Futuro encrencado
Por Miguel Carqueija Em: 06/08/2012, às 13H21
A atual tendencia da Ficção Científica é considerar o futuro como extremamente problemático. Agora, um texto em colaboração.
FUTURO ENCRENCADO
Miguel Carqueija e Ubiratan Peleteiro
O sol escaldante era como um inimigo que nos acompanhava impiedosamente, cozinhando nossos miolos no interior daquele carro terrestre danificado e obsoleto, sem ar condicionado. A estrada seguia interminável, ao que parece para o infinito, lá mesmo onde tudo nos espera. Seguíamos tão silenciosos como os sinos de Celentano, observando a paisagem angustiante e fervida pelos raios solares. Minhas costas doíam, não tinha mais idade para viajar muito num carro como aquele. Então, na descida de uma vertente, deparamos com uma barreira. Um trecho interditado.
— Vamos, meu velho – disse Ataíde, após um instante de hesitação. Ainda bem que meu companheiro, bem mais jovem, estava dirigindo todo o percurso.
Paramos a poucos metros da barreira, com nosso motor fumegando. Um homem jovem e espinhento, com um uniforme inidentificável, rubente, aproximou-se de nós mostrando um talonário ou coisa parecida.
— Desculpem – observou. — Para passarem adiante, só pagando.
— Como assim? – Ataíde tentou ser firme. — Nós já pagamos para entrar na rodovia estadual e temos nosso comprovante!
— Este trecho foi privatizado há tempos e agora pertence à Rede Globo. Portanto...
— Quando foi que isso aconteceu? — perguntei, admirado.
— Faz três meses, meu senhor. Não sabiam? Saiu no Diário Oficial!
— Então está explicado — Ataíde suspirou. — Sabe, Coelho, ninguém mais acessa o Diário Oficial...
— Quanto é que é? — indaguei, disposto a acabar logo com aquilo.
— Apenas cento e cinqüenta pontos, doutor.
Mostrou-me o teclado monetário. Dei de ombros e peguei-o. Era a minha vez de pagar alguma coisa, de modo que digitei o valor pedido e pus minha senha. Algum dia aquele valor sairia da minha conta, quando conseguissem sincronizar bem o sistema.
O rapaz fez um sinal de polegar levantado para os seus companheiros e a barreira foi retirada.
— O.K., tudo bem. Podem ir e boa sorte!
— Obrigado. Vamos precisar — grunhiu Ataíde.
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Eu estava cada vez mais exaurido e não procurava esconder; bocejava sem parar. O carro nutava muito, o que aumentava o nosso desconforto. Até Ataíde também devia achar-se esgotado; via-se que estava muito tenso. Não obstante devíamos prosseguir.
Passamos por uma linde que dava para Belo Horizonte uma distância de doze quilômetros. Mas não íamos para lá, e sim para noroeste da velha capital mineira. Desviamos por uma estrada secundária e logo, logo, deparamos com outra barreira.
— Somos das Organizações Globo – disse-nos outro rapaz cheio de acne. — Para passar aqui, vocês têm que pagar.
— Como assim? — falei, quase indignado. — Se nós já pagamos o pedágio a vocês trinta quilômetros atrás!
— Vocês pagaram para entrar na rodovia privatizada. Agora terão de pagar para sair dela.
Ataíde pagou entre resmungos. Ao dar a partida ainda comentou:
— Por que é que essa barreira é tão grande?
— O que quer dizer, senhor? Aquela adiante é outra barreira!
— Como outra? Nós já pagamos...
— Pois é. O senhor terá de pagar para reentrar na rodovia estadual.
Entreolhamo-nos. Mas o que fazer?
Prosseguimos. Eram cinco horas da tarde e, breve, teríamos de arranjar um hotel para pernoitar. Não havia como passar a noite rodando, pois eu não tinha condições de revezar com Ataíde, que acabaria dormindo ao volante. Havia porém uma pousada perto de Morro Alto, e para lá nos dirigimos.
— Temos de nos cuidar bem – observou Ataíde. — Nossa carga é muito valiosa.
De fato, o que levávamos na mala do carro era tão precioso que tremíamos só de pensar numa falha. Assim, chegamos na pousada e alugamos uma vaga na garagem, conscientes de que o alarma do carro, ligado a nossos relógios de pulso, nos avisaria de qualquer tentativa de roubo. Não foi difícil também conseguir um quarto. Resolvido o mais prioritário, fomos para o salão do restaurante, todo iluminado e cheio de movimento. No pátio apresentavam-se uma cantora e um conjunto; o ambiente era ruidoso.
Sentamo-nos junto a uma mesa onde um homem e uma mulher tagarelavam. Ele, feio e bochechudo; ela, espevitada e magra.
— Estou lhe dizendo que a represa vai romper. Você não quer acreditar...
— Eu já lhe disse: acredito em tudo, mas só quando vejo. Sou como São Tomé.
— Mas aí já será tarde — o tipo serviu-se de um gole de cerveja. — Veja bem: nós aqui poderemos morrer todos em uma hora...
— Não há represas aqui perto — sussurrou-me Ataíde, enquanto lia o cardápio.
— Mas então do que se trata?
— Alienados Assumidos, é claro. Não se envolva com eles. Felizmente, alienados são o tipo de maníacos que ignoram a gente.
Resolvi pedir uma coisa bem barata: uma omelete de queijo e café. Não cairia bem no meu estômago fraco, mas se tudo corresse como planejáramos, logo eu não precisaria me preocupar com isso.
Ataíde pediu um “hambúrguer” com cerveja e batata frita. Eu estava realmente com fome e ataquei a omelete com vontade. Estava pela metade do petisco quando uma voz tonitruante se fez ouvir:
— Senhoras e senhores, desculpem mas a festa acabou. O Exército requisitou esta área para treinamento.
A perplexidade foi geral, mas o coronel fardado e cheio de condecorações mostrou-se inflexível.
— Não nos dão um prazo? — gritou o gerente, com voz mais do que histérica.
— Meu caro senhor, estamos na era superinformática. Há tempo que o Exército requisitou esta área, e vocês sabiam disso. A sentença favorável já foi transmitida via internet ao mundo inteiro e só vocês não sabem. Portanto, saiam, porque o bombardeio vai começar dentro de trinta minutos.
— Mas nós ainda estamos comendo! — protestei, inconformado em ter que abandonar a minha omelete.
— Pois então, velho — respondeu o militar – aconselho-o a engolir logo, ou terá uma indigestão. Bem, acho que você terá de qualquer forma, mas ao menos ainda poderá aproveitar os poucos anos que te restam.
Quis retrucar ao milico, mas Ataíde segurou meu braço e fez um sinal de que não valia a pena. Saímos dali. O que é pior, sem receber o dinheiro do pernoite de volta.
— Lá se foi nossa noite em leito com lençol e cobertor — suspirou Ataíde.
Retiramos nosso carro e nos fomos. No caminho, desviamo-nos de um grupo de Caronistas Profissionais que, pelo número, sentariam até em nossos colos se penetrassem no veículo.
— Por que o mundo atual é tão complicado? — rosnou Ataíde, com um sentimento de frustração e impotência. — Há sempre alguma encrenca em cada esquina... em que ponto do caminho a gente se perdeu, afinal de contas?
— Ligue o rádio — sugeri, esperando poder relaxar os nossos nervos. Ledo engano!
— Atenção! — gritou uma locutora histérica. — Notícia de última hora! Os prisioneiros da Colônia Penal Fernando Henrique Cardoso, no Distrito Federal, acabam de aprisionar o Governador Varago e sua comitiva que visitavam o local. No momento estão se preparando para abandonar o prédio levando os reféns. Maiores notícias dentro de instantes!
Ataíde riu.
— E essa! Viu só? De vez em quando os grandes também passam apertos...
— É, mas ele deverá se livrar logo... você acha que vão deixar o governador...
— Para onde será que eles querem fugir?
Fomos prosseguindo. Logo soubemos que os presidiários haviam conseguido dois dirigíveis, nos quais socaram os reféns, e tinham partido em direção ao sul. Logo, sobrevoavam o norte de Minas Gerais.
Um germezinho de preocupação surgiu no meu espírito e foi aos poucos crescendo. Ataíde, porém, não parecia preocupado.
— Seria excesso de coincidência se eles viessem esbarrar em nós — observou com simplicidade.
— Ou excesso de azar, e nós já estamos com azar — refutei.
— Ora, eu não acredito em azar.
Mal ele dissera isso, deparamos com um trecho completamente engarrafado. Caminhões, vans, carros de passeio, ônibus e micro-ônibus moviam-se agora em velocidade de tartaruga reumática, e só uma hora depois soubemos o que de fato acontecia: um grupo dos Ecologistas Pacíficos estava realizando um dos seus “protestos pacíficos”: uma centena deles se deitara na rodovia, e só deixava passar um veículo de cada vez.
— Eu gostaria simplesmente de passar por cima deles — observou Ataíde. — Mas é perigoso. Perto desses Ecologistas Pacíficos geralmente se postam os DDH’s e esses não são nada pacíficos.
Referia-se aos Defensores dos Direitos Humanos. Eu, por minha vez, sentia-me por demais impaciente.
— Detesto engarrafamentos. Fico para morrer de tanta raiva!
— Relaxe, Coelho, senão acaba tendo um derrame. Não vale a pena se aborrecer com isso, porque coisas piores nos aguardam. Ou você acha que as coisas vão melhorar?
Grunhi qualquer coisa em resposta e preparei-me para passar as próximas horas naquela pasmaceira. Aí o celular tocou e eu vi que era a Brafinan, que há meses tentava me cobrar um empréstimo que eu não fizera. Desliguei o aparelho.
— Ataíde, nós precisamos sair desse engarrafamento! Não podemos perder tanto tempo assim!
— Não entre em pânico, amigo. Nosso carro não voa!
— Então vamos alugar um aerocarro e transferir...
— Muito perigoso. Melhor ter paciência. Além disso, o engarrafamento já vai acabar. É só nós passarmos por esse bando de loucos.
É claro que Ataíde podia ser mais paciente. Era quarenta anos mais moço para aguentar a tortura que estava sendo aquela viagem. Mas ao menos eu tinha fé que meu sofrimento não duraria mais tanto tempo.
— Ué! — disse Ataíde. — O que está acontecendo ali?
Olhei mais à frente e vi que os manifestantes estavam se levantando. Corriam para suas vans e seus ônibus estacionados no acostamento e, mal entravam, saíam em disparada.
— Tomaram juízo, ainda bem! — eu disse. — Agora o trânsito vai andar!
— Que ruído é esse? — perguntou meu companheiro.
Eu não escutava tão bem quanto ele. Demorei um pouco para ouvir o ruído. Pareceu o som de um grande veículo aéreo. Naquele momento, a locutora histérica voltou a falar no rádio:
— Atenção, a força aérea está perseguindo os dirigíveis dos sequestradores do governador! Segundo nossas informações a aeronáutica vai derrubar um dos dirigíveis como forma de intimidação. Nele estão apenas alguns assessores!
Ouvimos sons de explosões.
— Essa não! — disse Ataíde.
Enfiamos as cabeças pelas janelas e olhamos para trás. Dois dirigíveis eram perseguidos por turbocópteros. Um deles soltava fumaça e perdia altura. Ia cair na linha da estrada.
— Mete o pé, Ataíde!
Era o que o meu amigo desejava fazer, mais que tudo. Os carros na frente também tentavam desenvolver, mas a fila ainda era grande. Todos socavam as buzinas querendo sair da pista de pouso, ou melhor, na “pista de queda” do dirigível.
Então ouvimos o estrondo da gigantesca estrutura de metal contra o asfalto. Olhei para trás e vi o dirigível engolindo os carros, levantando uma grande nuvem de poeira, fumaça e fogo. Vi o rosto estupefato do motorista de trás. Ele ficou tão apavorado que, tentando forçar passagem, acabou batendo em nossa traseira.
— Droga! — eu disse. — O equipamento no porta-malas! Espero que não tenha quebrado!
— Finalmente — disse Ataíde. — A estrada está se abrindo!
Os carros ganhavam velocidade. Mas o dirigível estava bem atrás de nós. O carro do sujeito que nos abalroara foi esmagado e uma nuvem de poeira envolveu nosso carro. Aguardei o impacto. Mas ele acabou não ocorrendo. A poeira começou a dissipar e depois de alguns metros eu vi que o acidente havia ficado para trás. O nosso foi o último veículo a escapar.
— Como eu disse, Coelho, meu velho. Eu não acredito em azar. Mas acredito na sorte. Ou melhor, tenho fé nela.
O dirigível onde devia estar o governador passou por cima de nós, acompanhado pelos turbocópteros. Um foguete lançado do dirigível atingiu um dos perseguidores, que caiu no acostamento. Logo que passamos, ele explodiu e fragmentos nos atingiram. De repente o carro começou a sambar na pista. Pelo desnível, percebemos que um dos pneus havia furado. Um estilhaço devia tê-lo atingido. Ataíde , porém, conseguiu controlar o carro.
— E agora, Ataíde? Vamos ter que parar e trocar o pneu?
— Nem pensar. Não podemos arriscar que alguém veja o equipamento.
— Mas não vamos longe com o pneu furado.
O semblante de Ataíde estava tenso. Passamos por mais alguns turbocópteros derrubados. Após alguns momentos ele disse:
— Vamos ter que fazer por aqui mesmo.
— Mas onde? Na beira da estrada?
— Não. Ali!
Ele apontava para uma ponte mais à frente. Havia uma saída, era uma estrada de chão, por onde entramos. Demos a volta e fomos parar debaixo da ponte. Era uma ponte seca.
— Você lembrou que essa ponte era seca, Coelho?
— Não, faz muito tempo. Minha memória não é a mesma.
— Logo isso não será problema. Vamos lá!
Saímos do carro. Estava preocupado, mas com todo aquele caos seria bem capaz de passarmos desapercebidos. As autoridades tinham coisa mais importante para se preocupar. Abrimos o porta-malas e retiramos o equipamento ovóide, que estava coberto com uma capa.
— Ainda bem que estava bem protegido — disse Ataíde. — Não quebrou.
— Onde eu vou ficar? — perguntei.
— No banco de trás. Vamos por o Ovo da Vida no banco do carona.
Fizemos como ele sugeriu. Depois Ataíde retirou o ultradínamo do conjunto e abriu o capô, instalando-o no local onde deveria estar o ar condicionado, e conectou os cabos no Ovo. Então retiramos a capa e eu vi o corpo, ressecado como uma múmia, imerso em líquido dentro do invólucro transparente, em forma de ovo, suportado pelo chassi do equipamento. O corpo estava em posição fetal e conectado em vários tubos.
— Caramba! — eu disse. — Nunca me acostumo com essa coisa.
Sem dizer nada, Ataíde desenrolou um plástico transparente em forma de saco de dormir no banco de trás. Eu tirei a roupa e me deitei, entrando no saco.
— Pronto. Agora vou dar uma acelerada pra carregar.
Ataíde ligou o carro e pisou fundo. Um “display” de barras gráficas indicou que o equipamento estava se carregando. Quando chegou ao máximo, Ataíde perguntou:
— Está pronto?
Respirei fundo, fechei os olhos e acenei afirmativamente com a cabeça. Eu sabia que ia doer. E muito.
Ataíde acionou o equipamento.
O saco plástico se fechou sobre mim. Era de um material nanotecnológico que mudava de conformação de acordo com os comandos do aparelho. O saco encheu-se de líquido e com ele vieram vários pequenos grânulos, como se fossem grãos de areia. Mas eles se moviam de forma autônoma. Eram nano-robôs, com funções bem típicas. Penetraram pela minha pele, boca, olhos e nariz. Eu morri, sufocado, enquanto era corroído por dentro, minha carne dilacerada por centenas de minúsculos vermes cibernéticos.
Acordei tossindo, engasgado com um líquido viscoso. Estava no banco do carona, envolto no ovo transparente que acabara de rebentar. A visão embaçada. Reconheci que o borrão ao meu lado era Ataíde.
— Venha, meu chapa — ele disse. — Saia daí.
Ajudou-me a sair e a ficar de pé. Minha vista clareou e eu vi, refletido no retrovisor, a minha face agora com vinte anos.
— Vamos dar o fora daqui — disse Ataíde.
Enquanto eu me vestia, ele devolveu o equipamento ao porta-malas. Depois retirou o saco do banco traseiro. Dentro dele estava algo que há pouco fôra o corpo de um velho, mas agora estava irreconhecível. Jogou num canto, depois tirou dois galões de aço inox do porta-malas. Derramou o primeiro sobre meus restos mortais. Era um ácido forte, corroeu quase tudo produzindo fumaça branca de odor acre. Do segundo galão, derramou querosene e ateou fogo. Então Ataíde disse:
— Pelo menos para isso aqueles turbocópteros em chamas vão servir. Ninguém vai notar mais uma coluna de fumaça, ainda mais que esta é bem menor.
— Vamos embora daqui.
— Você dirige? Eu não agüento mais!
— Claro. Ajudar os mais velhos é obrigação dos mais novos.
— OK, espertinho. Vou deixar passar essa. Afinal, daqui a trinta anos será minha vez.
Tomei a direção e retornamos à rodovia.
— Lá vamos nós para os pedágios! — comentou Ataíde.
— Não reclame, meu velho. Nós já estamos desobedecendo muito às regras com nossas reencarnações. Já devíamos estar pagando altas sobretaxas, não estivéssemos fazendo isso clandestinamente.
Ele ficou calado, pensativo. Depois disse:
— Governo de m....!
— Escute. Não seria melhor nos livrarmos do equipamento? Com toda essa confusão por aqui, talvez haja alguma barreira na estrada.
Ataíde torceu o nariz e disse:
— Não. O equipamento é muito caro. E seria muito azar. E você sabe que eu não acredito em azar. Vamos acreditar na sorte.
Dei de ombros e liguei o rádio. Seguimos tranqüilos pela estrada arruinada. Finalmente eu me sentia bem de novo, e seria assim durante as próximas décadas.