Eu, minha esposa (escritora Eltânia André), e meus filhos Murillo e Rebecca, na data do meu casamento em 1/8/09, em Cataguases.
Ronaldo Cagiano, nasceu em Cataguases, MG. Diplomado em Direito. É escritor, ensaísta e crítico literário.
Viveu em Brasília de 1979 até recentemente, quando se transferiu definitivamente para São Paulo. Trabalha na Caixa Econômica Federal desde 1982. Cagiano publica em diversos jornais e revistas do país e do exterior, dentre os quais Jornal do Brasil, Hoje em Dia, Jornal de Brasília, Correio Braziliense e revista Cult. Obteve o primeiro lugar no concurso Bolsa Brasília de Produção Literária 2001, com o livro de contos Dezembro indigesto. Organizou as coletâneas Antologia do conto brasiliense (Projecto Editorial, Brasília, 2001), Poetas Mineiros em Brasília (Varanda Edições, Brasília, 2001) e Todas as Gerações - O Conto Brasioliense Contemporâneo (LGE Editora, Brasília, 2006).
ENTREVISTA
No túmulo de Proust, no cemitério Père Lachaise, em Paris.
SELMO VASCONCELLOS - Quais as suas outras atividades, além de escrever ?
RONALDO CAGIANO - Sou funcionário da CAIXA há 28 anos e também advogado (profissão que exerci autonomamente por muito tempo, mas que abandonei por absoluta incompatibilidade de tempo e ideológica, pois minha praia é a literatura, não os tribunais).
SELMO VASCONCELLOS - Como surgiu seu interesse literário ?
RONALDO CAGIANO - Desde a mais tenra infância. Eu sempre detestei futebol e religião, então, como nada disso nunca me deu prazer ou satisfação, foi na leitura de livros e jornais que encontrei farol, lição, exemplo, refúgio e fortaleza. Minha fé está na ficção e na poesia. A literatura é meu único evangelho e ele não me impõe um deus único e soberano, porque todos os dias crio meus próprios deuses e ergo para eles um novo altar: Machado, Rosa, Clarice, Lygia, Camus, Tolstoi, Kafka, Graciliano, Drummond, Bandeira etc. Meu céu é povoado de tantos deuses e com eles me entendo a cada momento. E com o tempo só esse caminho me levava a alguma verdade. Tanto que assimilei integralmente uma profunda mensagem de Kafka: "Tudo que não é literatura me aborrece".
SELMO VASCONCELLOS - Quantos e quais os seus livros publicados dentro e fora do País ?
RONALDO CAGIANO - Publiquei ao longo dos anos alguns livros de poesia e prosa e algumas antologias que organizei, além de participar de algumas antologias nacionais e estrangeiras. São eles:
Palavra Engajada (poesia, SP, 1989)
Colheita Amarga & Outras Angústias (poesia, SP, 1990)
Exílio (poesia, SP, 1990)
Palavracesa (poesia, Ed. Cataguases, Brasília, 1994)
O Prazer da Leitura, em parceria com Jacinto Guerra (contos juvenis, Ed. Thesausus, Brasília 1997)
Prismas – Literatura e Outros Temas (crítica literária, Ed. Thesaurus, Brasília, 1997)
Canção dentro da noite (poesia, Ed. Thesaurus, Brasília, 1999)
Espelho, espelho meu (infanto-juvenil, em parceria com Joilson Portocalvo, Ed. Thesaurus, Brasília, 2000).
Poetas mineiros em Brasília (antologia, organizador, Varanda Edições, Brasília, 2001)
Dezembro indigesto (Prêmio Bolsa Brasília de Produção Literária de 2001 da Sec. de Cultura do DF)
Antologia do conto brasiliense (Projecto Editorial, 2004, organizador).
Concerto para arranha-céus (contos, LGE Editora, Brasília 2004)
Todas as Gerações – O conto brasiliense contemporâneo (LGE Editora, Brasília, 2006, organizador)
Dicionário de pequenas solidões (contos, Língua Geral, Rio, 2006)
SELMO VASCONCELLOS - Qual (is) o(s) impacto(s) que propicia(m) atmosfera(s) capaz(es) de produzir literatura ?
RONALDO CAGIANO - A realidade quotidiana e minha experiência pessoal (afetiva, psicológica, geográfica, íntima, histórica e cultural) sempre são fonte de matéria e circunstância para minha criação literária. Nada me escapa, seja uma lembrança do passado, um fato inusitado da vida presente ou o inconsciente coletivo.Há sempre o que (re)colher dessa trajetória que percorremos. E muitas vezes a verdade nua e crua da vida é mais inusitada que a ficção.
SELMO VASCONCELLOS - Quais os escritores que você admira ?
RONALDO CAGIANO - Há aqueles escritores que são recorrentes leituras. Não digo influência, porque isso seria demasiada presunção, mas sempre volto a escritores cujas obras são primordiais em minha vida, como Camus, Clarice Lispector, Graciliano Ramos, Guimarães Rosa, Bandeira, Pessoa, Faulkner. Eles são a minha maior janela. Eles me mostram que quando a vida se torna insuportável, é pelas suas páginas que a arte ajuda-nos a aguentar e fazer a necessária catarse de nossos dilemas contemporâneos, de nossas inquietações e mergulhos existenciais.
SELMO VASCONCELLOS - Qual mensagem de incentivo você daria para os novos poetas ?
RONALDO CAGIANO - Que a literatura não muda o mundo, mas nos ajuda a refletir sobre eles e tentar tornar menos penosa nossa trajetória. Mas, é capaz de mudar as pessoas, porque a literatura deve representar para quem escreve e para quem lê, além do compromisso estético, um compromisso ético. E assim, se puder mudar um pouco as pessoas, sua visão de mundo, impor um novo olhar sobre o que está ao redor, aí creio que as coisas podem também ser transformadas pelo caráter cirúrgico de um poema ou de um conto ou romance. Fica aqui uma reflexão, a partir do que disse Borges: "A literatura é revanche de ordem mental contra o caos do mundo." Que essa dimensão de toda palavra seja o verdadeiro eco em nossas consciências criativas, despertando sempre no escritor um senso de responsabilidade estética, pois ele sempre deve ir fundo, doa a quem (e o que) doer.
POEMAS
Com o escritor Alaor Barbosa, às margens do rio Zuyandé, em Isfahan, Irã.
Diante de um quadro de Di Carrara
Deito-me no quadro
- e sonho.
Cassiano Nunes
Quando a cidade dorme diante da beleza,
contemplo o que é humano
e indivisível.
Há um verso clamando nos teares noturnos
das tecelagens de Cataguases,
como uma gota de sangue
nas galochas dos operários que desviam da enxurrada
e um feixe de espantos na falta de censura à miséria.
Há poesia em tudo,
porque a nudez das coisas
traz em si uma raiz serena de cumplicidade
com o mundo e seu destino.
Esses meninos esquálidos
que freqüentam as ruas menos que os nossos corações
compõem o quadro mais que habitam a vida
e eu vou contemplando a suspeita jornada
das pessoas corretas e detidas em seu dia-a-dia,
enquanto o cemitério contabiliza perdas
e a rodoviária em frente nos dá lições de ausência.
Esses corpos escassos que me inquirem da tela
falam do imponderável, vão além do amor
e aqui fora
mar insuspeito de indigências
viceja a tristeza ofensiva do destino coletivo.
O artista escreve outra vez
um Natal impossível
mas que renasce
nos olhos dessa infância entre espinhos
dos que ainda acreditam
na transformação do betume em rosa,
cristal sem rugas garimpado na sarjeta.
RESIDÊNCIA PROVISÓRIA
para Eltânia André
Viajei mundos,
mas ainda não me (re)conheço:
duro é o trajeto por dentro.
Registro de um percurso inacabado.
As solas intactas dos sapatos
resumem o muito que não andei.
O cansaço de existir
interdita o reconhecimento
do futuro.
Escravo da solidão eletrônica
nessa era de pastores mercenários
(mascates da salvação improvável)
em quantos me divido
para me tornar inteiro?
Quantos deuses hão de morrer
para ressuscitar o Deus que tantos, em vão,
procuram nos shoppings centers de uma fé inócua?
As fotos na parede me desmentem:
esse rio que me leva,
cemitério de anzóis,
sabe mais do que não viu.
A pele da solidão não envelhece
– inúteis as plásticas –
nenhum bisturi
reduzirá o seu império,
e ela reverberando pelos cantos
seu canto de cisne da inutilidade existencial.
Até quando conseguirei unir as margens do abismo?
Exílios
para Armin Mobarak
A cidade se perde em seus próprios labirintos:
pelas serpentes de pedra e asfalto
corre fatigado um rio de animais metálicos.
Não há mais lugar para os homens,
perdidos na noite súbita.
Anônimos, como areia na ampulheta,
vamos em busca da utópica Pasargada.
enquanto a história nos atravessa como um raio.
Como um ventre,
a metrópole oriental guarda o desconhecido
e na sua intangível solidão geométrica
exilo-me nos labirintos dos bazares
onde florescem catedrais de ausências
e escorre um fluxo divergente de homens e mulheres
sem notícias do outro lado do mundo.
O tempo, enxame de bactéria a nos roer,
me levou a mundos que sonhei um dia:
De Cataguases a Isfahan
de Brasilia a Teerã,
quanto de mim vai ficando nesses caminhos
com sua orfandade de margens.
Quando contemplo
os picos nevados das montanhas Alborz
ou reivindico os longes caminhos de Persépolis, Shiraz e Burujerd
os barcos da infância,
que lancei no rio Pomba rumo ao insondável,
ressuscitam nas águas do Zuyandé,
prisioneiros do vento, cativos da geografia.
O ritmo das coisas
Quanto de nós é o que não somos?
Ésio Macedo Ribeiro
O sol aceso em meus olhos
fere a estrangeira gestação dos vazios.
Há tempo demais nos relógios da cidade:
eternidade com seus cupins de aço
varando nossas entranhas
para o triunfo do imponderável.
Estamos purgando a existência
com esses ponteiros insolentes
condenando-nos a um destino de fadigas
ou a nenhum registro nos obituários.
Pedra dentro do tempo,
a morte, como a mó,
impõe o ritmo das coisas:
pacientemente nos esfarinha,
grãos de nada num pomar de bactérias.
GÊNESE
Busco na palavra sua unção,
labirinto de paradoxos
em que mergulho
como escafandrista a garimpar (im)possibilidades.
Território de invenções,
ela me estende a ponte
entre o sagrado
e o profano
Em cada manhã
rompe com sua insistência de rio.
Meticuloso engenho do verbo
que se faz silêncio
ou boato
Rumino a sua nudez
ou desvelo as suas rugas.
Entre a fuga
e os deslizes
o poema vinga
rosa intimorata no asfalto
nutre-me do que é míngua
recicla-me do que é sangue.