir ao máximo o truísmo: o primeiro mandamento do poeta é ser um bom poeta, como o do médico é ser um bom médico, o do professor ser bom professor, o do sacerdote ser bom sacerdote”. (FAUSTINO, 1977, p. 47).

Na terceira e última parte, O que é poesia?, os Diálogos questionam o conceito de poesia em oposição à prosa. Como a distinção mais comum que se faz entre prosa e poesia consiste apenas em dissociar prosa de verso, o autor considera a linguagem como única forma de depreender as fronteiras do prosaico e do poético. Assim, o prosaico será o discurso sobre o objeto e o poético será o discurso criador/recriador do objeto.

 “No poético, o artista organiza, nomeia, reconstitui, recria o    Universo por meio de palavras-objeto, que doa, que oferece   ao leitor ou ouvinte.” (FAUSTINO, 1977).

No discurso prosaico, o autor reflete mais o objeto; no poético, analisa-o, traduz o objeto com palavras intraduzíveis. A linguagem prosaica, comunicativa por natureza, beira a inconfundibilidade; a linguagem poética, criativa por excelência, irmana-se com o ambíguo e com o mistério: “O poético não teria de ser compreendido e sim percebido” (FAUSTINO, 1977).  Os conceitos de Mário Faustino aproximam-se dos de Jakobson, na medida em que o linguísta admite o poético na obra literária, se a função poética tem alcance decisivo: “A palavra é então experimentada como palavra e não como simples substituto do objeto nomeado, não como explosão de emoção.” (JAKOBSON, 1973)

As práticas pedagógicas de Mário Faustino não se limitaram apenas à sala de aula da Escola de Administração Pública da Fundação Getúlio Vargas, onde, no Curso especial de Planejamento, lecionou Sociologia, Filosofia Política, inglês e francês. Sua atividade como educador estende-se a outras instâncias da vida social, como nas redações dos jornais, tanto de Belém quanto do Rio de Janeiro, onde Mário Faustino desenvolveu o seu projeto pedagógico como poeta e crítico literário. 

Donde se conclui que, ao transmitir em suas obras novas formas de conhecer o mundo, através da experiência poética, e despertar no leitor a capacidade crítica para efetuar uma nova leitura de mundo, ele, poeta, estará também construindo o que Paulo Freire chama de “curiosidade epistemológica”. Na visão de Paulo Freire, a curiosidade epistemológica é construída pelo exercício crítico da capacidade de aprender.

É a curiosidade que se torna metodicamente rigorosa e se opõe à curiosidade ingênua que caracteriza o senso comum. A docência crítico-literária de Mário Faustino envolve o movimento dinâmico entre o fazer e o pensar sobre o fazer. Para Mário Faustino, poeta era aquele que além de criar a boa poesia, também deveria ensinar como fazê-la.

Muito Obrigado 

                  

        

REFERÊNCIAS

 

BARBIERI, Ivo. Oficina da palavra. Rio de Janeiro : Achiamé, 1979

 

BOAVENTURA, Maria Eugênia. Um militante da poesia, apud FAUSTINO, Mário. O homem e sua hora e outros poemas, org. Maria Eugênia Boaventura, São Paulo : Companhia das Letras, 2002

 

BOSI, Alfredo. Leitura de poesia. São Paulo : Ática, 1996.

 

EULÁLIO, Carlos Evandro M. Mário Faustino revisitado: textos críticos e antologia comentada. Teresina : Academia Piauiense de Letras, 2019, Coleção Centenário, nº 115,

 

FAUSTINO, Mário. O homem e sua hora e outros poemas, org. Maria Eugênia Boaventura, São Paulo : Companhia das Letras, 2002

 

FAUSTINO, Mário. Poesia-Experiência, org. e introdução de Benedito Nunes, Perspectiva : São Paulo, 1977.

 

FREIRE, Paulo. Pedagoria da autonomia. São Paulo : Paz e Terra, 1998.

 

JAKOBSON, Roman. Linguística e Poética, in Linguística e Comunicação, São Paulo : Cultrix, 1973

 

NUNES, Benedito. A obra poética e a crítica de Mário Faustino (Com um adendo comemorativo sobre o poeta). Belém : Conselho Estadual de Cultura, Belém – Pará, 1986 (Coleção Literatura Paraense, série Eustáquio de Azevedo.

 

NUNES, Benedito. A poética de Mário Faustino: criação e aprendizagem. Teresina : Cadernos de Teresina, revista de Fundação Cultural Monsenhor Chaves, Ano I, nº 1, 1987.