DISCURSO DE RECEPÇÃO À NIÈDE GUIDON (1933-2025) NA ACADEMIA PIAUIENSE DE LETRAS (APL) POR NELSON NERY COSTA
Por Diego Mendes Sousa Em: 12/12/2025, às 12H04

(NIÈDE GUIDON)
Ilmo. Sr. Presidente da Academia Piauiense de Letras, Zózimo Tavares, a quem saúdo em nome dos demais integrantes da Mesa de Honra,
Ilma. Sra. Presidente da Fundação Museu do Homem Americano Niède Guidon, ora empossada,
Colegas acadêmicas e acadêmicos,
Escritores, intelectuais, cientistas, professores e estudiosos,
Senhoras e senhores,
Foram bem poucas as mulheres que ingressaram na Academia Piauiense de Letras desde seu nascedouro e pouco foi feito para mudar o padrão que predomina em seus quadros de intelectuais homens brancos. Dentre suas quarenta cadeiras, apenas Luiza Amélia de Queiroz foi patronesse, poetisa romântica que soube definir a mulher na segunda metade do século XIX, olhando ela própria para si. Em Um Retrato disse: “Amando com paixão, sem ser querida/Um homem que seus dons não aprecia,/É capaz de por ele dar a vida!//Eis a triste mulher qu’a sorte impia//Para cúm’los de males, atrevida//Deu-lhe vasta e ardente fantasia!”.
A primeira mulher a ser escolhida para ocupar uma de suas vagas foi justamente Amélia Carolina de Freitas Beviláqua, logo no seu início, que fez de sua residência no Rio de Janeiro um centro da cultura brasileira. Inclusive, seu primo Lucídio Freitas, fundador da Academia Piauiense de Letras frequentava-a, quando lá estudava Direito. A escritora publicou inúmeros romances de costume, em geral com as mulheres como personagens principais. Destemida, foi a primeira mulher a pretender concorrer a uma vaga na Academia Brasileira de Letras, mas o preconceito na primeira metade do século XX era tão forte, que sequer pode se inscrever para concorrer em um pleito.
Maria Isabel Gonçalves Vilhena, Neném Vilhena, filha de Teresina, foi professora, cronista e poetisa simbolista de muita sensibilidade. Foi a segunda mulher a ocupar uma cadeira na instituição, depois de anos sem nenhuma nela ingressar.
Maria Nerina Pessoa Castelo Branco, hoje decana da Academia Piauiense de Letras, também foi professora, cronista, contista e poetisa moderna, ingressando muito jovem ainda. E, como ela mesma gosta de contar, foi a primeira mulher fora da família a me olhar nu, pois era uma adolescente vizinha da casa dos meus pais na rua Elizeu Martins quando me viu recém-nascido.
Por sua vez, Alvina Fernandes Gameiro era filha de pai português que emigrara para o Piauí e que fizera de seu lar um espaço para os intelectuais piauienses da época, com os quais a jovem conviveu e cresceu. Com estudos nos Estados Unidos, teve também formação em belas artes, da qual foi professora e igualmente pintora. Como escritora, passou pelo conto, pela poesia e pelo romance, sendo uma das mais importantes romancistas do Brasil pela excelência e pela pesquisa linguística em sua obra, em que procurou retratar o linguajar do caboclo piauiense.
Emília Castelo Branco de Carvalho, Lilizinha, do tronco fundamental que integra a Academia Piauiense de Letras, a família Castelo Branco, nasceu no Rio de Janeiro. Foi cronista, contista e romancista, com vários romances com personagens principais femininos. Depois que esta faleceu, em 1993, sua cadeira foi ocupado pela sua mãe Emília Leite Castelo Branco, Lili, esta nascida em Portugal. Escreveu inúmeros romances sociais, bem com foi contista e cronista.
Fides Angélica de Castro Veloso Ommati é conferencista, escritora, advogada, jurista e professora. Desde cedo teve o nariz empinado e soube construir uma carreira profissional pioneira e marcante. Muito jovem assumiu a cadeira de direito administrativo da Universidade Federal do Piauí e escreveu uma das primeiras obras no Brasil sobre a previdência social, fruto de seu mestrado na Universidade Federal do Rio de Janeiro. Marcante foi sua carreira na Ordem dos Advogados do Brasil, sendo a primeira Presidente de Seccional no país, exercendo por três mandatos sua direção. Foi líder e a pessoa que me conduziu também a três mandados como Presidente da OAB.
Teresinha de Jesus Mesquita Queiroz, nascida em Esperantina, desde jovem se afirmou como uma professora excepcional em História na Universidade Federal do Piauí. Exerce a docência com exemplar dedicação, apostando na formação de muitos jovens e, com a ajuda destes, resgatou inúmeras obras de autores pretéritos, em especial Clodoaldo Freitas, primeiro Presidente da Academia Piauiense de Letras.
Maria do Socorro Rios Magalhães nasceu em Teresina, de tradicional família de Piracuruca. Trabalhou na docência superior na Universidade Federal do Piauí e na Universidade Estadual do Piauí, com destaque para seus estudos sobre literatura piauiense. Além de crítica literária, resgatou inúmeros escritores locais, como o primeiro autor nascido no Estado, Ovídio Saraiva de Carvalho e Silva, que publicou livro de poesia em 1808, por ela editado e estudado. As mulheres que ingressaram na Academia Piauiense de Letras não o foram por dádiva a seu gênero, mas pelos trabalhos realizados e pela suas afirmações como escritoras e intelectuais.
Niède Guidon nasceu em Jaú, São Paulo, em uma época de mudanças no Brasil, da formação da administração pública burocrática, da garantia de direitos sociais e de desenvolvimento industrial. Foi o espírito do amanhã analisando o passado com que avançou em sua formação acadêmica, graduando-se em História Natural e especializando-se em Zoologia. Partiu para a Europa, graduando-se em pré-história em Sorbonne. Mais ainda, obteve o doutorado em Arqueologia na mesma instituição, a de maior reconhecimento em seu país e uma das mais conceituadas do mundo. Na França ainda, trabalhou no Centro Nacional de Pesquisa Científica e, retornando ao Brasil, passou a arqueóloga do Museu Paulista.
O Governo Francês a agraciou com a medalha da Ordem Nacional do Mérito, um dos títulos mais meritórios do mundo, bem como a medalha comemorativa da UNESCO pelos sessenta anos da instituição, na África do Sul, e a medalha de ouro pela premiação para a cultura Herity Italia. No Brasil, entre seus inúmeros lauréis e homenagem, recebeu do Presidente da República a Medalha CAPES 50, o prêmio Faz Diferente entregue pelo jornal O Globo e o prêmio Itaú Cultural 30 Anos, dentre vários outros.
O primeiro contato de Niède Guidon com o que viria a ser o sítio arqueológico, foi em 1963, em uma exposição no Museu Paulista, que expunha pinturas rupestres de Minas Gerais. Lá recebeu a visita de um morador de São Raimundo Nonato, que lhe informou existir pinturas semelhantes em sua cidade no sítio arqueológico de Coronel José Dias. Porém conseguiu visitar o Piauí apenas em 1973, após cerca de oito anos fora do Brasil, lecionando na École des Hautes Études em Sciences Sociales em Paris.
Em 1973, integrou a missão Arqueológica Franco-Brasileira, em parceria com o Museu de História Natural de Paris para o desenvolvimento de projetos de arqueologia e concentrou no Piauí seus trabalhos desde então. Esse enfoque dado à região culminou na criação do Parque Nacional da Serra da Capivara por iniciativa de Niède Guidon, dirigido pela mesma. Além disso, ela atua como Diretora Presidente da Fundação Museu do Homem Americano.
A ocupação humana da América continua uma questão controvertida e vem levantando inúmeros debates acadêmicos. Não houve registro ainda da presença de qualquer espécie Homo no continente, antes de cinquenta mil anos contados de nossa era. Portanto, é patente que a presença da espécie veio de fora, provavelmente já como o Homo sapiens sapiens. O caminho natural foi pelo estreito de Beering, entre a Sibéria e o Alasca. Pela lógica, o estreito que ligou a Ásia à América do Norte, significou o caminho natural de populações siberianas que migraram para o novo continente e o povoando.
Não existe data precisa para a existência do Homo sapiens, que se entende ter surgido a duzentos mil anos atrás, ainda o Homo sapiens neandertalensis, este descendente do Homo heidelbergensis, que por sua vez era originado do Homo erectus. A espécie humana atual – Homo sapiens sapiens – evoluiu separadamente do Homem de Neandertal, com crânios mais leves, rostos menores e membros mais retos. Surgiu, inicialmente, no Oriente Médio, possivelmente vindo da África, há cem mil anos atrás. Logo depois apareceu na Europa, como o Homem de Cro-Magnon; em seguida, chegou à Ásia e ao Extremo Oriente. Considera-se que, entre vinte a cinquenta mil anos, os humanos atravessaram o Estreito de Beering, depois que o gelo retrocedeu, alcançando a América. Pela mesma época, chegaram à Austrália também.
Os seres humanos são considerados membros da mesma espécie, não obstante a diversidade física existente. A cor da pele, o formato dos olhos e do nariz e a cor e a forma dos cabelos podem ser diversas, mas não há qualquer restrição quanto à reprodução, o que caracteriza uma espécie única. A população humana divide-se em três grupos, ou raças, principais: negroide, caucasoide e mongoloide. No entanto todos são seres humanos, sem nenhum privilégio para os considerados brancos em relação aos demais, nem do homem sobre a mulher.
A população principal que ocupou a América era, possivelmente, mongoloide, mas isto não está comprovado. Pode ter havido, nas primeiras migrações, populações de aspecto físico mais caucasoide, sendo tudo conjectura por hora. Admite-se, até, que o primeiro fóssil brasileiro, a Luzia, com mais de dez mil anos, fosse negroide, pois foi com esta aparência que emergiu de sua reconstituição, ainda que as análises recentes de DNA digam que não. Considera-se, hoje, que grupos negroides possam ter vindo da Austrália, pela Oceania, ou que estivessem estabelecidos no Extremo Oriente, antes das populações mongoloides. Nos primeiros tempos, a população era esparsa, deixando pouco testemunho de sua presença, de modo que não se tem uma análise mais convincente sobre a ocupação inicial.
A teoria tradicional considera que a data possível da chegada do homem na América deu-se a apenas doze mil anos atrás, talvez na última glaciação. O Homo sapiens sapiens teria vindo através do estreito de Beering, adaptado ao frio das planícies geladas, perseguindo rebanhos de animais que migravam para o leste. Depois, desceu do Alasca à Terra do Fogo, correndo atrás de caça e ocupando todo o continente americano.
Pode ter havido, porém, outras formas de migração, em períodos anteriores à última glaciação. No mesmo modo que o homem enfrentou o frio, no modelo anterior, teria tecnologia para viajar de ilha em ilha, quando as águas do oceano Pacífico estavam mais baixas ou, mesmo, da África ou da Austrália, o que não se sabe bem. A pesquisadora Niède Guidon entende que, como hipótese, o homem pode ter chegado à América há setenta mil anos e que, no Pleistoceno final, há sítios no Brasil que indicam a presença humana bem antes do que aceito normalmente.
Para Niède Guidon, que revolucionou a arqueologia das Américas, ao enunciar e demonstrar, antes de qualquer outro, sobre homens anteriores ao Clóvis, conforme a teoria ortodoxa norte-americana, sobre a presença de homens na América, disse o seguinte:
Refletimos sobre diversas possibilidades, e hoje é válido propor como hipótese tanto marítima, como terrestre. Pode-se também propor que os primeiros grupos chegaram até o continente há pelo menos 70 mil anos. Os sítios nos quais foram encontrados vestígios datados do Pleistoceno final são raros na América, mas no Brasil temos alguns para os quais a quantidade e a qualidade de datações 14c obtidas são excepcionais e nos permitem afirmar que o homem colonizou as terras do continente bem antes da data admitida pela teoria clássica. [...] No sudeste do Piauí, na área arqueológica de São Raimundo Nonato, escavações e sondagens permitiram a descoberta de três sítios que fornecem amostras de carvão cujas datações 14c mostram indubitáveis provas da presença humana durante o Pleistoceno final. [...] As escavações, iniciadas em 1978, demonstram que o abrigo foi utilizado pelo homem pré-histórico, pelo menos desde há cerca de 50 mil anos (GUIDON, 1992: 39-40).
É possível concluir que as Américas foram habitadas exclusivamente por Homo sapiens sapiens, na maioria vindo da Ásia, pelo estreito de Beering, em algum movimento das últimas glaciações. Aparentemente, o Piauí foi habitado por população remanescente a cinquenta mil anos, populações bem primitivas de migração asiática mais antiga, de uma segunda população que deixou manifestações culturais a vinte mil anos e, por fim, a Cultura Pedra Furada, a Cultura Serra Grande e a Cultura Agreste, a partir de dez mil anos antes de nossa era, as que deixaram as magníficas pinturas rupestres na região.
Na fase cultural mais remota, com datações de cinquenta mil anos, foram construído grandes fogões circulares resultantes da utilização de rochas caídas, arrumadas como se fossem fogueiras, com abundância de carvão. Os homens do período lascavam seixos de quartzo e de quartzito, com retoques limitados às margens dos bordos, como raspadores. Ao lado das pedras maiores, que tinham a função de quebrar os ossos, existiam lascas associadas às atividades de cortar a caça. Tratava-se de grupos caçadores coletores muito primitivos. Por volta de trinta mil anos existem indícios de pinturas rupestres, ao passo que são comprovadas algumas pinturas vermelhas com duas retas paralelas de dezessete mil anos.
Muitos arqueólogos, em especial os norte-americanos, discordam de datas tão antigas. Afirmam que não basta encontrar carvão de cinquenta mil anos, mas que se deve provar que o homem foi quem utilizou o material que deu origem a esses resíduos e que não decorrera o mesmo de qualquer fenômeno natural, como uma combustão de arbustos. Por outro lado, o material lítico seria resultado de pedras caídas sobre as outras em velocidade.
Em relação a este argumento, Niède Guidon e equipe responderam que as ferramentas de pedras não resultaram de quartzos produzidos naturalmente, em razão de apresentarem um pedaço de quartzo com lascas removidas da extremidade em cinco ocasiões sucessivas, resultando em um objeto de forma regular. Em relação ao carvão, argumentam os pesquisadores brasileiros que a paisagem da Pedra Furada era diferente do panorama agreste atual, pois lá havia antes floresta tropical, que dificilmente queimaria de forma natural, diversa da caatinga atual.
O homem na América, provavelmente, teve origem na Ásia, dada a proximidade no DNA entre os ameríndios e as populações indígenas da Sibéria. Deve ter vindo em várias levas, em cada glaciação, supondo-se uma primeira leva a cinquenta mil anos antes de nossa era, talvez grupos negroides próximos das primeiras populações da Austrália. A última migração foi a mais relevante, a dez mil anos, originando os índios das Américas, de modo que resultou da descendência de populações siberianas ancestrais, como índios ou ameríndios.
Pode-se dizer, então, que a cientista que primeiro trabalhou com a hipótese e, depois, com a verificação e com a procura de provas foi Niède Guidon. Ela abalou a antropologia mundial ao considerar a existência de migrações anteriores à última, cerca de dez mil anos antes e associada à Cultura Clóvis, no Sudeste dos Estados Unidos, que em boa parte do século XX foi considerada a mais antiga encontrada nas Américas. Hoje parece pacífica a existência de outras migrações, provavelmente associadas a anteriores glaciações, uma entre setenta e cinquenta mil anos atrás; outra a vinte mil anos; além de mais uma na última glaciação de dez mil anos, pela qual vieram quase todos os remanescentes de asiáticos, agora os ameríndios.
Niède Guidon subverteu os conceitos tradicionais da antropologia, especialmente os cientistas norte-americanos, aferrados à noção de que a Cultura Clóvis foi a primeira presença do Homo sapiens sapiens na América. Niède Guidon alterou a própria noção de que nossa espécie teria mais do que oitenta mil anos, pois hoje começa a se aceitar uma datação por volta de duzentos mil anos. Com base na teoria e na pesquisa de campo ela mudou a própria Antropologia com seus conceitos e seus estudos.
Não deve ter sido fácil para ela, em primeiro lugar, por ser brasileira e a ciência feita no país é quase sempre irrelevante para a ciência mundial. Em segundo por ser mulher, em um mundo ainda dominado pelos homens, pelo machismo e pelo desprezo à inteligência feminina. Por menor que possa parecer, uma mulher ingressar na Academia Piauiense de Letras ainda é uma vitória, pois dos duzentos patronos e acadêmicos desde 1917, esta não chega a representar cinco por cento do total, um número absolutamente irrelevante e vergonhoso.
Niède Guidon revolucionou a Antropologia com suas pesquisas, desafiou o estabilishment da ciência norte-americana e seus canons, transformou o Piauí no centro das Américas, enfrentou os potentados e os caçadores em São Raimundo Nonato e criou a maior área protegida de caatinga do mundo. Uma mulher além do tempo e dos limites geográficos.
Assim, a presença de Niède Guidon na Academia Piauiense de Letras tem um significado ainda maior do que aparenta, pois representa a consolidação da mudança no perfil dos membros da instituição, dominado por homens brancos heterossexuais. Que ela seja uma mudança na sua composição, para que haja mais mulheres, mais mamelucos, mais afrodescendentes e mais LGBT, para que os acadêmicos expressem efetivamente a sociedade piauiense no início do século XXI, em constante ebulição social. Lucídio Freitas sempre buscou o amanhã, que foi o que nós fizemos quando a trouxemos para cá.
Para finalizar, as palavras de nossa decana Maria Nerina Pessoa Castelo Branco: “Toca-me, alquimista/Mas não me transformes/No ouro banal!//Quero ser a mesma,/Sem retoques,/Como no princípio/E até ao fim!//o teu toque de magia/Seja para colocar-me/No limite do consciente/Ou como diria o filósofo:/Além do bem e do mal!”.
Obrigado!
Teresina-PI, 27 de novembro de 2020.
Nelson Nery Costa.
Nelson Nery Costa é membro efetivo da Academia Piauiense de Letras (APL), sendo um dos mais importantes presidentes da sua história centenária, com a reativação impressa das grandes publicações de autores piauienses de todos os tempos. (Diego Mendes Sousa)

