Capítulo 1: O trem
Por Miguel Carqueija Em: 03/08/2011, às 10H33
(Miguel Carqueija) Aqui começa a história da "Faisão Verde", uma história do perene confronto entre liberdade e escravidão CAPÍTULO 1 O TREM Chovera durante a madrugada e agora nascia em Glória um dia radioso de sol e cores, com o arco-íris magnífico sobressaindo na paisagem. Debruçada na varanda do dormitório Lena observava o horizonte, com o pensamento distante. Em seus olhos grandes e verdes parecia estar o reflexo do arco-íris. Então alguém encostou ao seu lado, na balaustrada. — Em que pensa, Lena? — Penso em quem não está mais visível para nós... — Eu estou preocupada com você. Porque você está com jeito de idéia fixa. E isso não é saudável. — Não é bem isso, Rita. Mas... uma idéia, apesar de tudo. Sabe... ......................................................... Na pracinha cercada por espigões de 30 a 60 andares havia apenas um homem, com a cara vestimenta constituída de jaqueta, calças com cinto em lugar de suspensório e sapatos de fibra com meias; trazia uma pasta de couro, que deixara aberta a seu lado no banco de pedra, e examinava documentos. De vez em quando fazia alguma anotação. Na civilização de Lemuel havia pouco lugar para distrações. Mesmo num banco de praça, convinha trabalhar. Lorne observou e comparou diversos relatórios. Um deles, por exemplo, dizia: "Convém que as famílias aí residentes sejam retiradas dentro de sessenta dias no máximo, pois a partir desta data o empreendimento, se não estiver iniciado, começará a dar prejuízo." — Bonito — disse Lorne de si para si. — Não interessa saber se essas pessoas têm para onde ir. Há pouco, na repartição, Julius lhe confiara: — Escute, Lorne, deve haver algum meio de entrar em comunicação com os Rebeldes. Se eu soubesse bem que me juntaria a eles. Já estou cheio disso. — As últimas execuções devem tê-lo aborrecido — disse Lorne com ar grave. — Aborrecido! Estou é enojado! Você esquece que até amigos meus já foram mortos... — Olhe, eu acho melhor você manter a cabeça fria. Afinal, você ainda está vivo. — Sim, E enquanto os outros morrem, eu vou me sentindo cada vez mais como um covarde. — Bem... para entrar numa dessas são precisas condições... não é fácil, Julius. Você tem sua mãe e não convém... nem mesmo falar certas coisas. E agora, no banco, Lorne pensava: "Se ele soubesse que eu próprio sou um Rebelde; que o golpe está sendo armado a cada dia que passa, e que juramos não passarão dois anos sem a libertação do país... mas também não podemos convocar qualquer um, que não tenha certas aptidões ou que possa mesmo ser um agente provocador, um espião..." Levantou-se e caminhou em direção à sua casa, situada a pequena distância. No portão de entrada o mordomo comunicou: — Senhor Lorne, o Senhor Riní chegou. Está com Dona Marilú. — Obrigado, Tody. Era do Riní que eu precisava mesmo. Mas Riní não estava satisfeito, como Lorne logo viu. Ele se ergueu, interrompendo um chá com bolinhos, e avançou para falar com Lorne. Riní era um rapaz sardento e dinâmico, que punha em movimento os assuntos que lhe caíam em mãos. Lorne gostava muito dele: sabia que Riní não temia arriscar a vida para cumprir o dever. — Lorne, acho que as coisas não andam muito bem. — Isso eu já seu há tempos. Por que você acha que nós formamos esse grupo? — Não brinque, eu já estive falando com a Marilú... não podemos fazer nada pelo Tousand. — E por que não? — Ele será trazido num trem especial, com cinquenta guardas e proteção eletrônica da melhor espécie. Um trem só para ele, entende? Um vagão e a locomotiva. E uma vez no Triângulo ele não poderá ser resgatado. É demais para nós. — Bem. Rezaremos por sua alma. — Mas há mais. Nossas sabotagens tornam-se cada vez mais impossíveis. Sabe você que até os armazéns de beira de estrada estão sendo equipados com aparelhos diabólicos? Imagine você: nossos homens chegam e iniciam o assalto. O sujeito lá tem um equipamento implantado sob a pele, na região da bacia. Um chip eletrônico. Bastará fazer um determinado toque, para acionar autômatos que atacarão o nosso pessoal. Percebe? — Não percebo muito bem. Como é que esses autômatos saberão exatamente quem atacar? — Isso eu não descobri, mas deve estar tudo previsto. Ou talvez eles não se importem muito de matar gente inocente... — E outra coisa. Como é que o cara com o botão implantado não o acionará por acaso, ou mesmo durante o sono? — Acho que não poderão evitar certos acidentes. E daí? — Mas, Riní, e que mais você tem a dizer? Nossa causa poderá ser atrasada por causa disso? — Atrasada? Eu sei lá se a nossa causa tem futuro! — Nós combatemos o anti-humanismo, não se esqueça. Um tipo de regime antinatural e cruel... que não pode prevalecer. Não há lugar para o desânimo. Só que eu acho que não se deve, simplesmente, assaltar lojas. — Lojas do governo, lembra-se? — Isso é burrice ou banditismo, Riní. Os empregados dessas lojas são pessoas honestas, que estão ganhando a vida e servindo ao povo. Inclusive você. — Não são tão honestos assim. — Alguns, talvez... isso não importa. — Mas nós precisamos de fundos para as nossas operações! — Esses fundos têm que surgir de algum jeito, mas não com assaltos. Eu vou falar do assunto na próxima semana. Isso não é uma iniciativa da cúpula, você sabe. Há pessoas generosas e ricas que contribuem. Mas o meio que nós temos, para derrubar o governo, é atacando o seu arcabouço. Libertando os dissidentes, fomentando greves, roubando os documentos secretos... coisas assim. — Fáceis de falar. — Eu sei. Gostaria que fosse de outra forma. .............................................. O trem se aproximava de Glória já com a noite fechada. Era mesmo impressionante a segurança: em cada janela um guarda, e guardas em guaritas especiais no exterior do vagão e da locomotiva. Um detetor daria o alarma se houvesse alguma bomba na linha. O trem era, além do mais, de estrutura fortíssima, capaz de aguentar até balas de canhão. E, no entanto... No alto da colina um vulto esguio observava com binóculo o veículo que se aproximava. Ocultava-se entra a vegetação e as rochas. Sua roupa era estranha: uma espécie de macacão e o rosto coberto por uma máscara verde. Trazia uma mochila às costas. Calculou o tempo pelo relógio de pulso e desceu a colina rapidamente, em direção ao túnel que o trem teria de atravessar. Havia uma curiosa rede de fios estendida pelo teto do túnel, presa nos altos e curvos postes de iluminação! A figura da máscara verde prendera uma das pontas por fora do túnel, na entrada que em breve receberia o trem; agarrando-se com as mãos enluvadas com luvas verdes, passou para o teto do túnel e para a penumbra que as lâmpadas de sódio, apontadas para baixo, pouco iluminavam. Do meio daquela teia, e entre a teia e o teto, a personagem, agora munida de uma pequena lanterna lenticular, afixada no meio da máscara, empunhou uma caixa preta semelhante a um aparelho fotográfico antigo, repleta de botões e com duas aberturas por onde saíam dois fios negros e fortes, que iam justamente compor a "teia de aranha" que sustinha a aparição a um metro e meio do teto! Não era uma cena desinteressante. Os fios enrolavam-se no alto dos postes, onde se sustinham; uma das pontas prendia-se no lado de fora e outra numa das gretas do teto. Agora tentem entender: passava por dentro dos fios uma fiação finíssima ligada ao comando da caixa; os impulsos moviam as pontas, onde os fios entravam numa espécie de bolas maiores que grandes laranjas e onde havia pequenas portinholas que corriam para dentro, deixando sair uns apêndices que podiam entrar em coesão molecular com a rocha. A bola podia também fazer evoluções e saltos pelo ar, arrastando o fio e enrolando-os nos suportes que encontrava — tudo dependendo de habilidosa digitação dos controles da caixa. A pessoa na teia consultou o relógio-cronômetro e moveu os botões; fora, a bola soltou-se e entrou no túnel, agarrando-se ao teto. Em seguida a outra bola soltou-se e foi até o poste mais próximo, desenrolando o fio, e um pouco da fiação penetrou na caixa. E enquanto já se ouvia o apito da locomotiva, a operação prosseguiu rapidamente; cada vez mais diminuía a teia e as bolas prenderam-se, afinal, nos dois lados da figura, logo acima dela no teto, com os fios passando pelas suas axilas! A caverna já se enchia com as ondas sonoras empurradas pelo trem em disparada; um rápido movimento num botão, e uma das bolas soltou-se! A criatura da máscara ficou ainda suspensa por um dos fios, que passava por baixo da axila esquerda; um dispositivo plástico do alto da caixa fôra enganchado em seu ombro, evitando a queda que, se ocorresse, seria na frente do veículo. Então o monstro entrou com todo o seu ímpeto; dedos ágeis mexeram um controle e a outra bola soltou-se; o vulto caiu sobre o vagão, pois a locomotiva já havia passado. As bolas, que não faziam grande ruído, aderiram então à superfície metálica, evitando que o corpo resvalasse perigosamente; então a figura dirigiu uma das bolas para a junção do vagão com a locomotiva, retirou com a outra mão uma outra bola do bolso, presa por corrente ao cinto, fê-la aderir ao vagão e acionou a outra bola da caixa preta; e aquelas duas bolas seguiram pelas ligações metálicas, já agora com novos apêndices saindo pelas aberturas. A rapidíssima locomotiva ia já na pequena subida que antecedia a saída do túnel. E nesse ponto deu-se a separação! O vagão, inteiramente solto, recuou descendo a ladeira, enquanto a locomotiva, com metade dos guardas, lá se ia embora... A descida não demorou muito: logo o vagão se estabilizou. Os guardas estavam perplexos, assustadíssimos: alguns chegaram a disparar suas armas ao léu, de puro pânico, desperdiçando munição. Agora visualizemos um pouco o vagão. Com trinta metros de comprimento, sete de largura, com quatro janelas e quatro guaritas de cada lado, e mais duas guaritas na parte traseira. Ao todo dezoito guardas postados e sete no interior do veículo, mais um médico e quatro serventes de cozinha e limpeza. E o prisioneiro. Máscara verde recolheu suas bolas e acionou-as agora de forma que finíssimos apêndices foram-se infiltrando pelas junções do vagão, inclusive no alto das guaritas. Enquanto isso os guardas, em total confusão, gritavam, praguejavam e alguns já haviam saído do vagão. Os que olhavam para cima nada viam: teriam de tomar mais distância — impossível no túnel, no sentido da largura — para dar com a pessoa sentada no meio da estrutura. — Que diabo está havendo? — Não sei, Capitão! A locomotiva foi embora e nos deixou aqui! — Mas isso é um absurdo! Como pode o vagão se ter soltado? Olhou raivoso para Tousand, cujos olhos pareciam animados de súbita esperança. — Crê que os seus amigos estão por aqui? — Eu não creio nada, Capitão. Como eles poderiam fazer isso? — Não sei, mas vou descobrir. Hugo, comunique-se logo com o Triângulo e chame a locomotiva. Por que ainda não fizeram isso? — Senhor... nós já tentamos e não conseguimos. — O que? Que é que você quer dizer com isso, homem? — Que as nossas transmissões estão bloqueadas. Esse túnel... — Besteira! Nossas técnicas já superaram há muito esses obstáculos! Tentem de novo e não me venham com desculpas! — Pois não, senhor. O sargento saiu. Nesse momento ouviu-se um estranho e forte ruído. Em tempo: o compartimento do prisioneiro não tinha uma verdadeira janela, mas telas panorâmicas que mostravam o exterior. Ficava bem no centro do vagão. — Que é isso agora? — começou o capitão, mas logo emudeceu. Outros ruídos se ouviam agora. E através das telas panorâmicas o oficial e Tousand puderam ver, estarrecidos, as guaritas que se haviam soltado e caído fragorosamente, bem como outras peças do trem, e viram as expressões assombradas e apavoradas dos guardas. E a debandada... — Voltem aqui, covardes! — berrou o capitão, ele próprio com um medo crescente. Voltou-se para Tousand, com a vaga idéia de matá-lo a tiros. E Tousand já lá não estava... Foi demais para o militar. Percebendo que novas guaritas caíam, pôs-se ele também a correr. Em breve não havia ninguém mais no vagão, exceto a figura misteriosa que penetrou no seu interior e acionou o pequeno controle, fazendo mover-se o veículo em marcha-a-ré. Fora do túnel, Tousand ainda era visível, fugindo pelo matagal (detalhe característico: aparentemente todos os demais tinham fugido em direção à capital). Máscara Verde saltou do mutilado vagão e correu em direção a Tousand. Este arregalou os olhos diante da aparição e aumentou a velocidade da fuga. Mas já estava enferrujado para tais exercícios e foi logo alcançado. Já não se via a estrada, oculta por grandes blocos rochosos. — Pare, homem! Temos muita coisa para conversar! Tousand estava apavorado e quase sem fôlego. Respondeu, arquejante: — Mas quem é você? A figura da máscara verde sorriu, mostrando dentes alvos. — Pode me chamar de Faisão Verde — disse simplesmente. Era uma figura mágica, surrealista. Com as mãos nos quadris, o porte altivo, o rosto oculto e dizendo-se o Faisão Verde, na escuridão da noite e naquele local ermo, e após aquela incrível cena do túnel. Não havia como não se impressionar. — Faisão Verde? Mas... que quer dizer isso? — Não há explicação. Só lhe resta aceitar-me como sou. — Mas... você pertence aos Rebeldes? — Não. — Então o que deseja? — Conversar com você. Descanse um pouco porque você correu muito; depois vamos começar a caminhar. — Caminhar? Mas para onde? — Não lhe ocorre que virão à nossa procura? Você teve bastante tempo para descansar e pode pegar uma boa caminhada. Recupere o fôlego e vamos embora. — Mas eu não quero ir com você... deixe-me em paz, por favor. O Faisão Verde agarrou Tousand pelo colarinho e forçou-o a sentar na pedra. O homem estava tão fora de si que nem ofereceu resistência. — Professor Tousand — disse o Faisão Verde em tom de censura — salvei a sua vida e você nem me disse obrigado. Convenhamos... — Desculpe-me. Sou-lhe muito grato, é claro. Mas foi tudo tão depressa! E tão incompreensível! Tousand já estava bem alquebrado. Era magro, ossudo, de cabelos brancos. Se bem fosse um intelectual, não estava preparado para uma situação daquelas, que lhe pusera os nervos à flor da pele. O Faisão Verde sentou-se a seu lado e esperou que o arquejar diminuísse. — Já descansou? — Estou um pouco melhor. — Vamos então. Os guardas não correrão a noite inteira. Não havia o que discutir, pensou Tousand. Se continuassem parados, o risco era imenso. Começaram a caminhar, o Faisão Verde tomando a iniciativa do caminho. Tousand principiou a observar melhor o seu salvador. Era quase alto, magro, empenado; parecia ágil e jovem. Não se podia ver o seu rosto. Um capuz verde cobria-lhe a cabeça e a nuca e se prendia em seu pescoço; no capuz havia uma máscara verde. Eram visíveis o nariz, lábios e queixo, que apresentavam traços muito distintos. A roupa era um macacão de tonalidade sombria, sapatos de lona e luvas verdes. Havia uma volumosa mochila nas costas. — Afinal, quem é você? — Professor, se eu quisesse que soubessem quem sou não usaria esse disfarce. Era a lógica mais rigorosa, e Tousand tentou outra pergunta: — Como você fez aquilo? Desmontar o trem daquele jeito? — É uma boa pergunta. Tousand sentiu-se exasperado. Como entender o que estava acontecendo? O Faisão Verde era deliberadamente enigmático. Parecia evidente que perseguia os seus próprios objetivos, pouco lhe importando o que os outros pensassem ou quisessem. O professor tentou mais uma pergunta: — Mas afinal, para onde estamos indo? — Por enquanto estamos apenas nos afastando do local. Quero fazer-lhe algumas perguntas. "Pelo visto" — pensou Tousand — "o Faisão Verde não pode responder perguntas, mas pode fazê-las." E ele efetivamente começou a formulá-las: — Diga, professor, o senhor de fato pertence aos Rebeldes? — Para que quer saber? — Pode me dar os nomes dos líderes? — Mas eu não posso fazer isso... tenho antes que consultá-los. Percebeu que inadvertidamente já admitira ser um Rebelde — coisa que insistira em negar no julgamento. — Dê-me qualquer nome, então. — Não posso fazer isso. — E quais são os objetivos dos Rebeldes? — Derrubar o governo, é claro. — Sim, mas e depois? — Depois? — Pergunto o que colocarão no lugar do governo. — Ora, um governo de Rebeldes! — Mas que tipo de governo? Qual a sua base filosófica, a sua diretriz política, econômica, social, moral? — Ah, não sei ao certo. Não entendo de política. Entrei para o grupo porque como professor sentia falta de mais liberdade. Eu espero que tenhamos o estado de direito, com a queda do Partido... — Quais são os planos com relação à religião? — A religião? Tousand pareceu muito espantado. O Faisão Verde parou e encarou-o de repente. — O senhor sabe que o Partido Iconoclasta sufocou a liberdade religiosa, da Igreja Católica, Judaísmo e outras confissões. O que pretendem vocês, Rebeldes, fazer com a religião? — Não sei. Nunca fui religioso. Suponho que haverá liberdade de culto. — Como eu poderia entrar em contato com os Rebeldes? — Não sei. Eu tenho que consultá-los primeiro. Como poderia entrar em contato com você? O Faisão Verde riu. — Temos um impasse. Eu não vou confiar o meu endereço e você não irá confiar em mim. Como pretende chegar a um lugar seguro? Há algum aqui perto? — Sei onde me refugiar, não se preocupe. — Suponho que na casa de campo de Lorne Hurne? — Hein? Desta vez Tousand perdeu temporariamente o medo: agarrou o Faisão pelos ombros e sacudiu-o. — Como soube disso? O Faisão Verde defendeu-se, agarrando os braços do outro, sorriu e respondeu: — Tousand, você é mau diplomata. Não sabe se controlar ou despistar. Admitiu depressa demais que Lorne é da organização. — Como você soube? — Eu tenho meus processos para obter informações. Assim, você comunicará a Lorne que eu desejo um contato com os Rebeldes. Agora pode ir. Já me cansei da sua companhia. Tousand afastou-se a passo rápido, e como que em transe. O Faisão Verde ficou a olhá-lo e depois afastou-se em direção oposta. Foi a primeira aparição do Faisão Verde.