Doca Nunes e as memórias de Wanda
Por Elmar Carvalho Em: 08/07/2020, às 12H47
DIÁRIO
[Doca Nunes e as memórias de Wanda]
Elmar Carvalho
07/07/2020
No começo deste ano, antes da pandemia, numa de nossas reuniões da APL, o confrade Homero Castelo Branco me entregou o livro “Os Doca Nunes – passado e presente – uma genealogia inacabada”, editado pela Nova Aliança (2020), com orelha e apresentação de Hilma e Homero Castelo Branco, distinto casal amigo, parentes da autora. Por motivo de tempo e outros percalços, tardei em atender o pedido de Homero, para lhe tecer breve comentário, o que ora o faço.
A autora foi enfática ao esclarecer que não escrevera um biografia (ou autobiografia), mas, sim, memórias. De modo que no livro estão as recordações de sua vivência e convivência e das pessoas e coisas que lhe são mais caras.
Sua prosa, em certas passagens, ganha matizes e tonalidades de verdadeira prosa poética, com frases rítmicas, bem construídas, repassadas de emoção, beleza e vivacidade. Fala do amplo solar paterno, de muitos quartos e compartimentos, do quintal, do jardim interno em que sua mãe cultivava belas e odoríferas flores. Quintal e jardim amplos, em que o girassol não precisava gritar asfixiado, como no belo poema memorialístico de Ferreira Gullar.
Recorda seus afazeres e entretenimentos, como elaborar seus trabalhos de crochê, com linhas coloridas, em que esquecia os problemas e se sentia transportar para uma dimensão mais prazerosa. Fala das cantigas e das brincadeiras de roda, e de um tempo em que as famílias e os amigos costumavam conversar nas calçadas, na frente de suas casas, sem medo e sem pressa, e sem o cativeiro dos “brinquedos” eletrônicos de hoje.
Por vezes, suas memórias ganham contorno e tessitura de uma natureza morta, em que os objetos, as frutas, o bule de café, o abafador, os objetos de flandres ganham o colorido de uma bela pintura das coisas e dos tempos de outrora, em que a vida parecia escorrer sem pressa, com mansidão, sem a urgência e premência dos dias de agora, em que as pessoas parecem não ter tempo sequer para pensar e ficar quietas no seu canto.
E nessa toada saudosista lembra as noites de antigamente, as noites de plenilúnio, violões e serenatas, a luz mortiça dos lampiões, as vozes dos seresteiros, que quebravam o silêncio das frias madrugadas, com suas melodias românticas, cujas letras eram um belo poema de amor.
De suas linhas memorialísticas evolam belas canções, que me fazem evocar os seresteiros, “com seus violões, embriagados de sonho e de cachaça”, que “dedilham canções às bem-amadas, arquejantes de amor por entre arminhos”. São metáforas e impressões impregnadas de ardente emoção, de saudosas lembranças que insistem em não morrer. Memórias vivas e pulsantes, refertas de emoção e beleza.
Na evocação de seu passado, de sua infância, de sua adolescência e juventude, recorda os versos de poetas de sua predileção, entre os quais o lírico e ingênuo Casimiro de Abreu, na singeleza de seus versos mais expressivos, sobretudo os do poema “Meus oito anos”. Parece que vemos os vultos de seus pais, de seus irmãos, de seus parentes e amigos, em amigável e benfazeja convivência, tecida em respeito e mútua compreensão, mas em que se seguia a regra de ouro do Evangelho e do bem-viver.
E como um estribilho insistente, permanece em sua memória o rangido e o ringido da rede de seu pai, em perene vai e vem, como o cricrilo insistente de um grilo, ringindo e rangendo no gancho enferrujado do armador. Mas também em suas páginas encontramos a beleza das aves e os seus gorjeios maviosos. Não há dramas nem tragédias, mas, sim, a beleza das pequenas coisas, dos pequenos gestos de afeto, das palavras de acolhimento, das amizades verdadeiras, que se consolidam e se fortalecem no decorrer dos anos. Seus relatos são sempre permeados por emoções e poesia, e por reflexões e experiência de vida.
A autora faz belas e poéticas descrições da natureza e do rico patrimônio arquitetônico de Oeiras, quando se refere aos seus vetustos sobrados, aos seus casarões solarengos, aos becos estreitos e sinuosos, aos históricos edifícios públicos, de onde ecoam lendas, estórias e histórias, e quando se reporta a suas praças, jardins e logradouros. Neste ponto não consigo refrear a tentação de transcrever este pequeno trecho de meu poema Noturno de Oeiras:
Nos campanários de antigas igrejas
algum falecido sineiro repica
os sinos para si mesmo.
Uma sonata se evola
de piano que já não existe.
E persiste por pura teimosia.
Ao longo do livro encontramos trechos que são na verdade verdadeiras crônicas, algumas evocativas, memorialísticas. Outros contam muito da história familiar, dos relacionamentos, das viagens, dos encontros e desencontros. Uma parte do livro contém as filosofias de vida e os ditados escritos por Doca Nunes, o pai da autora; outra é um minidicionário da “linguagem popular oeirense” e há ainda registros de mezinhas e simpatias, que são uma contribuição para um melhor conhecimento da cultura da velha capital.
Enriquece-o uma espécie de álbum, recheado de fotografias e ilustrações coloridas e em preto-e-branco, em que aparecem o brasão da família Nunes, personalidades históricas, familiares, amigos, partituras, igrejas, logradouros, solares, etc., e a beleza espinhenta de um cacto se recortando contra a beleza luminosa de um deslumbrante pôr de sol oeirense.
A obra é ainda um rico e fértil manancial para a genealogia propriamente dita e para a história oeirense, porque refere a descendência da família Nunes, no tocante a seu tronco familiar, a partir do patriarca Pedro Pereira Nunes. Faz a contextualização histórica de quando essa tradicional família se fixou no Piauí. Presta um grande serviço à historiografia porque traça a síntese biográfica dos parentes que mais se destacaram em diferentes ramos da atividade humana.
Dessa forma, além dos Nunes que se destacaram na política, entre os quais seis governadores, levanta importantes dados da biografia do primeiro médico do Piauí, o cirurgião-mor José Luiz da Silva, nascido em Ceceira Grande do Milharado de São Miguel, filho de Antônio Luiz da Silva e Paula da Silva, que chegou em plagas oeirenses em 1803. Casou-se com Ana Maria Ferreira, em primeira núpcias, e com Raimunda Ferreira do Nascimento, originando numerosa descendência, que se entrelaçaram com as mais proeminentes famílias de nossa primeira capital.
Sobre essa ilustre figura histórica, diz a autora: “O escocês George Gardner (1836 – 1849), médico e botânico, percorreu o Piauí durante o período de cinco anos no qual realizou estudos e pesquisa por várias regiões do Brasil (1836 – 1841). Palmilhando nosso território, incluiu-o num trabalho de pesquisa que está consolidado em sua obra Viagem ao Interior do Brasil. // Esteve em várias cidades do Piauí, notadamente em Oeiras, onde passou quatro meses (1839).”
Em seu livro, Gardner, além de fazer várias observações sobre aspectos de Oeiras, aduz que teve a oportunidade de fazer várias cirurgias, entre as quais catarata e litotomia. Relata que Oeiras poderia gabar-se de ter dois médicos residentes e uma farmácia.
Sobre o cirurgião-mor fez lisonjeiras referências, considerando-o cavalheiro inteligente e amável”, de quem teria recebido muitas gentilezas. Acrescentou que José Luiz residia na cidade há 36 anos, e que era pai de numerosa prole. Sobre o outro esculápio afirma que era bem instruído e de índole amável, e que fora assassinado na rua, poucos meses após sua partida.
É um belo livro de memórias, permeado de poemas e prosa poética, de crônicas afetivas, familiares, evocativas, e que, além disso, ainda presta um relevante serviço à genealogia e à historiografia piauiense.