CURIMATÁ E A MÉDICA ESTELITA
Por Elmar Carvalho Em: 14/09/2012, às 05H28
ELMAR CARVALHO
Na quarta-feira da semana passada, fui surpreendido por uma notícia que me chegou de forma inesperada. Veio até o gabinete do juízo, o Paulo, que fora motorista do falecido conselheiro Xavier Neto. Após colher a informação que desejava, ele me exibiu uns papéis, que trazia numa das mãos. Disse-me que se referiam a uma homenagem que a Câmara Municipal de Curimatá iria prestar à doutora Estelita Guerra de Macedo, e a duas outras pessoas que faleceram no mesmo desastre automobilístico. Fiquei um tanto chocado, e disse-lhe que conhecera essa médica, doze anos atrás, ainda no início de minha carreira magistratural. O Paulo me contou detalhes do acidente, que depois vi através da internet.
Passei aproximadamente quatro meses naquela cidade do Sul do Piauí, substituindo o titular, que se encontrava afastado. Foi então que conheci essa médica, creio que no ano de 1999, quando ela era prefeita de sua cidade, pela segunda ou terceira vez. O fórum e a prefeitura funcionavam em prédios próximos, em praça central da cidade. Se não estou enganado, ambos foram obras suas, em gestão anterior. Necessitei de tratar de um assunto de interesse dos jurisdicionados, e fui até seu gabinete.
Recebeu-me com educação e fidalguia. Pareceu-me uma pessoa de trato suave. Recordo sua voz como sendo pausada, agradável e emitida em tom jamais elevado. Havia, em um quadro, uma pintura que lhe retrava as feições com admirável fidelidade. Comentei alguma alguma coisa sobre esse retrato e sobre o estilo do artista. Ela ouviu atentamente o breve comentário, e sorriu. Era uma senhora de pele e olhos claros, alourada, e ainda estava na plenitude de sua beleza, conquanto devesse ter em torno de quarenta anos.
Pelos poucos meses que passei em Curimatá e pelas poucas vezes em que nos vimos, não posso dizer que fomos amigos. Mas sempre nos tratamos de forma civilizada e respeitosa. Ouvi falar que ela elogiara o meu esforço em tentar mover os processos, com a prolatação de centenas de despachos e sentenças. Nunca me fez pedidos, muito menos indevidos. A revi em mais quatro ou cinco ocasiões, duas delas no fórum.
Numa dessas vezes, falamos de literatura e poesia. Disse-me que seu pai – Júlio Borges de Macedo – fora poeta, e revelou-me que ela própria fazia poemas, de forma bissexta e sem maiores pretensões literárias. Nunca vi nenhum desses textos, de modo que não lhes posso fazer a menor avaliação da qualidade estética. Quando lhe falei das vicissitudes e percalços da vida, ela me confessou sentir, às vezes, infiltrar-se em sua alma certa tristeza, talvez a funda melancolia que todos sentimos em alguns momentos, e que é inerente ao próprio ser humano, e mesmo, talvez, a alguns animais, como cães e reses.
Participamos de um evento no campus local da UESPI. Estava presente, ainda bem me recordo, o professor Ribamar Nunes, que fora gerente da agência local do Banco do Brasil, e que era e é professor de letras. Falei sobre literatura e sobre arte poética. Recitei o meu poema Vida in Vitro, salvo engano. Gentilmente, ela me mandou entregar uma fita cassete de áudio, que registrava minha participação nesse encontro cultural.
Como disse, não fui propriamente seu amigo, mas fiz amizade com dois amigos seus: o rábula Vogado, que eu chamava brincando de Ad-Vogado, e o senhor Mundinho Mascarenhas, em companhia dos quais fui conhecer a grande e lendária lagoa de Parnaguá, que banha a vetusta e histórica urbe, de igual nome. Os dois nutriam profunda e sincera amizade pela doutora Estelita.
Creio que ambos reconheciam que ela poderia exercer sua profissão, com proficiência e brilho, em qualquer capital do país, como vários de seus irmãos, mas preferira se fixar em seu longínquo rincão, dedicando-lhe o melhor de seu esforço e inteligência, seja através do sacerdócio da medicina, ou dos mandatos em que o administrou. Eram o Vogado e o senhor Mundinho pessoas boas e simpáticas, que ainda recordo com saudade, apesar do longo tempo decorrido, que já me empana a memória. Com eles entretive, algumas vezes, agradável palestra.
Apesar dos escassos recursos da época, Curimatá me parecia bem cuidada, e denotava singela alegria, com os vários barzinhos e mamoranas floridas, espalhados pela cidade. Ao longe, na saída da estrada que vai para Avelino Lopes, descortinava-se o perfil azulado da serra, que me fazia nostálgico dos Morros de Santo Antônio do Surubim. Tenho a consciência tranquila de que fiz o possível para bem exercer as minhas funções, no curto período de quatro meses em que lá servi.
Quando cheguei a Curimatá pela primeira vez, numa madrugada silenciosa e fria, um jumento pastava placidamente o capim da praça central, sem ser incomodado por ninguém, muito menos pelo vigia do logradouro. Aliás, o quadrúpede mais parecia um jardineiro municipal a cumprir o seu mister de desbastar o renitente capim de burro. Doze anos depois, tenho a tristeza de receber a notícia de que a doutora Estelita falecera, justamente por causa de um animal solto sobre a pista de rolamento.
Num dos sítios da internet colho a informação de que Estelita significa estrela, ou uma mulher que foi estrela. Os seus belos olhos de jade certamente poderiam ser comparados a duas joias ou estrelas, incrustadas em sua face. E ela, que foi uma estrela de sua terra, continua a brilhar como um astro de uma outra e melhor dimensão, acolhida pela bondade infinita de Deus.