Carrapatos políticos

(*)Dr. Semana

Escrever a crônica dos insetos parece uma das missões mais difíceis a que se pode propor um homem, que, pelo menos, tem consciência de nunca ter sido inseto.

Compreendem todos que, sem ter passado pelas provas da experiência, é muito raro dizer coisa com coisa a respeito do que apenas se vê em outros que não são da nossa espécie. Difficile rem postulasti.

Há insetos que merecem particular menção, mesmo quando a atenção humana se aplica a outras coisas mais graves e mais sérias. A insectologia não é uma ciência inútil e despida de interesse; pelo contrário, prima entre os demais ramos da zoologia, porque se ocupa apenas com seres tão diminutos e microscópicos que nos obrigam a dar de mão a todos quantos mastodontes nos apresentam diante dos olhos, só para fazer dos bichinhos um estudo especial.

Vê-se perfeitamente que Deus, depois de formado o grandioso da Criação, quis também mostrar a sua divina perfeição dando vida aos átomos da matéria. É grandeza descer até os insetos!

O inseto não é uma excrescência na vida do Cosmos, é uma verdade da harmonia estabelecida pela mão de Deus. Perguntai ao inseto por que existe. Dar-vos-á ele: — Porque existe o homem. 

Era preciso o contrabalanço nos seres surgidos do caos. O elefante erguia a tromba, o condor esvoaçava entre as nuvens, a baleia chafarizava nos mares, a boa constritor desenrolava-se nas estradas. O inseto tornava-se uma necessidade. Entre as miríadas de insetos, que volteiam nos ares, chamejam nas ervas, escorregam pelos charcos, animalizam a atmosfera, ou se entranham pelas carnes, distingue-se o carrapato, que, pelo seu perfume (ao princípio asqueroso, mas depois reconhecido como muito suave e medicinal), e pela forma chata e arredondada do seu corpo, faz-se querido e apreciado do homem, que, se não for ingrato, deve mostrar-se reconhecido à amizade que lhe consagra, prendendo-se-lhe ao corpo e sugando-lhe o sangue.

O característico do carrapato é agarrar-se a uma raiz de cabelo e... esquecer-se de que deve ocupar-se de outras coisas. Ninguém sabe mais notícias dele, e também não as dá de si. Quem o deixar sossegado pode ficar certo de que ele não se incomoda e nem deixa a raiz do cabelo protetor.

À semelhança desses insetos, há também, no mundo social, alguns indivíduos, que se atracam aos seus semelhantes e que fazem deles verdadeiros mártires. Tomar-lhes conta fora a maior das loucuras, porque seria isso um pé de cantiga para demorarem-se-nos ao cachaço mais algumas horas.

Pelos salões aparecem desses carrapatos. Quando virem um janota de luneta ao olho, de bigode empomadado, de garras cor de rosa e de juba heliotrópada, procurando termos escolhidos, frases de folhetim e citações de folhinha, não perguntem como se chama. É um carrapato de salão. Pobres moças, que os sofrem!

Há velhos, desdentados, de gravata branca com o nó amarrado de um lado, fedorentos de rapé, remelosos de um dos olhos, de sobrecasaca de gola de veludo, e de bengalásio de cana com castão de carranca, que só falam em noivos, enxovais e força, e arregalam o olho para uma mesa de voltarete. Esses também são carrapatos, mas de salas de jogo. Livre-se alguém de lhes cair nas antenas.

O militar, de bigode cortadinho em roda do beiço, de gravata de crina, e de colete de pano azul guarnecido de botões de ouro, que só conversa a respeito das suas campanhas, cicatrizes e galinhas, é um carrapato de toda a parte.

Qualquer padre que, longe de ir ler o breviário, anda de sobrecasaca e voltinha, com a coroa feita na véspera e sapato de fivela: é, nas salas de jantar e nas de engomado, um prestimoso carrapato.

O curioso sem voz, e que nunca aprendeu a cantar, que, cheio de momos e medeixes, se atira a um piano, sem maior empenho, e canta uma noite inteira, aborrecendo a todos os que querem conversar sobre eleições, balões, ladrões e outras coisas dos mesmos consoantes: é um carrapato dos mais terríveis, porque, morde, chupa o chá e aborrece.

O estadista que conta mil histórias sem cunho de verdade, escarra pelos cantos, palita os dentes, mente e sorri com ares de confidência, puxa o colarinho, passa a mão pela calva, endireita os óculos, fala no Peru e na colonização, nas presidências de províncias e nas demissões da alfândega, no déficit e no câmbio, nas flores de seu jardim e nas chuvas de setembro, nos burros do carro e na imprensa, e por fim ronca em um braço de sofá: é um dos maiores carrapatos da nossa sociedade.

Há milhares e milhares de outros. Ponham todos a mão na consciência, e digam-me se não têm um tanto ou quanto de carrapatos.

A esses carrapatos todos, acima referidos, pode dar-se o nome de — carrapatos políticos — porque são bem criados e atenciosos.

Há ainda um último carrapato, voraz e que se filia àqueles com quem tem relações. É um rapaz bonito, ninguém o pode negar, cheio de espírito, engraçado e conquistador; veste com gosto, usa perfumes e tem criados de libré. É amigo do seu amigo; inimigo dos guardas-fiscais, por causa da limpeza das ruas; censor da polícia por amor dos ratoneiros; dedicado aos Vasques, porque é moleque; apreciador do belo sexo; entusiasta das moças morenas e de cabelos pretos; amante das claras de olhos azuis; bebedor de todas as taças e cheirador de todos os perfumes. Esse grande e eminente carrapato político, porque respeita, venera e elogia as moças e as velhas (idosas), os homens e os meninos, os ricos e os pobres, os sábios e os não sábios, os magros e os gordos, os altos e os baixos, os bisolhos e os caolhos, os bonitos e os feios, os ministros e os promotores (com licença do Dr. Guanabara, por causa do estilo); é sem tirar nem pôr o Dr. Semana, quando se vê apertado e não tem matéria para encher as suas quatro páginas de texto.

(*)Dr. Semana, pseudônimo empregado por Machado de Assis