Chico Miguel: Poeta de múltiplas formas criativas
Em: 22/06/2023, às 23H19
E eis que, tendo Deus descansado no sétimo dia, os poetas continuaram a obra da Criação.
Mario Quintana.
Carlos Evandro M. Eulálio*
Francisco Miguel de Moura (Chico Miguel), romancista, cronista, ensaísta e poeta da Geração de 1960, atual ocupante da cadeira nº 8, da Academia Piauiense de Letras, com dezenas de livros publicados, vem produzindo uma notável obra poética pós-moderna, sempre em sintonia com as mais inventivas formas de expressão, sem, no entanto, abandonar os processos criativos da tradição literária. No seu livro de estreia, Areias, que veio a lume em 1966, já se identificam índices de uma poesia que o distinguem como um poeta de múltiplas formas criativas.
Areias retorna ao leitor em primorosa 2ª edição pela Editora Life, São Paulo, 2021. O livro mantém o prefácio (Nota à 1ª edição), assinado pelo escritor Fontes Ibiapina que, à época do seu lançamento, reconhece o poeta Chico Miguel não como estreante, mas como um veterano na arte da poesia, ao declarar: “... estamos falando de um poeta. De um postulante, é verdade. Mas postulante com caracteres de titular, capaz de sentar-se a um fauteuil de cenáculo e reger, com sua batuta de veterano na arte do verso, uma orquestra de musas” (MOURA, 2021, p. 13). Essa afirmação de Fontes Ibiapina quanto à poesia de Chico Miguel se deve tanto pela criatividade do discurso literário do poeta quanto pela forma elaborada ao expressá-lo.
Nessa obra, os poemas já apresentam modernos recursos linguísticos, com traços intertextuais e metalinguísticos. No texto de abertura, em sete estrofes livres, com versos pentassílabos ou de redondilha menor, o eu lírico transporta-se para o Riachão, torrão natal e cenário dos primeiros anos de vida do poeta. É admirável nessa obra a abordagem original de temas simples, como o da infância, visto como lembrança lúdica de um passado, associado à alegria e à inocência:
[...]
Vinha a papa-ceia*,
Vinha a lua cheia
e o menino deitado,
deitado na areia
branca, fina, feia.
Depois, peia, peia!
[...]
Não deixes que a areia
Branca da infância
Enferruje e coma
Tua coragem
Como a aranha tece,
Tece a tua teia.
Areias (MOURA, 2021, p.17)
Nesse poema, tem-se um eu lírico em terceira pessoa, isto é, um narrador que converte a expressão objetiva do discurso épico em manifestação subjetiva de uma experiência individual, por meio da recordação, que caracteriza a essência do gênero lírico, situação em que o poeta dá voz a um eu, e com ele se confunde. No poema, a participação do épico, em caráter acessório, corrobora o ponto de vista, segundo o qual nenhuma obra se classifica exclusivamente num único gênero literário. Ressalte-se no texto o emprego do termo papa-ceia, como incorporação da oralidade linguística no poema, em alusão ao planeta Vênus ou Estrela da Tarde, que no firmamento surge na hora da ceia, antes do anoitecer. Numa outra acepção, Castro Alves também menciona a papa-ceia no poema Canção do Africano, com o intuito de mostrar a solidão do africano oprimido em terra estranha: O sol faz lá tudo em fogo, / Faz em brasa toda a areia; / Ninguém sabe como é belo / Ver de tarde a papa-ceia!
Na poesia de Chico Miguel, o tom memorialista e autobiográfico, reaviva no leitor cenas que tem do passado, e os sentimentos que ele desperta. Noutros poemas, como Relógio, Recado a Papai Noel e Canção do Vento (Todos do livro Areias) o tema da infância é recorrente:
Quero ir à casa do vento,
ver tudo quanto ele faz
Quando sai de madrugada.
- Ah, meu tempo de menino!
O vento leva e não traz
[...]
Se veste fatiota nova
no feriado ou domingo.
Vento das minhas ideias,
tal como as águas dos rios,
levas tudo para o mar:
- O mar do meu coração!
Canção do vento (MOURA, 2021, p.30)
A obra Areias reúne 42 poemas - na maioria sonetos - e os demais em estrofes com versos livres. O telurismo destaca o enleio afetivo do eu lírico com a terra natal:
Entre dois chapadões – terra bendita,
de alma mais pura do que a branca areia,
terra que ouviu, de minha mãe contrita,
rezas a Deus logo depois da ceia.
[...]
Vê-se, em roda à capela, o casario,
como a adorá-la...Ó Jenipapeiro!
De frente: o vale, o lajeado, o rio.
À minha Vila (MOURA, 2016, p. 50).
Em outros poemas, ressalta aspectos sociais da região, que degradam o homem sertanejo no seu cotidiano, agravados ainda pelo êxodo rural:
Não dizem donde vêm
nem pra onde vão.
Os caminhos são mudos,
não sabem se vêm ou se vão.
[...]
Levam Joões (ficam Marias),
levam nuvem, levam chuva,
levam fomes, levam vidas
montadas em “paus-de-arara”
- Tudo a caminho do sul.
Caminhos (MOURA, 2021, p.26)
Desde os seus primeiros versos, o poeta mostra o domínio das mais diversas formas fixas de construção poemática, principalmente o domínio do soneto, que o compõe de todos os tipos, como o tradicional soneto clássico italiano (ou petrarquiano), composto de dois quartetos e dois tercetos; o soneto de formato shakespeariano, formado por três estrofes de quatro versos e uma última de apenas dois versos, muito usado por Mário Faustino, e o soneto monostrófico de somente uma estrofe, formada pelos quatorze versos. A obra Sonetos da Paixão (1988), de Chico Miguel, é composta em sua totalidade por sonetos monostróficos, como este primoroso decassílabo, rico em imagens sinestésicas:
Tenho paixão, porém, por essa lua,
Banhando a terra e o cabelo em prata,
que a nossa fuga já vai tão distante
e a minha fuga não vai mais passar.
Aquela noite livre é quem me mata:
Poeira e amor na estrada resolvidos
em alvoroço, escuridão, silêncio,
pio das aves, agouros, arrepios.
Mas onde o medo, se o amor resiste
e, selvagem, campeia nosso corpo?
Como pensar o leite, o vinho, o ópio?
Ao céu, o chão de lua me elevava,
e o céu da lua até meu corpo vinha.
Oh, que estranho mistério eu cavalgava!
Soneto XI (MOURA, 2016, p. 126)
Haja vista a preferência atual pelas formas livres, o soneto ainda se mantém como expressiva manifestação da poesia lírica. Mesmo aqueles poetas ditos modernistas de primeira hora são autores de consagrados sonetos, como Mário de Andrade (Quarenta anos), Ronald de Carvalho (O filho pródigo), Manuel Bandeira (Luar de maio) e Cassiano Ricardo (Céu e mar). Nas gerações que se seguiram à de 1922, o soneto também se faz presente nas produções de poetas, como Mário Quintana (Na minha rua há um menino doente), Jorge de Lima (O acendedor de lampiões), Cecília Meireles (Soneto antigo), Vinícius de Moraes (Soneto de fidelidade), Augusto Frederico Schimdt (Mar desconhecido), Carlos Drummond de Andrade (Encontro) entre outros.
Quanto às poesias em estrofes e versos livres, Chico Miguel as compõe conforme modernas formas de expressão literária, por meio de versos hegemonicamente simétricos, melhor dizendo, versos de medida diferente que se repetem harmonicamente no interior das estrofes, como neste belíssimo poema lírico-amoroso:
na flor de teus lábios
me vi renascido
e nos teus olhos grandes
me fiz crescer
quebrei silêncios
gigantes
acorrentei-me
aos passos negados
à carne trêmula
às asas quebradas
com as nuvens crianças
veio o outro entardecer
e na escureza das distâncias
curamos incuráveis ânsias:
- o céu não vai saber.
Na flor dos teus lábios (MOURA, 2016, p. 134).
Os temas filosóficos e existenciais que falam das questões universais do homem em seu cotidiano, como o amor, a morte, o tempo, a solidão e a saudade também comparecem em sua obra. A metalinguagem, remissiva ao poeta e à poesia, é outro tema abordado com frequência pelo autor, como neste poema em que questiona a sua própria significação, além de dialogar com o social:
Libertar um anjo
Prender os demônios
devorar os enganos...
Nenhum poema é perfeito
ou simples
pra salvar o mundo.
Novo Epigrama (MOURA, 2016, p. 365)
O universo poético de Chico Miguel tem suscitado da crítica inúmeros ensaios teóricos que o destacam como um dos poetas mais representativos da literatura Piauiense. A exemplo de Manuel Bandeira, Chico Miguel acompanha as transformações literárias de caráter inovador, que tiveram como marco a Semana de Arte Moderna, adaptando-se ao modo de produção poética nas formas mais inventivas da poesia, do concretismo aos dias atuais.
* Carlos Evandro Martins Eulálio, professor e crítico literário, é membro da Academia Piauiense de Letras, segundo ocupante da Cadeira 38, tendo como patrono o poeta popular João Francisco Ferry.
Referências
ALVES, Castro. In Canção do Africano, extraída da obra Os Escravos, São Paulo: Martins, 1972.
CUNHA, Helena Parente et al. Os gêneros literários. Teoria Literária 5ª ed. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 1999.
MOURA, Francisco Miguel de. Areias. 2.ed. São Paulo: Life Editora, 2021.
--------------------------------------- Poesia (IN) completa. Teresina: Academia Piauiense de Letras, 2016, Coleção Centenário, 56.
SILVA, Anazildo Vasconcelos da. Semiotização literária do discurso. Rio de Janeiro: Elo Editora, 1984.