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O que se espera de uma obra literária? Há leitores de todos os tipos, e leituras que se prestam a muitos fins; mas quem parte para os oceanos da literatura não consegue precisar aonde as palavras conduzirão. A identificação com o tema, o maior ou o menor grau de abstração simbólica do texto, a linearidade ou alinearidade dos núcleos narrativos, os efeitos de sentido do vocabulário e da imprevisibilidade do intertextos, as vozes que se enunciam – e, claro, as experiências do próprio comandante da embarcação – conduzem a caminhos que nem sempre se consegue controlar, principalmente quando a carga associativa de percepções e representações mentais possibilitadas pelo texto é multiforme, e se insere como elemento intrínseco à própria escritura.

O que encontra ou reencontra, pois, o leitor em Histórias de Évora?

Para situar o leitor, reproduzem-se aqui duas breves passagens:

“Afagou-lhe os cabelos e as têmporas. Em seguida, seus dedos percorreram-lhe as sinuosas e bem delineadas sobrancelhas. Seguiram o contorno da boca. Pousou o côncavo das mãos sobre as maçãs do rosto em inefável massagem. Após fixá-la em profundidade, olhos nos olhos, como se quisesse lhe devassar os mais recônditos pensamentos, colheu-lhe os lábios entreabertos, ansiosos” (p.59).

“Muito vivo ainda sinto o cheiro da cera de carnaúba, amontoada num grande depósito da Casa Machado e outros armazéns. Havia as pardas, escuras, de menor valor comercial, e a cera flor, mais clara, amarelada, de bem mais alta cotação. Recordo o cheiro acre das amêndoas de babaçu e tucum, que eram revendidas para Fortaleza, Recife e outros centros exportadores” (p.75).

A adolescência viva e revivida, sobretudo. As pequenas cidades piauienses que foram expressão do extrativismo nas décadas de 1970 e 1980, personificadas em sua decadência econômica. São essas as motivações para que o juiz e integrante da Academia Piauiense de Letras, José Elmar de Melo Carvalho, o poeta de Rosa dos Ventos Gerais, no auge de sua maturidade literária, descortine as veredas da prosa romanesca, em narrativa que, fixando-se como documento vivencial de um tempo que sucumbiu, leve os leitores para além do retrato social de costumes e valores de um tempo, à curiosidade saltitante que os sentidos da imaginação instauram.

Duas palavras em síntese definiriam o projeto literário de Elmar Carvalho, em Histórias de Évora: documento e imaginação. Caberia a esta, porém, pincelar, por meio do gosto pelos detalhes, em ações reiteradas insistentemente, por meio de episódios pitorescos, dramáticos ou cômicos que, desse modo, reproduziriam subjetivamente o próprio êxtase do prazer, o tema central do romance, a aprendizagem do amor, o que com maior grau de exatidão definiria seu estilo do ponto de vista temático-discursivo.

A isso se acrescentaria o viés memorialístico que salta aos olhos, a tal ponto que acertadamente escreveu em prefácio o crítico literário Cunha e Silva Filho. Resumindo Histórias de Évora, afirmou tratar-se de seu “reencontro proustiano pela memória voluntária com seus correspondentes lugares nos quais fez o seu aprendizado sexual – e por que não? – amoroso, espaço irremovível das suas mil lembranças de situações vividas, sonhadas, de fatos pitorescos, decepcionantes, constrangedores, humorísticos, melodramáticos e tragicômicos” (P.19).

Cabe, assim, lembrar o que disse Donaldo Schiler sobre o trabalho imaginativo dos romancistas:

“Primeiro há fragmentos, lembranças, experiências, textos. Quando estes se organizam, desencadeia-se o trabalho da imaginação, e desponta o autor como fundador do universo imaginário. Não favoreceríamos a compreensão do romance, se equiparássemos o imaginário a um supermercado de pensamentos, frases buriladas, paixões. A imaginação ordena as partes num todo móvel, aberto, repleto de indeterminações: o imaginário.” (p.73)

É essa dimensão perceptual e cognitiva, alicerçada na liberdade, que as associações mentais constroem. Por isso,  apresentam-se expressivas as palavras de Schiller ao esclarecer:

 

 “Todos os sistemas de palavras e símbolos constroem o universo imaginário. Fora do imaginário fica o real, ao qual não temos acesso direto. O imaginário nos permite que dele nos apropriemos e com ele convivamos. A diferença do imaginário artístico reside na liberdade resoluta, visto que não está sujeito ao rigor da verificabilidade”. (p.73)

Em Histórias de Évora, a imaginação é ditada pela enunciação do universo do desejo masculino em criar a ambiência para que a libido seja tematizada. Seguindo esse raciocínio, são abundantes as alusões a coxas, a seios, a lábios em cenas de aberto erotismo, quando não a narração do ato sexual em si em sentenças de léxico despojado. Também frequentes as referências ao funcionamento dos cabarés e aos costumes que lhe eram comuns.

Do ponto de vista formal, Histórias de Évora é um texto comportado. O próprio autor faz questão de enfatizar: “Deixo logo bem claro que não desejei fazer obra de vanguarda. Quis apenas contar umas histórias, pois sempre entendi que um romance ou conto deve narrar algo. Contudo, não quis apenas ser um simplório contador de histórias ou “causos”. De fato, embora não se predisponha a romper com a tradição literária, não lhe faltou inventividade, considerando-se a estratégia empregada para um maior ou menor distanciamento do objeto discursivo.

Assim é que Marcos Azevedo, o protagonista, estudante secundarista, amante dos livros e da arte, que ao longo do livro se transforma em um septuagenário, declaradamente um “alter ego” do autor, propõe-se a narrar suas descobertas amorosas e a ação do tempo sobre hábitos e espaços, a partir de duas instâncias enunciativas, com foco narrativo em primeira e terceira pessoa. Demarcam-se, pelo rompimento com a linearidade do ponto de vista, não apenas duas idades cronológicas, mas também um distanciamento em relação aos acontecimentos que os tornam presentes, cristalizados pela marca da lembrança.

Para enfatizar que o tempo emergente na literatura é um tempo social, um sentido coletivo, Luis Alberto Brandão e Silvana Pessoa, em clássico estudo sobre o sujeito, o tempo e o espaço ficcionais lembram que se costuma pensar no tempo em duas perspectivas. “Uma perspectiva objetiva que associa, ao tempo, aspectos cosmológicos, físicos (o tempo como parâmetro dos movimentos descritos pelos astros celestes ou como medida do envelhecimento dos seres). E uma outra perspectiva que sugere que há, sempre, uma percepção, uma consciência do tempo – perspectiva que torna possível se falar de tempo psicológico, subjetivo, ou de tempo imaginário”(p.52). Estariam as duas perspectivas inter-relacionadas, porque são modelos de percepções, exteriores a elas, criando, dessa maneira, a referência e a interpretação.

Cria Elmar Carvalho a dimensão de um tempo imaginário, assinalado pela imprecisão (não seria inexata a linguagem do corpo?) de uma forma particular de entretenimento, ao se remeter à idade cronológica do personagem-protagonista Marcos e às ações que se relacionam de modo individual à cada fase das vivências desse  personagem. Cria um movimento que traduz as transformações do corpo físico e da geografia social e humana. Nessa tarefa, cada capítulo funciona como uma digressão a aspectos particulares da memória, que, não obstante pareçam desconectados em algumas passagens, vão gradativamente estabelecendo o vínculo causal, responsável não somente pela unidade temático-discursiva, mas também, e sobretudo, pela dimensão estética do texto. Ela é alcançada pelas descrições, em detalhes, de aspectos culturais sobre um “modos vivendi” específico como elemento de sociabilidade, o mundo dos antigos cabarés. Para atingi-lo, emprega a repetição intensa de episódios relacionados à descoberta do sexo, realçando-lhe os significados.

Nesse processo, o narrador leva o leitor, independente do foco que escolhe para contar, a questionar o que é o belo, a sentir as pulsações da adolescência sobre o corpo, a vasculhar a ousadia e os temores da frequência às casas de sexo, a conhecer e relembrar os rituais de comportamento que antecediam ao ato sexual, a mergulhar nas curiosidades, satisfações e decepções despertadas pelo amor. Conduz, ainda, o que é enfatizado pela voz que conta como fundamental para a narrativa, ao universo de Évora, uma fusão de Parnaíba e Campo Maior, conforme diz o autor, em nota de advertência.

Aqui está retratado o perímetro central de ambas as urbes, em sua atmosfera de encanto arquitetônico:

“Na Rua Grande, (...) havia os sobrados mais antigos e os luxuosos chalés e palacetes de seu apogeu comercial, da época áurea do extrativismo, da industrialização do pó da carnaúba, da maniçoba, do jaborandi, da oiticica, do algodão e do óleo de babaçu” (P.75)

“Velhas casas solarengas, vetustos sobrados, antigos casarões em estilo colonial (...) a 150 metros da matriz (...) a Zona Planetária” (p.76)

E assim se constroem as Histórias de Évora. Histórias de prazer, ruínas e sonhos, que a marca indelével do tempo e da oralidade vai tratando de passar adiante, pelo ouvido das portas e janelas e de textos que procuram traduzir a alma e a essência do que permanece para sempre. A alma e a essência de uma gente. Ouçamos o que portas, janelas e desejos têm a dizer...

Dílson Lages Monteiro  é editor de Entretextos, poeta e romancista. Autor, entre outros, de Capoeira de Espinhos.