Auto de Natal em Copacabana
 
Rogel Samuel
 
(Madrugada. Calçadão, perto do Copacabana Pálace):
- Venham, irmãs! Acorrei com suas glórias! O Filho do Senhor acaba de nascer!
(E logo, múltiplas Graças vestidas de bruma se reúnem em festa ao redor de  adolescente negra, moradora de rua, que acaba de dar à luz na calçada. É uma garota negra, sorridente e feliz, chamada Maria. O Pai, um desempregado cearense alcoólatra, de nome José, sujo e sem nada entender, achando que vai ter confusão e polícia, atravessa a rua e some na praia escura, com uma garrafinha de plástico branca nas mãos. As Graças, que se sabem ser oniscientes, tornam-se invisíveis para não chamar atenção, mas não há quase ninguém por perto, além de raros porteiros e seguranças com celulares nas mãos.
Das varandas luminosas dos prédios de luxo vem forte som de música de suas festas de Natal. Dançam. Um grupo animado de jovens bêbados passa gritando num carro. O vento interior vem do mais longínquo mar com sua ressonância salgada e boa, para homenagear o Filho do Homem. Maria, a jovem parturiente, agasalha-o nos trapos de que dispõe, mas vêm surgindo de algumas portas os próprios Reis Magos que lhe trazem ofertas de sedas, além de presentes diversos: doces, frutas, pães, vinho. Uma grande estrela está imóvel no céu, mas ninguém a vê e pensam que é um balão atmosférico. Anjos, Espíritos e Santos de diversas seitas e Igrejas cercam o Menino e sua Mãe, invisíveis aos mortais. Um silêncio luminoso invade os céus de Copacabana, sim, porque o Filho de Deus acaba de nascer, trazendo bênçãos e esperança para todos. Nos morros, o batuque de Pais e Mães de Santo celebram a sua Glória. Nas Igrejas, padres liberam hinos elevados em sua homenagens. Taças de champanhe circulam nas mãos das madames ricas em festas particulares e brindam o pequeno. As crianças, já dormindo, sonham com ele vestido de Papai Noel, com ricos presentes de Natal. Os namorados se amam e se beijam nos becos e apartamentos, e exultam a sua gloriosa chegada.
Uma patrulha da polícia passa e olha para aquela estranha reunião e resolve investigar. Mas os anjos do Senhor espalham uma névoa nos olhos dos policiais e eles resolvem ir embora.
Porque no chão da Avenida Atlântica o filho de Deus acaba de nascer, agora cercado de uma população noturna que veio homenageá-lo e participar de sua ceia.

No ar, invisíveis, mas luminosos, os deuses celebram sua Glória e incensam o ar. E rezam para que o Menino se torne Homem e não seja crucificado, morto ou fuzilado a carpir a nossa culpa nos porões das masmorras de nossas prisões ou nos terrenos baldios e pantanosos das favelas!)