Casa onde nasci.
Casa onde nasci.

Reginaldo Miranda[1]

Entre as cenas que guardo da infância tem a de uma tarde longínqua em que, na inocência de criança, percebi os dois extremos da existência humana. Quinze dias depois de meu avô completar oitenta anos de idade eu completei oito. Naquela altura ele tinha dez vezes mais idade do que eu. Desde sempre gostava de me contar histórias de Trancoso, uma delas a do papa-mel. Certo dia, quando eu ainda alvorecia, ele veio da rua trazendo-me um cavalinho feito em talhe de carnaúba. Para ensinar-me a cavalgar montava-o e se punha a galopar saltando contente pela casa. Depois eu me pus a imitá-lo e, assim, por alguns dias aquele passou a ser o meu brinquedo favorito.

 

Muitas são as lembranças que guardo dessa fase da aurora da minha vida. Era o tempo dos becos estreitos e tortuosos, das ruas de chão, dos areões, das estradas empoeiradas, dos velhos jeeps e caminhonetes, dos caminhões pau-de-arara, do ônibus sacolejante do Luizinho, dos poços cacimbões, das lamparinas e candeeiros a querosene, da passagem dos boiadeiros, dos banhos no Xixá, enfim, das quermesses e festejos da padroeira, quando a pequena cidade recebia grande número de romeiros e mascates. São flashes, pequenas passagens gravadas indelevelmente na memória.

 

Disse em outra crônica que tínhamos um curral nos fundos de nossas casas, a dos meus e pais e a dos meus avós. Ali numa apegada quinta se colocava vacas paridas que vinham da fazenda, para o consumo do leite matinal. Naquela época, em face de reforma em nossas instalações, as vacas estavam sendo ordenhadas no curral de uma prima do meu avô. Os bezerros eram levados à tardinha, da nossa quinta para aquele curral. Não era tarefa nossa, mas naquele dia, por algum motivo, quem o fazia não estava presente. Então, meu avô me chamou para levarmos os bezerros da quinta para o curral. No trajeto tínhamos de passar pela frente de sua casa na praça da matriz. Fomos, chegamos à quinta, ele laçou os dois bezerros, colocando-lhes cabrestos. Lembro que ele segurou o mais forte, de cor rajada e me entregou o cabresto de uma bezerrinha preta. Então, saímos com esses bezerros em rumo ao indicado curral. Como os bezerros já sabiam para onde ir, corriam à frente e nós o seguíamos segurando à rédea para reduzir a marcha.

 

No entanto, ao descer a praça da matriz os bezerros ganharam velocidade e nós tentávamos freá-los, ambos sem forças para segurá-los. Então, por alguns metros, os bezerros corriam ladeira abaixo, arrastando-nos e nós tentando freá-los, até que eles se soltaram e partiram em disparada para o curral. Felizmente, nenhum se desviou, chegando em paz ao seu destino. Nós, ofegantes fomos prendê-los. Contudo, um parente que assistia aquela cena à praça, recriminou meu avô pelo desatino daquele ato. Disse-lhe:

- Você não tem mais idade para essas coisas! Nem você nem esse menino.

E vovô ouviu-lhe, nada dizendo. Compreendeu a realidade.

Até àquele dia eu jamais percebi que meu avô pudesse ter alguma limitação. Era um homem que resolvia tanta coisa, dele e dos outros, então, como não podia resolver uma coisa daquela? No entanto, aquela advertência fez-me perceber a fragilidade física do meu avô. Também a minha. Percebi então que nós dois estávamos nos extremos da vida: eu no alvorecer, ele no entardecer. Nunca mais repetimos aquele ato, mas a lembrança dessa percepção ficou para sempre na minha memória. Meu avô envelhecia fisicamente, mas permanecia jovial na alma, na emoção e no pensamento. Eu desabrochava para a vida. Certamente, nessa renovação de ciclos reside a essência da vida humana nesse plano existencial.

 


[1] REGINALDO MIRANDA, advogado especialista em Direito Constitucional e em Direito Processual, foi membro do Tribunal de Ética e Disciplina da OAB-PI, da Comissão de História, Memória, Verdade e Justiça, assim como cofundador e presidente da Associação de Advogados Previdenciaristas do Piauí. Representou a OAB-PI na composição da Comissão de Estudos Territoriais do Estado do Piauí – CETE (17.2.2021 – 31.1.2023). É membro da Academia Piauiense de Letras e do Instituto Histórico e Geográfico do Piauí. Contato: [email protected]