ELMAR CARVALHO

 

Pela televisão, soube da morte de Giuliano Gemma, no dia 1º, terça-feira, perto de Roma, vítima de acidente automobilístico. Na minha meninice e início de adolescência assisti a alguns de seus filmes, no velho Cine Nazaré, em Campo Maior. Era ele um dos mais famosos e atuantes atores da época. Foi um dos ídolos de minha geração.

 

Fez o papel de Ringo em vários filmes. Foi um dos mais célebres protagonistas do bang-bang italiano, também chamado de faroeste macarrônico ou spaghetti western. Considerado galã e bom ator, sua filmografia é extensa. Atuou, entre outros, nos seguintes filmes: Uma pistola para Ringo, O dólar furado, Dias de vingança, Dias de ira, O leopardo, Minha lei é matar ou morrer e Maciste l'eroe più grande del mondo.

 

O Cine Nazaré, pertencente ao Sr. Zacarias Gondin Lins Castelo Branco, ficava ao lado da matriz, hoje Catedral de Santo Antônio do Surubim, entre as praças Bona Primo e Rui Barbosa. Fui a algumas sessões levado por meu pai (que também me levou a partidas de futebol e a espetáculos circenses), quando ainda menino, e sozinho em minha adolescência.

 

Havia um grande anteparo com espelho, que separava o hall de entrada da sala de exibição propriamente dita. As cadeiras eram de madeira, e a parte para sentar era móvel, de forma que poderia ficar na vertical, quando desocupada. Parecia nele ter cadeira cativa a negra Dodó, esguia e um tanto espigada, descendente de escravos, trazida de Colinas (MA), segundo consta, pelo padre Benedito Portela; morava ela na Praça Bona Prima ou em seu entorno.

 

Como um Cérbero do bem, guardava-lhe a porta de entrada o senhor Estácio, pai do historiador padre Cláudio Melo. Só que, enquanto Cérbero era guardião do Hades, o reino das sombras subterrâneas, o velho Estácio vigiava a portaria de um paraíso, um Éden cinematográfico; ao passo que o monstruoso cão infernal fazia festas aos que entravam e impedia ferozmente a saída, o segundo exigia o bilhete de entrada e franqueava, com a maior prodigalidade, a saída.

 

Não havia ar condicionado, de modo que as várias portas laterais ficavam abertas, permitindo que o vento circulasse, pelo que o ar não se tornava viciado. Ademais, existiam grandes ventiladores, que mais pareciam as hélices de um teco-teco, o que dava certo conforto aos clientes. O proprietário era quem fazia as propagandas das películas, fazendo questão de enfatizar pelos alto-falantes, quando era o caso, de que eram em technicolor. Ele próprio anunciava as novidades pelas ruas de Campo Maior, com o uso de amplificadoras em sua Rural Willys vermelha e branca, que eram as cores do Caiçara, time famoso e valente na época, sobretudo nas vezes em que ele foi seu presidente. Por essa razão, eu lhe tinha simpatia, e não batia as bancadas das cadeiras de seu cinema.

 

Apesar disso, certa vez em que o Otaviano Furtado do Vale, após dizer que as coisas não mudavam em Campo Maior, que era sempre a mesma rotina e o mesmo tédio, pediu-me para dizer um relaxo sobre a propaganda feita por Zacarias Gondim, eu disse esses versos irreverentes, mas sem nenhuma maldade, ainda mais porque eu era e sou torcedor do Caiçara: “Mudam as noites / e mudam os dias / só não muda a voz / enfadonha do senhor Zacarias.” Em minha maturidade, saudoso dessa velha casa de exibição cinematográfica, no meu poema Vida in Vitro, assim me reportei em versos: “ainda assistes a filmes de bang-bang / só para sentires a emoção do tempo / em que teu pai te levava para o reino / encantado e mágico do velho cine nazaré / que em tua memória ainda remanesce.”

 

Quando as velhas fitas de celuloide quebravam, e isso não era fato incomum, os assistentes, principalmente os mais jovens e mais rebeldes, movimentavam com certa violência o assento das cadeiras contra o encosto de modo a produzirem um barulho infernal, além de assobiarem com estridência. O Sr. Zacarias, quase apoplético, surgia, após acender as luzes, e passava severa descompostura nos “moleques”. Mais parecia uma figura egressa da tela de seu cinema. Felizmente, o projecionista logo emendava a fita, e quando a exibição recomeçava, como por encanto, tudo voltava ao mais completo silêncio e normalidade.

 

No Cine Nazaré pude assistir a alguns épicos, com temática da história ou da mitologia greco-romana, alguns protagonizados por Victor Mature, o fortão da época, mas considerado bom ator. Giuliano Gemma encarnou, sobretudo, o caubói Ringo, rápido e certeiro no gatilho. Quando os garotos saíam do cinema, pareciam ter incorporado o mocinho. O caminhado sutilmente mudava, na imitação do herói cinematográfico; as mãos se mantinham levemente afastadas dos quadris, como se a qualquer momento fossem sacar um imaginário revólver, que parecia pender do coldre.

 

Outros atores dessa inesquecível época foram Franco Nero, Anthony Quinn, Kirk Douglas, Burt Lancaster, Charlton Heston, Charles Bronson. Sim, quase ia esquecendo, ainda havia Johnny Weissmuller, travestido de Tarzan, a emitir uns gritos escalafobéticos, a se locomover dependurado em cipós e a enfrentar crocodilos e bandidos em plena selva africana. Todos eles encantaram a minha meninice e juventude em películas admiráveis. Indefectivelmente, na Semana Santa, era exibida uma velha fita da vida de Jesus, geralmente a Paixão de Cristo, que assistíamos contritos, tristes, quase como se os fatos tivessem acabado de acontecer.

 

Ainda alcancei o Cine Nazaré em franca prosperidade, com algumas exibições alcançando lotação plena (ou quase), e depois, com o advento da televisão, o início de sua derrocada, com a assistência minguando cada vez mais, até o salão ficar com apenas uma dúzia de espectadores, e às vezes nem isso. Quando me mudei para Parnaíba, em junho de 1975, ainda testemunhei o Cine-Teatro Éden em atividade.

 

Lembro-me que assisti ao Conde Drácula, protagonizado por Christopher Lee, nesse afamado cinema. Depois, com a decadência do Éden, foi criado em Parnaíba o Cine Gazeta, no qual presenciei John Travolta, com sua dança e rebolados, nos Embalos de Sábado à Noite; Moisés, na pele ou na figura de Charlton Heston, abrir ao meio o Mar Vermelho, e a longevidade e a paz serem alcançadas em Shangri-La.

 

Como eram diferentes os filmes dessa época. Essa versão do velho e vampiresco Conde tinha antigas carruagens, misterioso castelo, paisagens nevoentas e penumbrosas, uivos de lobos, esvoaçantes morcegos... Era muito diferente das concepções contemporâneas, com excesso de ação e de violência, em que o filme se desenrola de forma vertiginosa, como se o tempo fizesse parte de uma outra dimensão do espaço-tempo.

 

Os faroestes dos idos de 60/70 não tinham as pancadarias, efeitos visuais exagerados e correrias desenfreadas dos chamados filmes de ação dos tristes tempos de hoje, em que uma arma de fogo destrói um caminhão e transforma em ruínas, cinzas e chamas uma mansão. Tinham verossimilhança e se desenvolviam num ritmo não muito diferente do da vida real. Os seus eventuais exageros, comparados aos das películas hodiernas, mais parecem brincadeiras pueris.

 

Sinto saudade dessas antigas casas de exibição, que foram, pouco a pouco, se extinguindo com o lento e gradual desaparecimento dos espectadores, subtraídos pela televisão, pelas fitas cassetes, pelos DVDs e outras parafernálias tecnológicas. O Éden deixou de ser um paraíso, e se transformou em vários pontos comerciais. E o Cine Nazaré encantou-se, e hoje é uma prosaica Escola de Contabilidade. Até o seu nome desapareceu, restando apenas a fachada, que ainda nos faz recordar a magia do cinema, que na minha infância foi um mistério que eu nunca quis desvendar.