Conversando sobre poesia

Por Cunha e Silva Filho - especial para Entre-textos

De vez em quando, ouve-se decretar a morte da Poesia. Há até a declaração clara e abertamente confessada partindo de alguém que pertence ao mundo cultural. Em qualquer circunstância, sob qualquer pretexto, nada mais distante da verdade, nada mais absurdo. Com ou sem o moralismo de Platão (c. 420-. 347c. a . C.) na República, a Poesia não morre, nem muito menos por decreto, como se dependesse de uma vontade política. Na verdade, quem morre são os poetas enquanto seres de carne e osso. Não a Poesia, essa é eterna como são eternos Camões (1524-1580) e Shakespeare (1564-1616).


Há uma explicação plausível para o fato de grandes escritores, como, entre outros, Carlos Drummond de Andrade(1902-1987), Dante Milano (1899-1991), aliás notáveis poetas, manifestarem o desejo de, no final de suas preciosas existências, relerem os grandes autores da Literatura Universal, dando-nos a entender que o pouco tempo que dispunham não poderia ser sacrificado com o novo e o desconhecido.

 
Nessa mesma linha de pensamento, o tradutor, ensaísta e erudito Paulo Rónai(1907-1992), naturalizado brasileiro, em depoimento antigo afirmou que ia aproveitar os ócios da velhice para reler os grandes vultos da Literatura Universal. Isto é um assunto digno de ser explorado pela sociologia da literatura.


Qual a razão dessa preferência? Seria apenas uma preferência dos mais velhos, já vividos nas experiências do passado e do presente e até projetivamente no futuro? Como o conhecido personagem de Machado de Assis(1839-1908), o Bentinho, querendo ligar as duas pontas da existência, esses venerandos escritores, ao final da vida, decidiram-se pelo passado, assim como quem tem a certeza do caminho percorrido e bem sabe das delícias do terreno já palmilhado.


Nessa mesma linha de pensamento, porém, não estavam apenas os mais velhos, mas também os mais jovens na época em que eram ainda vivos aqueles citados autores,. Numa belíssima crônica sobre Poesia, José Guilherme Merquior ((1941-1990), entre ficar com os experimentalismos e a tradição poética, inclinava-se definitivamente pela poesia da rica tradição literária. Entre os modismos contemporâneos, sua preferência recaía pela Poesia de sempre, de discurso renovado e sedimentado no substrato estético universal. Essa Poesia de lastro cultural enraizado na herança universal é que, a meu ver, não deixará de existir enquanto houver vozes contemporâneas que cantem o sentimento humano em todas as suas matizes através de uma forma que, sem ser envelhecida e retórica, exprima o “sentimento do mundo” contemporâneo, latejando de modernidade, cheirando ao que nos cerca, traduzindo até nós as dores e as angústias da frágil condição humana na precariedade de suas atitudes, emoções, na fragilidade de seus amores, ódios e sentimentos vários. 


Em crônica antiga, o escritor e poeta Ledo Ivo tocou no mesmo tema da morte da Poesia, dizendo que, como aqui, a Poesia no estrangeiro já foi também declarada extinta. A decretação da morte da Poesia é,  pois, um tema recorrente. Uma vez, Álvaro Lins(1912-1970), grande crítico de formação humanística, também a abordou em ensaio, se bem que, como todo espírito lúcido, defendeu a Poesia como arte eterna. Segundo ele, crise pode haver, mas crise é sinal de vitalidade, estado de tensão, mas jamais morte ou desaparecimento.


Vejo que, quando se fala da morte da Poesia, é sobretudo porque os poetas são pouco lidos ou nada lidos pelo grande público, por uma razão bem simples. Por mais singelo que seja um poema, a sua leitura exige um esforço concentrado por parte do leitor, uma disposição tácita entre o leitor e o texto, isso em razão de o tecido literário apresentar um código lingüístico altamente concentrado e permeado de ambigüidades, caracterizado sobretudo pela opacidade de comunicação, que leva ao conhecido truísmo de que a alta Poesia se reveste de uma discurso hermético, demandando do receptor igualmente requisitos culturais sofisticados, o que afasta os leitores que buscam na leitura um passatempo ou algo que o valha. É claro que essa resistência dos leitores é muito mais evidente em se tratando da alta Poesia, sem se falar dos experimentalismos e vanguardismos, os quais serão conhecidos apenas pela inteligentzia cultural.


Vejo ainda que a morte da Poesia é vista também do ângulo comercial.Os livreiros são os primeiros a declarar que poesia não vende, alguns deles até mesmo nem gostam do gênero poético. Dificilmente os editores publicam por sua conta e risco obras poéticas de iniciantes, preferindo ficar com os autores consagrados, pelo menos com venda certa para um público restrito. Essas circunstâncias explicam igualmente o isolamento da poesia diante do grande público


A idéia da morte da Poesia me parece,  em si,  um tema por demais simplista, porém nem por isso indigno de indagações pertinentes a essa questão, a qual estaria mais ligada a fatores extrínsecos ao fenômeno literário, como, por exemplo, a quem interessa a Poesia de um ponto de vista sociológico? Seria ela uma arte realmente elitista, segundo pensam intelectuais? Ou uma arte alienada naquele sentido de “arte pela arte” remontando a um período literário vivido sob o signo do esteticismo ou nos temos propostos pelos movimentos parnasiano, simbolista ou decadentista, ou mesmo pelos experimentalismos, vanguardas e os mais novos movimentos artístico-literários despontados no século 20? Por que algumas pessoas, mesmo envolvidas com a vida literária, repudiam a poesia, preferindo cultivar e valorizar a prosa, a ficção?


A Poesia, por conseguinte, para ser valorizada, não depende somente do leitor literariamente culto , mas também de uma sensibilidade dirigida a essa peculiaríssima forma de comunicação literária. Inegavelmente, o que se convencionou chamar de alta poesia, ou poesia “de alta voltagem” (acredito que esta seja uma expressão usada por Merquior) será um produto artístico somente acessível aos iniciados, o que nos faz pensar que ela não é arte popular, ou melhor, não se aplica às massas.


Há por isso uma contradição gritante entre o movimento modernista brasileiro de 1922 que teve objetivos claramente voltados para a realidade brasileira e a sua repercussão junto ao povo. O nacionalismo literário brasileiro não foi um movimento em bases populares(1). O material, sim, foi buscado na realidade brasileira, mas a estilização operada, a estética que se plasmou foi altamente elaborada e com recursos expressionais e estilísticos só acessíveis a limitado círculo de leitores em termos demográficos, sobretudo se considerarmos o nível cultural de nosso povo na década de 20.

O povo ficou de fora desse movimento cultural. Isso nos leva a concluir que a arte literária superior e sobretudo no seu gênero poético, não se dirige ao povo, ou seja, é arte de elite. Somente através de um esforço sobre-humano é que alguém não pertencente aos grupos economicamente favorecidos consegue romper essa barreira e, assim, ter acesso à grande arte literária superiormente dotada, quer no gênero de certa ficção, quer sobretudo no gênero poético.Esse lado da poesia divorciado das massas seria por ventura uma das razões da propalada morte da poesia? Restaria aprofundar esse aspecto.


Não resta, porém, dúvida de que a questão da morte da Poesia se relaciona  a componentes culturais, sociológicos, econômicos evidentes na perpetuação de uma arte tão refinada e complexa como a Poesia, tanto quanto esses componentes são responsáveis pelo isolamento e desconhecimento dela por uma parcela demograficamente muito mais numerosa. Isso nos conduziria a afirmar: a Poesia que se quer eterna não deveria estar perenemente de costas voltadas para o homem comum. Ela deveria, sim, ser um caminho sem discriminação, aberto e co-adjuvante no aperfeiçoamento estético-espiritual do Homem. ( Texto inédito e ligeiramente modificado)

NOTA:
(1) Esse aspecto do Modernismo brasileiro, com relação à participação popular, discuto com maior profundidade na minha monografia “Modernismo brasileiro : a falta que lhe faz.” (Faculdade de Letras, UFRJ, 1998, 17 p.)