Geraldo Lima: resenha de um livro de Ronaldo Cagiano

As recomendações de Geraldo Lima são nossas também.

 

 

 

 

 

  

 

Geraldo Lima

 

 


 

 

 

 

 

 

REPRODUÇÃO DA IMAGEM

DA CAPA DO DICIONÁRIO

DE PEQUENAS SOLIDÕES,

DE RONALDO CAGIANO,

OBRA QUE FOI RESENHADA

POR GERALDO LIMA

 

 

 

 

 

 

 

  

 

  

 

 

 

RONALDO CAGIANO, LEITOR DE À LA RECHERCHE DU TEMPS PERDU

(http://antologiamomentoliterocultural.blogspot.com/2009/10/momento-litero-cultural-entrevista-com_30.html, com a seguinte legenda original:

"(R. Cagiano) No túmulo de Proust, no cemitério Père Lachaise, em Paris")

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

O GRANDE PROUST

(http://www.essentialvermeer.com/proust/proust.html,

com a seguinte legenda original:

"A photograph of Marcel Proust that was mostly likely taken shortly after his visit to the exhibition of Dutch paintings at the Jeau de Paume in Paris in which Vermeer's View of Delft was shown)

 

 

 

 

                                                      Para Geraldo Lima,

                                                      Ronaldo Cagiano e

                                                      Francisco Vasconcelos,

                                                      reverenciando a memória de

                                                      Marcel Proust                                                 

 

  

1.3.2010 - Geraldo Lima escreveu sobre o Dicionário, de Ronaldo Cagiano - Você gosta de boa literatura? Se lhe ocorreu a resposta positiva, certamente apreciará as dicas a seguir transcritas, que recebi, via e-mail, de meu amigo e ex-vizinho Geraldo Lima (*), que já lançou um livro infantil - requintadamente ilustrado -, coletâneas de contos, duas peças teatrais, publicou contos em algumas coletâneas  e escreveu o excelente romance intitulado Um. As recomendações de Geraldo Lima, professor de língua portuguesa da rede pública do Distrito Federal (nascido em Planaltina, cidade que antes da fundação de Brasília pertencia ao Estado de Goiás, tendo passado ao Distrito Federal, e morador de Sobradinho-DF), são recomendações da Coluna "Recontando estórias do domínio público". O escritor amazonense Francisco Vasconcelos compareceu ao lançamento do romance de Geraldo Lima e escreveu, com admiração, sobre Um. A apreciação, em forma de minirresenha, será neste mesmo espaço conferida, brevemente. Em seguida à cópia do bilhete de Geraldo Lima está transcrita a resenha de um livro de Ronaldo Cagiano. É um privilégio receber (refiro-me ao bilhete) generosas dicas como essa. Na medida em que tenho na mais alta estima meus amáveis leitores e minhas gentis leitoras, copiar essa dica - com a devida autorização de Lima, também recebida via e-mail - não passa de uma obrigação. Assim, a seguir, eis o mencionado bilhete. F. A. L. Bittencourt ([email protected])

(*) - Escritor nascido em Planaltina-DF: não confundir com o cantor e compositor pernambucano; fotografia do xará Geraldo Lima, que é músico - e não mora no Distrito Federal -, pode ser vista, por exemplo, em: http://www.buscamp3.com.br/artists_profile_homebr.asp?id=46279.

 

"Meus caros, tudo bem?

Por favor, leiam no meu blog Baque (baque-blogdogeraldolima.blogspot.com):
- o conto Lux, de minha autoria.
- a apresentação do livro Arqueolhar, do poeta Alexandre Marino.
- a resenha do escritor Ronaldo Costa Fernandes sobre o meu romance Um.
- a crônica Férias com pipas, de minha autoria.
- o texto do poeta Paulo Kauim sobre o livro abecedário, do poeta Vicente de Paulo Siqueira.

Sobrando tempo, acessem o blog O Bule (www.o-bule.bogspot.com). Sintam-se à vontade. Enquanto tomam um cafezinho, apreciem os meus três microcontos, o conto do Cláudio Parreira, o ensaio sobre o escritor Campos de Carvalho (imperdível!),de autoria de Nelson de Oliveira e Sinvaldo Junior, e outros textos de boa qualidade literária.

Um abração.

Geraldo Lima".

 

===

 

RESENHA DE GERALDO LIMA SOBRE O LIVRO DICIONÁRIO DE PEQUENAS

SOLIDÕES, DE RONALDO CAGIANO, PUBLICADA NO PORTAL VERDES TRIGOS

(11.3.2007)

 

"A Solidão segundo Ronaldo Cagiano

por Geraldo Lima *
publicado em 11/3/2007.

 

O conto, embora esbarre ainda na resistência de alguns editores ( não teria o mesmo poder de vendagem do romance ou da novela, seria assim como uma espécie de primo pobre da ficção), ocupou definitivamente seu espaço no universo literário brasileiro. Depois do "boom" da década de 70, pensou-se que essa espécie narrativa estivesse esgotada, que não poderia nos oferecer mais nada em termos de linguagem e conteúdo, mas a produção recente tem demonstrado exatamente o contrário. É o caso do recém-lançado "Dicionário de pequenas solidões", de Ronaldo Cagiano, pela também recém-criada editora Língua Geral.

O volume, que reúne catorze contos publicados anteriormente nos livros Dezembro indigesto (FCDF) e Concerto para arranha-céus (LGE Editora), traz a marca inconfundível desse prosador: o tom amargo da voz do narrador, seja em primeira ou em terceira pessoa. A visão que o autor nos oferece da realidade é sempre dilacerante, despida de romantismo. No universo literário de Ronaldo Cagiano não há espaço para frivolidades, amenidades, passatempos. Tudo ali funciona como um mergulho radical na existência amarga dos personagens. O discurso é denso, cortante, quase sempre um jorro deixando aflorar a dor e a solidão que devoram a alma de prostitutas, funcionários esmagados pela rotina do ambiente de trabalho, filhos ressentidos, tipos paranóicos, suicidas, ou seja, todos aqueles que não encontram mais sentido na engrenagem da sociedade, na sua máquina de produzir preconceitos e alienação. Sobre eles, o autor lança um olhar cúmplice e generoso. E a linguagem, de extrema beleza poética, amplia ainda mais esse universo de sentimentos à flor da pele.

O conto que abre a antologia nos choca pela dureza da sua temática: o abuso sexual de uma criança. O assunto é recorrente no noticiário, mas, tratado do ponto de vista ficcional, ganha nova dimensão. É claro que, nas mãos de um escritor menos habilidoso, a história poderia resvalar para a pieguice, a denúncia fácil, desprezando todo o conteúdo psicológico e trágico que ela contém. Mas, nas mãos de Cagiano, transforma-se num texto denso, tocante, cuja narrativa em primeira pessoa deixa vazar todo o ressentimento e nojo que povoam a memória da personagem vítima do abuso. ",eu já tinha vinte e tantos anos e a única imagem que me povoava a mente com pavor e abjeção era aquele homúnculo, coxo, reles, vil, desaparecendo no quintal de casa como se nada tivesse acontecido..." É para dentro do universo psicológico dessa personagem, cuja vida foi arruinada pela violência, que Cagiano nos arrasta como numa enchente: a narrativa, delirante, - um jorro contido apenas por vírgulas - dá-nos a real dimensão do estado de choque e rancor em que se encontra a personagem.

Pode-se dizer que grande parte dos contos dessa antologia tem como fonte a memória - memória nem sempre bem digerida pelos personagens: "...nesse fluxo hemorrágico de lembranças dolorosas"; "Infecta nostalgia"; "Coisa estranha, a memória, esse aluvião: às vezes é pântano, às vezes um cupim de aço tirano revirando o íntimo". O rememorar, nesse caso, é sempre doloroso, um acerto de contas com o passado. "Lembra-se da última vez que o pai o abraçou na vida: quando o irmão caçula foi enterrado naquela mesma sepultura, depois de ter sido esmagado pelo caminhão de areia do Albertino... (...) Foi ele quem mandou Serginho ir brincar nos fundos, para não incomodar a mãe..."

Mais problemático que o rememorar é o ter que retornar ao lugar de origem. (E é do universo da sua cidade natal, Cataguases, que Cagiano recolhe parte dos seus personagens.) Então, alguns desses personagens, tendo que retornar a esse ambiente interiorano, deixam transparecer o quanto estão distantes, cindidos, e o seu olhar será sempre crítico, impiedoso, impossibilitando o reencontro efetivo e afetivo com o passado. É o caso do personagem do conto "Horizonte de espantos": "Vim para ver Cassilda pela última vez e voltar às origens, mas longe daqui, desta cidade espremida entre o rio e a montanha, entre a mediocridade e a alienação, que me matou e me levou pra bem distante. Estou sozinho nesta cidade de vivos-mortos..." Ruas, praças, casas e rios de Santa Rita ( ou Cataguases?) compõem o cenário de alguns contos dessa antologia, como é caso de "Encontros", "Pavlov", "Dies irae", "No último natal do milêncio" etc. - o rio Pomba, recentemente poluído pela lama tóxica de uma indústria, também está lá. O espaço urbano do Distrito Federal, - Brasília e cidades satélites - aparece também com bastante freqüência. Cagiano conhece muito bem esse cenário, pois tem transitado por ele durante boa parte da sua vida, daí a precisão com que situa cada cena, com que movimenta os personagens. Numa viagem de metrô, do Plano Piloto até Ceilândia, temos uma visão estilhaçada desse espaço, onde personagens do povo entram e saem com suas vidas marcadas por dificuldades cotidianas e lampejos de esperança. Neste conto, talvez o mais ousado do ponto de vista da composição, o autor usa o recurso da colagem (notícias de jornais, citações da Bíblia, trechos de diários etc.) para nos dar uma visão bem plural da realidade no interior do metrô.

Esse universo perturbador (esta é a função da boa literatura: arrancar-nos do comodismo, da quietude estéril), sem espaço para frivolidades e maneirismos, é o que Cagiano oferece ao leitor, que emergirá, sem dúvida alguma, mais humanizado da leitura desse belo e trágico "dicionário de pequenas solidões".
 

 

Sobre o Autor

Geraldo Lima: Geraldo Lima nasceu em Planaltina (GO) em 1959 e vive em Sobradinho (DF). É professor de Língua Portuguesa e Literatura Brasileira. Já foi premiado em vários concursos literários. Publicou o livro de contos A noite dos vagalumes (Prêmio Bolsa Brasília de Produção Literária, FCDF, 1997) e o livro de literatura infantil Nuvem muda a todo instante (LGE Editora, 2004). Participou, em 2004, da Antologia do Conto Brasiliense (Projecto Editorial, org. por Ronaldo Cagiano). É autor das peças de teatro Error (encenada pela Oficina do Teatro de Periferia,1987) e Trinta gatos e um cão envenenado (inédita)".

(http://www.verdestrigos.org/sitenovo/site/cronica_ver.asp?id=1210

 

===

 

ENTREVISTA (ILUSTRADA) CONCEDIDA, EM 2009, POR RONALDO CAGIANO

A SELMO VASCONCELLOS

(BLOG PRIMEIRA ANTOLOGIA POÉTICA MOMENTO LÍTERO CULTURAL)

 

"Sexta-feira, 30 de outubro de 2009

RONALDO CAGIANO - Entrevista

 
RONALDO CAGIANO

Eu, minha esposa (escritora Eltânia André), e meus filhos Murillo e Rebecca, na data do meu casamento em 1/8/09, em Cataguases.

Ronaldo Cagiano, nasceu em Cataguases, MG. Diplomado em Direito. É escritor, ensaísta e crítico literário.
Viveu em Brasília de 1979 até recentemente, quando se transferiu definitivamente para São Paulo. Trabalha na Caixa Econômica Federal desde 1982. Cagiano publica em diversos jornais e revistas do país e do exterior, dentre os quais Jornal do Brasil, Hoje em Dia, Jornal de Brasília, Correio Braziliense e revista Cult. Obteve o primeiro lugar no concurso Bolsa Brasília de Produção Literária 2001, com o livro de contos Dezembro indigesto. Organizou as coletâneas Antologia do conto brasiliense (Projecto Editorial, Brasília, 2001), Poetas Mineiros em Brasília (Varanda Edições, Brasília, 2001) e Todas as Gerações - O Conto Brasioliense Contemporâneo (LGE Editora, Brasília, 2006).


ENTREVISTA

No túmulo de Proust, no cemitério Père Lachaise, em Paris.

SELMO VASCONCELLOS - Quais as suas outras atividades, além de escrever ?

RONALDO CAGIANO - Sou funcionário da CAIXA há 28 anos e também advogado (profissão que exerci autonomamente por muito tempo, mas que abandonei por absoluta incompatibilidade de tempo e ideológica, pois minha praia é a literatura, não os tribunais).


SELMO VASCONCELLOS - Como surgiu seu interesse literário ?

RONALDO CAGIANO - Desde a mais tenra infância. Eu sempre detestei futebol e religião, então, como nada disso nunca me deu prazer ou satisfação, foi na leitura de livros e jornais que encontrei farol, lição, exemplo, refúgio e fortaleza. Minha fé está na ficção e na poesia. A literatura é meu único evangelho e ele não me impõe um deus único e soberano, porque todos os dias crio meus próprios deuses e ergo para eles um novo altar: Machado, Rosa, Clarice, Lygia, Camus, Tolstoi, Kafka, Graciliano, Drummond, Bandeira etc. Meu céu é povoado de tantos deuses e com eles me entendo a cada momento. E com o tempo só esse caminho me levava a alguma verdade. Tanto que assimilei integralmente uma profunda mensagem de Kafka: "Tudo que não é literatura me aborrece".


SELMO VASCONCELLOS - Quantos e quais os seus livros publicados dentro e fora do País ?

RONALDO CAGIANO - Publiquei ao longo dos anos alguns livros de poesia e prosa e algumas antologias que organizei, além de participar de algumas antologias nacionais e estrangeiras. São eles:

Palavra Engajada (poesia, SP, 1989)

Colheita Amarga & Outras Angústias (poesia, SP, 1990)

Exílio (poesia, SP, 1990)

Palavracesa (poesia, Ed. Cataguases, Brasília, 1994)

O Prazer da Leitura, em parceria com Jacinto Guerra (contos juvenis, Ed. Thesausus, Brasília 1997)

Prismas – Literatura e Outros Temas (crítica literária, Ed. Thesaurus, Brasília, 1997)

Canção dentro da noite (poesia, Ed. Thesaurus, Brasília, 1999)

Espelho, espelho meu (infanto-juvenil, em parceria com Joilson Portocalvo, Ed. Thesaurus, Brasília, 2000).

Poetas mineiros em Brasília (antologia, organizador, Varanda Edições, Brasília, 2001)

Dezembro indigesto (Prêmio Bolsa Brasília de Produção Literária de 2001 da Sec. de Cultura do DF)

Antologia do conto brasiliense (Projecto Editorial, 2004, organizador).

Concerto para arranha-céus (contos, LGE Editora, Brasília 2004)

Todas as Gerações – O conto brasiliense contemporâneo (LGE Editora, Brasília, 2006, organizador)

Dicionário de pequenas solidões (contos, Língua Geral, Rio, 2006)


SELMO VASCONCELLOS - Qual (is) o(s) impacto(s) que propicia(m) atmosfera(s) capaz(es) de produzir literatura ?

RONALDO CAGIANO - A realidade quotidiana e minha experiência pessoal (afetiva, psicológica, geográfica, íntima, histórica e cultural) sempre são fonte de matéria e circunstância para minha criação literária. Nada me escapa, seja uma lembrança do passado, um fato inusitado da vida presente ou o inconsciente coletivo.Há sempre o que (re)colher dessa trajetória que percorremos. E muitas vezes a verdade nua e crua da vida é mais inusitada que a ficção.


SELMO VASCONCELLOS - Quais os escritores que você admira ?

RONALDO CAGIANO - Há aqueles escritores que são recorrentes leituras. Não digo influência, porque isso seria demasiada presunção, mas sempre volto a escritores cujas obras são primordiais em minha vida, como Camus, Clarice Lispector, Graciliano Ramos, Guimarães Rosa, Bandeira, Pessoa, Faulkner. Eles são a minha maior janela. Eles me mostram que quando a vida se torna insuportável, é pelas suas páginas que a arte ajuda-nos a aguentar e fazer a necessária catarse de nossos dilemas contemporâneos, de nossas inquietações e mergulhos existenciais.


SELMO VASCONCELLOS - Qual mensagem de incentivo você daria para os novos poetas ?

RONALDO CAGIANO - Que a literatura não muda o mundo, mas nos ajuda a refletir sobre eles e tentar tornar menos penosa nossa trajetória. Mas, é capaz de mudar as pessoas, porque a literatura deve representar para quem escreve e para quem lê, além do compromisso estético, um compromisso ético. E assim, se puder mudar um pouco as pessoas, sua visão de mundo, impor um novo olhar sobre o que está ao redor, aí creio que as coisas podem também ser transformadas pelo caráter cirúrgico de um poema ou de um conto ou romance. Fica aqui uma reflexão, a partir do que disse Borges: "A literatura é revanche de ordem mental contra o caos do mundo." Que essa dimensão de toda palavra seja o verdadeiro eco em nossas consciências criativas, despertando sempre no escritor um senso de responsabilidade estética, pois ele sempre deve ir fundo, doa a quem (e o que) doer.


POEMAS

Com o escritor Alaor Barbosa, às margens do rio Zuyandé, em Isfahan, Irã.

Diante de um quadro de Di Carrara

Deito-me no quadro
- e sonho.
Cassiano Nunes


Quando a cidade dorme diante da beleza,
contemplo o que é humano
e indivisível.

Há um verso clamando nos teares noturnos
das tecelagens de Cataguases,
como uma gota de sangue
nas galochas dos operários que desviam da enxurrada
e um feixe de espantos na falta de censura à miséria.

Há poesia em tudo,
porque a nudez das coisas
traz em si uma raiz serena de cumplicidade
com o mundo e seu destino.

Esses meninos esquálidos
que freqüentam as ruas menos que os nossos corações
compõem o quadro mais que habitam a vida
e eu vou contemplando a suspeita jornada
das pessoas corretas e detidas em seu dia-a-dia,
enquanto o cemitério contabiliza perdas
e a rodoviária em frente nos dá lições de ausência.

Esses corpos escassos que me inquirem da tela
falam do imponderável, vão além do amor
e aqui fora
mar insuspeito de indigências
viceja a tristeza ofensiva do destino coletivo.

O artista escreve outra vez
um Natal impossível
mas que renasce
nos olhos dessa infância entre espinhos
dos que ainda acreditam
na transformação do betume em rosa,
cristal sem rugas garimpado na sarjeta.


RESIDÊNCIA PROVISÓRIA

para Eltânia André

Viajei mundos,
mas ainda não me (re)conheço:
duro é o trajeto por dentro.

Registro de um percurso inacabado.

As solas intactas dos sapatos
resumem o muito que não andei.

O cansaço de existir
interdita o reconhecimento
do futuro.

Escravo da solidão eletrônica
nessa era de pastores mercenários
(mascates da salvação improvável)
em quantos me divido
para me tornar inteiro?

Quantos deuses hão de morrer
para ressuscitar o Deus que tantos, em vão,
procuram nos shoppings centers de uma fé inócua?

As fotos na parede me desmentem:
esse rio que me leva,
cemitério de anzóis,
sabe mais do que não viu.

A pele da solidão não envelhece
– inúteis as plásticas –
nenhum bisturi
reduzirá o seu império,

e ela reverberando pelos cantos
seu canto de cisne da inutilidade existencial.

Até quando conseguirei unir as margens do abismo?


Exílios

para Armin Mobarak
A cidade se perde em seus próprios labirintos:
pelas serpentes de pedra e asfalto
corre fatigado um rio de animais metálicos.
Não há mais lugar para os homens,
perdidos na noite súbita.

Anônimos, como areia na ampulheta,
vamos em busca da utópica Pasargada.
enquanto a história nos atravessa como um raio.
Como um ventre,
a metrópole oriental guarda o desconhecido
e na sua intangível solidão geométrica
exilo-me nos labirintos dos bazares
onde florescem catedrais de ausências
e escorre um fluxo divergente de homens e mulheres
sem notícias do outro lado do mundo.
O tempo, enxame de bactéria a nos roer,
me levou a mundos que sonhei um dia:
De Cataguases a Isfahan
de Brasilia a Teerã,
quanto de mim vai ficando nesses caminhos
com sua orfandade de margens.

Quando contemplo
os picos nevados das montanhas Alborz
ou reivindico os longes caminhos de Persépolis, Shiraz e Burujerd
os barcos da infância,
que lancei no rio Pomba rumo ao insondável,
ressuscitam nas águas do Zuyandé,
prisioneiros do vento, cativos da geografia.


O ritmo das coisas

Quanto de nós é o que não somos?
Ésio Macedo Ribeiro

O sol aceso em meus olhos
fere a estrangeira gestação dos vazios.

Há tempo demais nos relógios da cidade:
eternidade com seus cupins de aço
varando nossas entranhas
para o triunfo do imponderável.

Estamos purgando a existência
com esses ponteiros insolentes
condenando-nos a um destino de fadigas
ou a nenhum registro nos obituários.

Pedra dentro do tempo,
a morte, como a mó,
impõe o ritmo das coisas:
pacientemente nos esfarinha,
grãos de nada num pomar de bactérias.


GÊNESE

Busco na palavra sua unção,
labirinto de paradoxos
em que mergulho
como escafandrista a garimpar (im)possibilidades.

Território de invenções,
ela me estende a ponte
entre o sagrado
e o profano

Em cada manhã
rompe com sua insistência de rio.
Meticuloso engenho do verbo
que se faz silêncio
ou boato

Rumino a sua nudez
ou desvelo as suas rugas.

Entre a fuga
e os deslizes
o poema vinga

rosa intimorata no asfalto

nutre-me do que é míngua
recicla-me do que é sangue.