[Bráulio Tavares]

 


(Ilustração: Saul Steinberg)

Na formação de palavras, interpretações errôneas sobre seu significado original acabam influenciando suas transformações futuras. Em inglês existe a frase-feita “to eat humble pie” (“comer torta humilde”) no sentido de ser submetido a uma humilhação. A expressão original não tinha nada a ver com “humble” (=humilde): era “to eat a numble pie” (“comer uma torta de vísceras, ou de miúdos”), que passou a ser grafada erroneamente como “to eat an umble pie” e depois, foi preciso justificar essa palavra inexistente “umble” e o jeito foi dizer que na verdade se tratava de “humble”, humilde.

Uma confusão parecida deu origem à palavra “blog”. Saites onde era possível fazer anotações instantâneas para serem lidas por todo mundo foram chamados de “web log”, sendo que “web” é rede e “log” é diário, livro de anotações. O hábito comum na língua inglesa de emendar duas palavras que sempre aparecem juntas fez o termo virar “weblog”. Logo apareceu alguém que re-dividiu a palavra em “we blog”, que parecia a conjugação de um verbo inexistente: “nós blogamos”. O resto é história.

Uma maneira frequente de criar palavras assim é quando uma palavra estrangeira entra em nosso vocabulário e, sem entendermos o que ela originalmente significa, procuramos racionalizar o seu significado através de uma modificação. Em inglês a barata (inseto) é “cockroach”. “Cock” (que em princípio é “galo”) é usada para designar animais machos de várias espécies”; “roach” se usa para diferentes tipos de inseto. Mas a palavra na realidade vem do espanhol “cucaracha”, e a língua inglesa (tão antropofágica quanto a nossa) impôs ao termo estrangeiro uma forma baseada em duas formas nativas.

Uma vez ouvi alguém dizer que no aeroporto iria fazer “o chequinho”. Perguntei o que era, e a pessoa me disse: “A gente vai no balcão, dá o número do localizador do voo, despacha as malas, aí a moça entrega aquele chequinho com os dados do voo”. Na verdade o termo é “check in”, ao pé da letra “verificação de entrada”, assim como “check out” (mais usado em hotéis) é “verificação de saída”. Mas como a pessoa não conhecia o termo em inglês tentou dar-lhe a forma de algo que lhe era familiar, e a solução foi chamar de “chequinho” o cartão de embarque.

Nosso corpo físico assimila corpos estranhos procurando uma maneira de torná-los inofensivos (protegendo-os com um cisto, p. ex.). Na formação da língua (que é incessante, permanente) as palavras estranhas, quando têm utilidade real e são usadas com frequência, têm que passar o tempo inteiro pelo crivo de pessoas que não as conhecem mas precisam explicá-las de alguma maneira. Quando a explicação é engenhosa e plausível, ainda que falsa, pode acabar pegando. O mais interessante no processo é essa nossa capacidade infinitamente flexível de reinterpretar, e nossa teimosia em dar explicações aparentemente lógicas para processos que de lógicos não têm nada.