Dia de arrumar gavetas
Por Carlos Castelo Em: 08/12/2022, às 18H24
[Carlos Castelo]
Muita gente reclama que já está virando bolor por causa da pandemia. Mal acaba uma cepa, entra uma variante nova e começa a cobrança para ficar em casa. A zaga protesta pelo confinamento, porque nem imagina como é a vida de uma crônica de gaveta.
Para os que não me conhecem, nem supõem como vivo, eu explico. Crônica de gaveta é aquela que um autor deixa guardada para usá-la quando não tiver inspiração, ou tempo de criar. É um estepe literário, digamos assim. E, como todo estepe, vive marginalizada.
Para começar, o sujeito normalmente nos escreve de má vontade. Nem sabe se vai nos enviar à redação. Efetiva o ato de redigir por obrigação de ofício. Vai que um dia adoece, sofre um acidente, deprime. Vai carecer de algo sobressalente sobre a mesa. Então, pede o bom senso, que nos mantenha à sombra, mofando.
A crônica de gaveta, portanto, fica ali num cantinho úmido e solitário. Sempre aguardando o momento de entrar em cena, dizer a que veio. Mas será que, um dia, a publicarão? É importante ter em mente que tal momento poderá nunca ocorrer.
Nesse instante é que sobrevém a SIC - Síndrome de Inutilidade Crônica. Todas nós, obras de gaveta, estamos sujeitas a sofrer do mal. Eu mesma já padeci dele e não o recomendo nem para as crônicas do Carpinejar. Como dói a hamletiana expectativa do ser ou não ser! Ninguém merece tamanha angústia existencial - em meu caso específico, não-existencial.
Falando um pouco sobre mim, estou desde 2018 fechada num arquivo chamado "Sobras". Quando fui gerada, e estocada, a Covid ainda estava no número 16. Peço, assim, ao leitor mimizento que se cale agora. Que suspenda essa lamúria inútil sobre epidemias. Venha sentar-se no colinho de um texto de gaveta e deixe que ele lhe conte o que é reclusão. Até uma freira enclausurada, do Carmelo de São José, se apiedaria do relato.
Quando se está presa na companhia de um texto de Verissimo, de Rubem Braga, ou do Nelson, o cativeiro é bem mais leve. Mas, e com o palavrório de um Carlos Castelo da vida? Pensam que é fácil conviver com tanta bobice e despautério, por anos e anos?
E me perguntem se tenho algum direito social para aguentar a charlatanice? Se tenho férias, 13º, plano de saúde? Indaguem que responderei com um redondo "não". Esse escriba me armazenou em algum recanto de seu vetusto notebook, há mais de quatro anos, não me abre, nem para uma revisão rápida, e eu que me vire nos 3000 caracteres.
Digo mais: toda crônica, e eu não sou exceção, sonha em um dia figurar numa coletânea. De preferência de editora com dinheiro, para poder ir à FLIP, com direito a assessoria de imprensa, e live numa mesa cheia de influencers.
Contudo, quem está enterrada viva, num HD, terá a oportunidade de, como diz o Paulo Coelho, realizar sua lenda pessoal? Ah, mas nem que o Sérgio Porto volte usando o pseudônimo de Stanislaw Ponte Rio-Niterói.
Bom, vou ficando por aqui. Não quero correr o risco de fazer muita marola. Sabe qual é um dos meus maiores medos? É esse cronistazinho barato, em vez de me postar, acabar me deletan...
(Publicado no Estadão)