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De vez em quando comento aqui algumas coincidências que testemunho, ou que acontecem diretamente comigo.
 
Ao viajar para São Paulo, dias atrás, peguei dois livros, pequenos e leves pra não pesar na mochila. Um era o Portrait of the Artist as a Young Man de James Joyce, que comecei a ler tempos atrás, estava gostando, mas tive que largar por alguma razão. O outro foi A Hipótese Humana, romance policial de Alberto Mussa, lançado recentemente, presente do meu parceiro musical Alfredo Del-Penho, da “Barca dos Corações Partidos”.
 
O livro de Joyce descreve em seus primeiros capítulos a vida escolar do garoto Stephen Dedalus num colégio de jesuítas irlandeses: os estudos, os castigos, as peraltices. A certa altura, Stephen está comentando os rabiscos feitos pelos estudantes nas portas e nas paredes do banheiro do colégio, e diz:
 
And on the wall of another closet there was written in backhand in beautiful writing:
Julius Caesar wrote The Calico Belly.
 
Joyce tem um cacoete pelo trocadilho que chega a ser auto-punitivo, de modo que cada alusão desse tipo faz a gente parar para saber qual é o jogo de palavras que ele está fazendo.
 
“Calico” é um tecido barato como chita ou morim.  Uma coisa bem paraibana, aliás. É muito frequente a gente ler num livro a expressão “calico dress”, “vestido de chita”. Bob Dylan (“Sarah”, no álbum Desire) descreve sua musa como “esfinge escorpiana em vestido de chita”.
 
“Belly” é barriga. Barriga de chita? Talvez não, porque o dicionário me dá “calico” como sendo também algo “malhado, rajado, mosqueado”. Barriga rajada, listrada? Será alguma patifaria irlandesa?
 
Enfim – o que saltava aos olhos era que havia uma menção a Júlio César, e logo me lembrei que César era autor de um livro onde descrevia uma das suas guerras, e guerra em latim é naquela faixa de “bellus, belli, etc”.
 
Dito e feito: o livro de César é Commentarii de Bello Gallico, “Comentários sobre a Guerra na Gália”. E ao checar a tradução de Caetano W. Galindo para o livro de Joyce (valeu, Google Books), vi que ele recria assim o calembur joyciano:
 
E na parede do outro cubículo tinha uma coisa escrita com uma letra inclinada: Julio César escreveu Que Belo Fálico.
 
Muito bem. Na volta da viagem estou adentrando o romance de Alberto Mussa e chego à página 33. Seu detetive, Tito Gualberto, está em casa dando aulas quando recebe um recado urgente para ir à casa de alguém. O livro é narrado no presente do indicativo, e ele conta:
 
É quando a portuguesa grita, embaixo, dizendo estar na porta um moleque, mensageiro do coronel Francisco Eugênio.
Separa, então, um trecho do De bello gallico, para que o aluno traduza; e desce.
 
Sim, nosso detetive ganha vida (o ano é 1854) dando aulas particulares de latim, e o livro de Júlio César me cai ao colo pela segunda vez em dois dias, citado num romance irlandês de 1916 e num romance brasileiro de 2017.
 
Veja-se que em ambos os casos o livro é citado em contexto e não destoa. Na Wikipedia, aliás, sou informado de que a obra de César, pela limpidez e elegância do estilo, é um dos primeiros livros utilizados por quem começa a estudar latim.
 
Bem; isso é outra questão. O importante aqui é o que pensar diante de uma coincidência como essa. Tenho certeza de que não ouço falar nesse livro de Júlio César, pelo qual não tenho o menor interesse, há muitos anos, não é pouco não. E agora ele vem duas vezes num mesmo fim de semana.
 
Tenho amigos e amigas que me diriam: “O Destino está querendo lhe comunicar alguma coisa!”. (Ah, que saudade do Encontro da Nova Consciência.)
 
Pra mim, mais interessante do que pensar no Destino é pensar no modo como a memória humana funciona. Temos níveis de “salvamento” de informações, no sentido que usamos ao dizer que salvamos dados no computador. Salvar é impedir que uma informação se desvaneça. E um critério para isso parece ser a repetição. O que a gente ouve (ou lê) uma vez apenas, se dissipa dentro de algum tempo. Mas se nesse intervalo aparece uma segunda menção, a gente lembra que ouviu aquilo pouco tempo atrás. E se aparecer uma terceira, uma quarta, a lembrança vai se prolongando.
 
Minha memória, pelo menos, funciona assim. Sou o rei da gafe ao não reconhecer pessoas com quem conversei um dia inteiro poucos anos atrás. Por que as esqueci? Porque não vi nenhuma referência a elas nesse intervalo. A memória se dissipa. Se de vez em quando, contudo, a gente vir uma foto, ler o nome, ouvir uma referência, aquilo continua existindo, sendo lembrado. Brasa assoprada não volta a carvão.
 
Baseando-se nisso, a comunicação de massa requer o martelamento constante de uma certa informação “para que o público não esqueça”, mesmo quando aquilo não é notícia, quando não tem nenhum motivo claro para estar aparecendo no noticiário. (Pensem nos exemplos.)
 
Deve ser por isso que os atarefados divulgadores-de-artistas-pop dão o seu sangue para que pelo menos uma vez por semana surjam no “Portal KM De Vantagens” ou coisa parecida manchetes como “Fulana janta com fãs”, “Sicrano corta o cabelo” ou “Beltrano pensa em tirar férias”. Porque se um desses personagens ficar uma semana sem ser citado ali, todo mundo esquece dele, inclusive o divulgador.
 

Erasmo Carlos dizia: “falem bem ou mal, mas falem de mim”, com a intuição nativa de quem nasceu pro palco. Um artista pop é alguém que não pode passar um mês sem ser fotografado por um papparazzo, ou dar um autógrafo no shopping, ou ser citado numa coluna de gossips. Se isto acontecer, ele se dissipa no ar, como orvalho ao sol. 

Braúlio Tavares