HARDI FILHO – UM POETA OITENTÃO
Por Elmar Carvalho Em: 06/08/2014, às 18H32
ELMAR CARVALHO
No auge da reativação da UBE-PI (em Luzilândia), vendo-se, da esquerda para a direita: Rubervam Du Nascimento, José Pereira Bezerra, Elmar Carvalho, Adrião Neto, Francisco Miguel de Moura, João Pinto e Cláudio Vasconcelos. Trepado na mureta , vê-se Júlio Caribé.
No final de junho, a Academia Piauiense de Letras, por iniciativa do presidente Nelson Nery Costa, comemorou os 80 anos de idade do poeta Francisco Hardi Filho, nascido em Fortaleza – CE, mas há mais de cinco décadas radicado no Piauí, onde trabalhou, constituiu família, criou os filhos e fez suas mais caras amizades.
Por mais de 30 anos trabalhou no velho IBDF, atual IBAMA, em que chegou a exercer a Delegacia Regional de nosso Estado, na qualidade de delegado substituto. Além de seu emprego público, com o qual sustentou a família, exerceu o jornalismo, sobretudo o de caráter cultural, ao publicar seus artigos, suas crônicas e seus poemas. Também teve programa radiofônico, em que divulgou a nossa literatura e os nossos poetas e escritores.
Na solenidade acadêmica, discorreram sobre Hardi Filho os poetas e escritores Herculano Moraes e Francisco Miguel de Moura, que teceram considerações sobre sua vida e sobre sua atividade literária, de modo especial sobre sua participação no Círculo Literário Piauiense – CLIP, a que os três pertenciam. Estavam presentes outros clipianos, entre os quais Osvaldo Lemos, que escreveu uma das mais percucientes biografias de Petrônio Portella Nunes.
Quando a palavra foi facultada, senti-me quase na obrigação de ir à tribuna prestar o meu depoimento sobre o poeta. Não lhe dissequei a obra e nem falei sobre os seus grandes méritos literários; tampouco perquiri a sua mundividência. Preferi abordar a nossa amizade e companheirismo de mais de três décadas. Optei por dar à minha fala um tom mais intimista, subjetivo e familiar, posto que frequentei a sua casa em algumas ocasiões, principalmente quando ainda era um jovem bisonho e sonhador.
Passei a conhecer o Hardi Filho a partir de 1982, quando fixei residência em Teresina. A partir de então visitei o poeta, em várias ocasiões, em companhia do Kenard Kruel e de outros escritores, entre os quais o seu grande amigo Francisco Miguel de Moura. Ficávamos sob uma das árvores de seu jardim. Éramos bem acolhidos pelo poeta e por sua esposa, dona Adélia, sempre solícita, atenciosa, cordial.
Em nossas primeiras conversas, fiz questão de dizer ao casal amigo que já lhes conhecia o filho Francélio, na época estudante universitário em Parnaíba. Tinha ele forte inclinação para as artes plásticas, assim como o pai, que fizera ilustrações diversas e era um notável desenhista, tendo feito belas capas para seus próprios livros e para os de escritores de sua amizade. O Francélio elaborou importantes ilustrações para o jornal alternativo Inovação, de que fiz parte, mesmo quando passei a residir em Teresina.
Palestrávamos sobre os mais variados assuntos, mas preferencialmente sobre os relacionados com arte e literatura. Hardi era sempre ponderado, judicioso, conquanto firme em suas opiniões. Nunca fazia elogios literários descabidos, embora fosse um “diplomata” em suas palavras. Quando solicitado, com insistência, a fazer prefácios ou apresentações, era cuidadoso com as palavras, e quando os textos não mereciam considerações favoráveis, falava sobre a temática e sobre o autor.
Em 1986 um grupo de literatos, entre os quais Chico Miguel, Magalhães da Costa, Herculano Moraes, Rubervam Du Nascimento, Adrião Neto, Kenard Kruel e este diarista, resolveu ressuscitar a União Brasileira de Escritores do Piauí. Hardi fez parte desse time de agitadores culturais, e salvo engano foi membro da primeira diretoria (1986-1988), presidida por Chico Miguel, que deu existência jurídica e efetiva à entidade. Fui seu presidente na gestão seguinte (1988-1990). Fazíamos uma reunião por semana, e Hardi estava sempre presente, mesmo quando ingressou na APL, um pouco depois.
Fiz em meu depoimento um breve paralelo entre o Hardi e o Chico Miguel, pela amizade antiga entre eles, por serem dois grandes intelectuais e por serem praticamente da mesma idade. Disse que o Hardi Filho era mais afinado com a tradição poética, embora tenha feito e faça belos poemas de feição modernista; o Chico desde cedo aderiu à vanguarda poética, inclusive praticando poemas concretistas e visuais, conquanto ainda hoje e sempre cometa sonetos rimados e metrificados, quando bem entende, sem medo do patrulhamento literário de pretensos vanguardistas.
Em um aniversário na casa do Chico Miguel, há mais ou menos duas décadas, falamos das novas tecnologias, que então já começavam a proliferar. O poeta anfitrião falou com muito entusiasmo das vantagens do computador, que então já usava. Discutimos as vantagens desse equipamento para um escritor, entre as quais a utilização da tecla para deletar ou apagar, dos atalhos para copiar e colar, quando queríamos mudar a localização de uma frase ou verso, ou transcrever uma citação. O nosso Hardi foi categórico em dizer que gostava de escrever seus textos à mão, e depois passá-los a limpo, na sua velha máquina de datilografia. De lá a esta parte, nunca fez uso de note book, tablet e demais parafernália tecnológica, fiel a si mesmo como sempre tem sido.
Na primeira metade da década de 80, fui morar em uma república, da qual faziam parte o Nadal e o Gelvan Lisboa, localizada na Rua Areolino de Abreu, perto do edifício da Caixa Econômica Federal. Nesse velho casarão, segundo nos contaram, havia residido um engenheiro eletrônico, que teria cometido suicídio, por motivo que desconheço.
Na porta de um dos quartos, alguém havia estampado, em letras manuscritas, um lindo e melancólico poema de Hardi Filho. A tinta das letras, embora não fosse vermelha, parecia escorrer como sangue ainda fresco. No silêncio e na solidão das noites mortas, sentindo o inebriante perfume de uma cajazeira em flor, eu parecia sentir a presença do suicida a recitar os versos de Hardi. Talvez tenha sido aquela – o poema vazado em velha porta – uma das maiores homenagens, apesar de anônima, que já lhe tenham feito.
Foi nesse velho solar, talvez um tanto perturbado por sua atmosfera soturna e um tanto fantasmagórica, num cenário em que pareciam vagar o vulto indefinido do suicida e ressoar os versos melancólicos de Hardi, que escrevi o meu poema A casa no tempo, cujos versos deixei impregnados naquelas velhas paredes: “A casa vive em mim. / Vive em mim / com seus gemidos / de fantasmas que / arrastam correntes / por entre ais doloridos. / Vive em mim / com suas lamentações de suicidas / que gemem e gemem (...).”