[Bráulio Tavares]

Journal d’une femme de chambre (1964), que por motivos variados só vim assistir agora, é um dos filmes mais bem comportados de Luís Buñuel, no sentido da narrativa, das imagens, das ações.  Um dos seus filmes menos surrealistas.  Isto não significa que não seja um bom filme, nem que destoe do conjunto, mas é como se o diretor tivesse querido mostrar aos críticos que, se quisesse, poderia ser um diretor de perfil “mainstream” como talvez Jean Renoir (que dirigiu também uma adaptação deste romance de Octave Mirbeau). “Se quisesse”: mas Buñuel não quer, e logo depois deste filme tentaria dirigir o frustrado Simão do Deserto, este, sim, um delírio surrealista autêntico, que por problemas de produção não pôde ser concluído conforme a idéia inicial e acabou se reduzindo a um média metragem. Em seguida, ele faria A Bela da Tarde, uma das suas mais bem sucedidas experiências de mesclar o romance-folhetim sentimental com as viagens mentais do surrealismo.
 
Como disse David Thomson, Buñuel é um diretor idealmente formatado para o cinema popular, pela importância que este atribui aos sonhos, às questões de identidade e às manifestações da fantasia.  Indo na contramão da maioria dos críticos que acusam Buñuel de incompreensível e antiburguês, ele afirma: “Os manifestos surrealistas não poderiam ter encontrado uma arena melhor do que o cinema comercial.  O estilista Buñuel nunca esquece que ali estamos nós, sentados na escuridão, presos às imagens luminosas”. A superfície exterior do melodrama, os conflitos emocionais, a empatia imediata provocada pelos seus conflitos cotidianos e facilmente inteligíveis – tudo isso pode funcionar como uma isca, arrastando o espectador para dentro de uma situação dramática cuja fundação ele entende por completo, e, a partir daí, alvejá-lo com a desconcertante artilharia de imagens surrealistas, apanhando-o desprevenido.  Foi justamente isto que Buñuel fez em A Bela da Tarde (1967), Tristana (1970) e Este obscuro objeto de desejo (1977),
 
Neste filme, a presença da criada Céléstine (Jeanne Moreau) num solar interiorano, no meio de uma família consistentemente repulsiva, desencadeia uma série de pequenas crises, inclusive o assassinato de uma garota.  As manobras de Céléstine para descobrir e punir o criminoso se misturam às suas manobras de ascensão social; seria um filme típico de diretores franceses da época, como René Clair ou o próprio Renoir.  Os pequenos detalhes buñuelescos (fetichismo, etc.) não destoam de um filme uniformemente bom, correto e competente, mas um equivalente aos filmes menores que ele fazia no México quinze anos antes.