É espantoso como o ciúme, que passa o tempo a fazer pequenas suposições em falso, tem pouca imaginação quando se trata de descobrir a verdade.
Marcel Proust
A Ovídio
Eu já fui uma vaca. E não estou falando no sentido figurado ou referindo-me a algum tipo de metáfora complexa. Não. Eu fui mesmo uma vaca. E mesmo que essa tenha sido a pior experiência da minha longa vida, meu terapeuta aconselhou-me a pôr no papel tudo o que aconteceu. Ele acredita que essa catarse pode expurgar as lembranças que ainda enchem a minha mente com excessiva frequência.
Meu nome é Io. Sou uma ninfa. Meu pai é Inaco, deus de um dos rios que correm pela terra de Tempe. Sempre fui muito protegida e amada e não exagero quando digo que sou a sua filha favorita. Nas florestas onde vivia – muitas delas já não existem mais – encontrava todo o sustento necessário e, junto com minhas irmãs ninfas, tinha uma existência repleta de felicidade e em total harmonia. Entretanto, essa paz foi arruinada quando, para minha desgraça, a atenção de Júpiter voltou-se para mim.
O que posso dizer sobre ele? Que era o pai de todos os deuses? Que era o senhor do raio e do trovão? Sim, ele era tudo isso, mas não há como negar que também era um libertino. Como todos os outros deuses, não podia ver um rabo de saia sem enlouquecer. E se a mortal, deusa ou ninfa não concordava em sucumbir aos seus desejos, ele não via qualquer problema em violentá-la. Afinal, todas as mulheres da terra tinham de dar graças por estarem sendo “solicitadas” por um deus. E se esse deus era Júpiter, não havia apelação ou súplica que pudesse dissuadi-lo.
O que aconteceu comigo não fugiu a essa regra. Primeiro ele tentou me ganhar pelo elogio:
- O virgem, digna de Júpiter, que farás feliz aquele (quem será?) que receberes em teu leito, vem gozar da sombra das majestosas florestas.
Depois, como eu não fizesse caso e o ignorasse acintosamente, ele começou a listar suas qualidades divinas, achando com isso que eu iria me jogar aos seus pés suplicando por seu amor:
- Se temes entrar sozinha nos antros das feras, é sob a proteção de um deus que penetrarás na solidão dos bosques, e não é um deus qualquer, mas aquele que sustenta com a mão poderosa o cetro celeste e que lança os fulminantes raios.
E o pior era que ele nem se dava conta do ridículo. Um deus poderoso gritando pelos bosques só porque estava cheio de desejo. De qualquer maneira, não preciso dizer que toda aquela “solicitude” me deixou apavorada. Assim, decidi colocar entre nós a maior distância possível. Contudo, isso só piorou a situação, pois quanto mais corria, mais ele ficava excitado
Por fim, aborrecido com a minha resistência, Júpiter resolveu dar um basta naquele corre-corre. Usando de seus poderes divinos fez baixar sobre a terra uma nuvem escura e encoberto por ela, ele me violentou. Essa foi a minha primeira grande humilhação. Ficar ali, jogada na terra, sendo usada por um deus lúbrico que nunca se importou com os sentimentos alheios, foi simplesmente horrível. Se ele teve algum prazer eu não sei; quanto a mim apenas senti vergonha. Uma imensa e degradante vergonha.
No entanto, não pensem que a minha desgraça parou por aí. Estava Júpiter tentando me consolar, prometendo-me todas as benesses do céu, quando de repente emudeceu. Tapando minha boca para que meu choro não fosse ouvido, ficou na escuta de um som que só ele era capaz de perceber. Depois de alguns segundos, sussurrou nervoso:
- Perdão, minha linda!
E num piscar de olhos fui transformada em uma vaca. Uma vaca! Não foi um cisne, uma coelhinha ou uma gatinha. Foi uma vaca! O que demonstrou, sem sombra de dúvida, a completa falta de imaginação e sensibilidade desse deus cheio de vaidade e orgulho. E a razão para que ele agisse dessa forma é simples de compreender: sua esposa, a deusa Juno, o havia descoberto.
Juno tinha uma larga experiência em traições e, portanto, sentia o cheiro delas de longe. Sem contar, é claro, que para me violar, Júpiter não fora nada discreto. Ao cobrir as terras com aquelas nuvens escuras, ele chamou a atenção da esposa. E conhecendo o marido como ela conhecia, logo notou que alguma coisa estranha estava acontecendo. Assim, transformando-me em vaca, Júpiter tentou disfarçar mais uma de suas infidelidades. No entanto, como Juno não era boba, em seguida percebeu que o marido tinha aprontado de novo. Para torturá-lo e também para afastar uma hipotética rival do páreo, ela pediu – ou melhor, exigiu – que eu lhe fosse dada de presente.
Agora imaginem a situação absurda: eu transformada em vaca – só conseguindo mugir – sendo dada de presente à esposa daquele que contra o meu desejo tomara não só a minha virgindade, mas também a minha honra. Uma situação totalmente surreal!
Enfim, depois de muito insistir, Juno conseguiu a posse da vaca que ela desconfiava ser a amante do seu “querido e divino” marido. É óbvio que a sua intenção não era a de ficar comigo. Na verdade, por ela eu teria virado churrasco naquele mesmo instante. Contudo, como se tratava de um presente do seu “digníssimo” esposo, Juno resolveu me entregar a um de seus servos, um gigante chamado Argos. Nesse momento, começava, para mim, um novo calvário.
Além de ser uma criatura imensa, Argos tinha uma particularidade muito especial: em sua cabeça havia nada mais nada menos, do que cem olhos. Sim, é isso mesmo, cem olhos, todos espalhados por aquela horrenda cabeça. Por causa disso, Juno o mantinha como guardador de suas pastagens, pois enquanto dois olhos descansavam os outros noventa e oito vigiavam o rebanho. Um horror! E eu fui parar justamente em suas mãos.
Nunca ele deixava de me vigiar. Nunca tirava aqueles olhos medonhos de cima de mim. Até mesmo quando consegui ver meu pai e avisá-lo da minha lamentável situação, Argos, sem nenhuma piedade, me levou de arrasto para longe dele, fazendo-se de surdo aos meus mugidos infelizes. Foram dias tenebrosos, posso dizer que comi a grama que o diabo amassou. E o meu pai, coitado, sendo um deus menor, nada pôde fazer por mim. Todavia, como não há desgraça que dure para sempre, a minha também estava se aproximando do seu final.
Um dia, quando pastava sob o olhar sempre atento daquele monstro, acercou-se de nós um pastor. Ele trazia algumas cabras e pedindo permissão a Argos levou-as para comer perto de mim. Corajoso, sentou-se ao lado do gigante e sem se constranger pôs-se a tocar uma gaita. A música deixou Argos encantado. Apenas mais tarde, vim a saber que aquele homem não era um pastor, mas Mercúrio, o mensageiro dos deuses e filho de Júpiter.
Parece que o “deus dos deuses” sentindo-se culpado com a minha situação e tendo receio de desafiar a esposa, resolveu pedir ao filho que, em segredo, viesse me salvar. Como Mercúrio era conhecido por sua esperteza, ele já chegou às pastagens de Argos com uma estratégia em mente. Seu plano era simples: enganar o gigante e fugir comigo. Contudo, para minha infelicidade, nada saiu como estava previsto.
Mercúrio não teve problemas em enfeitiçar Argos, tocando aquela sua música, mas quando o gigante, finalmente, adormeceu, em vez de ele me buscar e sair correndo, decidiu que precisava de um troféu. E adivinhem qual foi o troféu escolhido? A cabeça de Argos!
Sinceridade? Esses deuses estão sempre querendo se exibir, só para mostrar o quanto são bons. O problema é que com isso acabam sempre atraindo mais confusão. Assim, quando vi Mercúrio cortando a cabeça do gigante, logo percebi que algo de muito ruim iria acontecer. E é claro que eu não me enganei.
Quando soube da morte de Argos, Juno ficou enfurecida. No entanto, antes de tomar qualquer atitude ela quis prestar uma última homenagem ao seu fiel servidor. Assim, retirou todos aqueles olhos horríveis da cabeça de Argos e os pôs na sua ave favorita, dando origem ao que os mortais chamam de pavão. Em seguida, fora de si, Juno voltou toda a sua raiva contra quem ela considerava a causa daquela “terrível tragédia”, ou seja, eu.
Sem pensar duas vezes ela lançou sobre mim uma das terríveis Fúrias. A punição foi tão injusta e dolorosa que, quando percebi, estava correndo, desesperada, em busca de algum refúgio. Foi medonho! No entanto, a verdade é que eu não tinha para onde fugir e nem mesmo onde me esconder. Assim, cansada de todas aquelas humilhações, acabei caindo de joelhos na margem de um rio, conhecido pelo nome de Nilo. Ali, prostrada, apelei para aquele que havia sido a causa de toda a minha infelicidade, Júpiter.
Confesso que ao lançar minha súplica aos céus não estava esperando muita ajuda, a não ser, quem sabe, a morte. Contudo, para minha surpresa, senti que meu corpo começava a se transformar. Caíram os pelos, os chifres foram diminuindo até sumirem, os olhos voltaram a se alongar, a boca diminuiu de tamanho, meus braços e mãos reapareceram e no lugar dos cascos vi as minhas unhas. Havia me tornado novamente uma ninfa.
De tudo isso, intui o óbvio: Júpiter tinha conseguido acalmar a esposa e ela, por sua vez, concordara em devolver a minha antiga forma. Quais foram as palavras ou promessas dadas por Júpiter a Juno, eu não sei e nem me interessa saber. Naquele momento a única coisa que me importava era o fato de estar andando de novo sobre as duas pernas. Assim que pude fugi, indo em busca de meu pai, que infeliz ainda chorava por mim. No entanto, quando me viu de volta ao meu corpo de ninfa, sua alegria foi enorme. Para ele, eu havia retornado dos mortos.
A minha felicidade e alívio também foram imensos, mas o meu medo e vergonha eram ainda maiores. Entre outros problemas, temia que no lugar da fala escapasse de minha boca um mugido. Assim, enquanto meu pai comemorava a minha volta, eu permanecia calada. Desde aquele dia tenho ficado o mais distante possível de Júpiter e Juno. Eles são para mim o que de pior um deus e uma deusa podem representar. Nesse momento, meu ódio por eles apaga qualquer outro pensamento ou emoção.
Meu terapeuta diz que com o tempo e o tratamento certo voltarei a ser a ninfa que sempre fui. Eu tenho as minhas dúvidas. Afinal, traumas como o estupro e ser transformada em uma vaca são difíceis de superar. Além disso, mesmo já tendo passado algum tempo, ainda continuo com alguns hábitos bovinos, como comer grama e mugir quando estou triste. As pessoas compreendem a minha situação e evitam fazer comentários, mas isso não diminui o meu constrangimento.
De qualquer maneira, tenho me esforçado em seguir as orientações médicas. Não quero que as minhas dúvidas atrapalhem ou atrasem a minha recuperação. Espero apenas que não demore muito, pois em meus pesadelos ainda vejo aqueles olhos horríveis de Argos me seguindo e vigiando. E quando acordo, de minha boca sempre escapa, em vez de um grito, um mugido longo, triste e cheio de dor.