ELMAR CARVALHO

Durante alguns meses do ano de 1976, trabalhei no setor de encomendas internacionais (ou colis postaux) dos Correios, que funcionava num dos andares do prédio da Delegacia do Ministério da Fazenda, em Teresina. O encarregado de fiscalizar as mercadorias era o auditor-fiscal da Receita Federal José Parentes de Sampaio, com quem terminei fazendo amizade, apesar de ser bem mais velho que eu, então um garoto de 20 anos de vida. Nessa época, eu fazia o último ano do antigo científico, hoje segundo grau. Tentava me firmar como poeta, e a poesia estuava em mim com muita força e intensidade. Mostrava os poemas manuscritos, recém saídos do bico da esferográfica, ao Zé Parentes ou os recitava em voz alta e com gestos largos de muito entusiasmo. Era ele um cidadão refinado. Gostava de música erudita, de jazz e das grandes bandas americanas. Era uma cultura enciclopédica. Sabia um pouco de tudo e sabia muito de muitas coisas. Gostava de conversar com ele, quando o serviço me permitia. Ele gostava de resolver palavras cruzadas, e disso e de suas leituras adquiria muito de sua erudição. Sem ser um pernóstico, tinha um vocabulário riquíssimo, e um dia deixou-me perplexo com um advérbio que me atribuiu e que eu desconhecia na época; disse que eu era supinamente inteligente. Fiquei na dúvida se era um elogio ou se uma gozação, e por isso olhei para ele com um ar que pretendia fosse irônico. Ele sentiu a minha ignorância e traduzia o vocábulo para um português vulgar.
 
Vez ou outra, ele era visitado pelos seus colegas do Ministério da Fazenda, que eram seus amigos. Por lá passavam o ex-deputado Milton Aguiar, Chico Eduardo, pai do magistrado Carvalho Neto, Alberone Lemos e o professor Barreto, o velho Barretão de guerra, sempre alegre, de alegria esfuziante, com a sua voz de potente trombone, invariavelmente a enriquecer suas frases com a sua interjeição predileta: caramba! Alberone andava sempre elegante, a ostentar boas roupas, um belo cinto e uma fina gravata, que jamais relaxava. Gozava de prestígio no conceito das pessoas por ter o título de correspondente de importante jornal do sul do país. Era pai do Alberone Filho, grande jornalista, de redação ágil e cultor das belas letras. Falecido precocemente, deixou um romance inédito. Se não estou enganado, o Kenard Kruel, que lhe tinha admiração, andou tentando editar essa obra. Certa feita, no auge de minha empolgação juvenil, recitei para o Barretão um poema que acabara de fazer, e que terminei extraviando em minhas andanças e descuidos da mocidade. Em certo trecho, em flagrante exagero, eu dizia nesses versos que “quisera ter a humildade de um leproso”. Quando eu pronunciei essa frase, o Barreto caiu por terra, como se fosse um muçulmano, a bradar com sua voz estentórica, enquanto beijava, repetidas vezes, o tapete que cobria o piso da sala: “Grande, grande humildade! Caramba!” No começo do ano seguinte, retornei a Parnaíba, para cursar Administração de Empresas. Poucos anos depois, para minha tristeza, soube da morte de Zé Parentes, ainda relativamente novo, para os dias atuais. Ao que me parece, foi uma cultura que poderia ter se multiplicado através da escrita e da cátedra, mas que ficou contida em si mesma e nas raras ocasiões em que se manifestava através de saborosas conversas.