ASCENSÃO FUNCIONAL
Por Miguel Carqueija Em: 26/05/2011, às 12H23
(Miguel Carqueija)
Uma fábula robótica na linha de Asimov
ASCENSÃO FUNCIONAL
Olho, silencioso, a relva do jardim. Ela é verde...
As árvores, de grandes copas, ostentam folhas verdes. Assim a gameleira grande no fim do quintal, habitada por pássaros que em parte são verdes.
Agora passa uma mosca verde diante de meus olhos eletrônicos.
Num gesto pouco robótico, ergo a mão esquerda e contemplo-a por breves instantes. A mão é amarela.
Passaram-se alguns segundos nessa contemplação. O tempo não deve ser desperdiçado. Meus circuitos voltam a funcionar normalmente quando atravesso o jardim em direção à floresta de espelhos solares. A manutenção era feita diariamente e para isso eu dispunha de sensores muito sensíveis. A luz que as minhas lâmpadas emitem, porém, é amarela.
Procuro empurrar para o meu subconsciente robótico — se é que isso existe — o pensamento que me flutua insistentemente. O robô-psicólogo diria certamente que ocorre um desvio funcional em meus circuitos. A concorrência para a ascensão técnica é uma coisa normal e não deve trazer em si nenhuma espécie de angústia. Seres humanos, feitos de carne e osso, não passam às vezes de feixes de emoções. Um autômato é frio como o metal que forma a maior parte do seu corpo.
A acumulação da energia solar, armazenada durante o dia, representa o próprio funcionamento da Cidade. A transferência é efetuada durante a noite, e no dia seguinte os espelhos prosseguem seu trabalho. Um parafuso não pode estar fora do seu lugar e por isso eu deveria me considerar satisfeito por exercer função tão importante para a vida dos humanos; muitos robôs amarelos não recebem responsabilidade semelhante.
Já 14 anos se passaram, desde que eu deixei a cor vermelha. Mas para que recordo isso?
A metalurgia e a eletrônica se combinam maravilhosamente para o funcionamento da floresta de espelhos. A vigilância robótica completa o processo.
Às vezes penso no que teria sido se não tivesse existido um homem chamado Isaac Asimov. A sua Saga dos Robôs, escrita no século XX — coleção interminável de contos e novelas — como que preparou a mente humana para a nossa realidade, que chegava. Assim é que as famosas Três Leis de Robótica vieram a ser adotadas na prática:
I) Um robô não pode causar dano a um ser humano ou, por omissão, permitir que ele sofra algum dano;
II) Um robô deve obedecer a um ser humano, a menos que essa obediência entre em choque com a Primeira Lei;
III) Um robô deve zelar pela própria sobrevivência, a menos que isso entre em choque com a Primeira e a Segunda Leis.
Só que a humanidade real, sendo muito complicada, achou que essas três leis eram poucas e acrescentou outras, que variam conforme a fabricação. Uma das mais comuns é a que impõe proteção aos animais domésticos. Outra estabelece o desejo — vagamente emotivo — de aperfeiçoamento pelo aprendizado. Uma espécie de ascensão social robótica.
Naquele dia o sol trazia um calor inclemente de 35 graus centígrados. Meus sensores conheciam a temperatura ambiente, de modo que eu nunca precisava consultar termômetros. Em dias nublados ou chuvosos o aproveitamento da energia térmica era muito baixo; os dias ensolarados serviam para aumentar a reserva disponível. Desde que as usinas nucleares, por excessivamente perigosas, foram banidas, tornou-se imperativo o uso da energia solar conjugada com fontes alternativas, como os ventos e as marés.
Note-se que o Sol é a fonte mais esplendorosa de energia que a humanidade pode utilizar. Com as reações termonucleares que se processam em seu interior, ele despeja continuamente uma força tal que se faz sentir a 150 milhões de quilômetros, o bastante para manter a complexa biologia terrestre. Forte o bastante para causar carcinoma de pele; para cegar quem o fite diretamente (exceto se for um autômato). Já a energia nuclear, ou atômica, era extremamente perigosa e pouco prática por causa das radiações letais e das complexas medidas de segurança que não impediram tragédias como a de Chernobyl.
No fim do dia eu me dirigi, como de hábito, ao Centro de Processamento de Dados da estação, a fim de digitar o meu relatório diário. Ao deslizar pela rampa ascendente deparo com uma moça que, descendo, se dirige a mim com um sorriso:
— Alô, Jenkins. Como foi o seu dia hoje?
O meu nome vem de um dos mais famosos autômatos da ficção, o personagem central do romance “Cidade”, de Clifford D. Simak. Encaro a moça que é uma das poucas pessoas amigas que encontro no gênero humano, já que me trata como um semelhante:
— Graças a Deus, o maior problema que eu encontro são as dejeções dos passarinhos.
Ela ri com graça. Sinto às vezes, diante de tais manifestações, algo parecido com o que os humanos chamam de inveja. Robôs não são programados para rir ou sequer sorrir.
— Será que as andorinhas são tão numerosas que possam interromper o nosso fornecimento de energia?
— Não creio — respondo com afetada seriedade. — Só que a limpeza deve ser contínua, pois o acúmulo de resíduos...
— Estamos tendo uma visita importante hoje. Capek... ouviu falar nele? Está lá em cima. Vá vê-lo, você pode aprender muito.
Lola se despede e desce. Ela sabe que eu me encontro na concorrência, ou “mula mecânica” como dizem por gíria (já que o processo é controlado por computador) para a cor verde — cor final de um robô — e é a isso que ela se refere na última frase. Se eu tivesse coração ele estaria disparado, sem dúvida. Capek... muita gente não se lembra, mas foi o tcheco Karel Capek, antes de Asimov e Simak, o escritor que deu início à saga dos robôs, com a peça “R.U.R. — comédia utópica em três atos e um prólogo” (década de 1920). Os robôs são muito gratos a esses três homens, que influenciaram a humanidade no sentido de fabricá-los verdadeiramente.
Entretanto, esse Capek é outro robô, só que se trata de um verde — na verdade, o mais antigo de todos os que atingiram o estágio verde. Por isso mesmo, uma figura lendária. O que estaria fazendo aqui? Lógico, viera provavelmente visitar a floresta de espelhos, cuja importância era inestimável.
Entrei na sala. Naquele momento Capek estava sozinho e procedia a uma auto-revisão através dos controles no interior do braço direito. Parei e observei-o, sem coragem de falar. Afinal, tratava-se de um autômato muito especial.
— Você é o zelador da floresta? — perguntou, sem se voltar.
— Sou. Você é Capek.
Era uma afirmação, pois eu já sabia. Capek continuou sua revisão. Podia dar atenção a duas coisas ao mesmo tempo, sem maior dificuldade.
— E você é Jenkins.
— Como sabe o meu nome?
— Indaguei.
— É uma honra tê-lo aqui.
Ele ignora o elogio. Vira-se finalmente para mim.
— Amanhã visitarei a área dos espelhos.
É um verde pastel, infinitamente belo. A pintura está impecável, cinematográfica. Uma suave luz verde irradia de seus magníficos olhos de esmeralda. Quase todo o seu corpo é verde. Verde... verde...
Por que terão escolhido essa cor para o mais alto grau da hierarquia robótica? Por alguma razão expresso essa pergunta a Capek, e ele dá uma resposta inesperada:
— Nós, robôs, representamos o supra-sumo de uma civilização extremamente tecnológica, sofisticada. Quem teve essa idéia quis fazer uma espécie de compensação à Mãe Natureza... um retorno ao verde no plano mais avançado da técnica. Ridículo, não acha?
Espanto-me — tanto quanto pode um robô — com o espírito de Capek. Ignorava a informação que ele acaba de me passar. Concordo, porém, com ele.
Capek prossegue:
— Desejo que você me explique em minúcias o funcionamento da floresta de espelhos. É um assunto que me interessa muito.
— Terei prazer em fazê-lo.
— A energia é um assunto vital, Jenkins. Você viu os sofrês * que voam aí fora?
— Sim, eu os vi.
— Já pensou como se explica que uma ave possa voar? Afinal ela pesa mais do que o ar.
Onde ele queria chegar?
— Mas a mecânica do vôo já está perfeitamente equacionada...
— Eu sei. Mas o nhandú e o avestruz já não são capazes de voar. Oh, claro, você pode falar em aerodinâmica, no pequeno peso relativo das aves, mas e o caso do besouro, com seus apêndices incômodos? A primeira explicação para o movimento é a existência de energia. A vida tem a sua própria energia. Uma vida altamente requintada necessita de mais energia. Entre o líquen e o homem a diferença é abissal. E o homem deste século é mais precisado de energia que o dos séculos anteriores. A tendência é aumentar a demanda.
— Concordo.
— Mas se uma civilização se expande tanto quanto a moderna Humanidade, é lógico que precisará selecionar as formas de energia que utiliza, de maneira a não desfalcar o meio ambiente de seus elementos vitais. Acabar com a cobertura vegetal, por exemplo, é maneira suicida e efêmera de produzir energia.
— Daí que a energia solar, como forma preferencial, é a solução mais adequada — prosseguiu ele. — A energia atômica houve por bem ser descartada, pela ameaça que representava de destruição global, em termos mediatos ou imediatos. Outras formas, como a energia das marés, são complementos necessários. Mas o principal é adequar constantemente a utilização da energia solar às necessidades da civilização. Já pensou, Jenkins, que se a carência energética da humanidade aumentar desproporcionalmente em relação à disponibilidade, os robôs poderão ser considerados um bem supérfluo e portanto dispensável? Nós consumimos uma grande parcela de energia e os homens viveram por milênios sem precisar de nossa ajuda. Pense nisso.
Nunca fizera, de fato, tais relações. Capek tinha razão. Se um dia representássemos um fardo pesado, poderíamos ser desligados como lastro supérfluo. Algo que poderia acontecer se as florestas de espelhos, por exemplo, perdessem a sua eficácia. Um pensamento deveras desagradável.
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Passaram-se muitos anos. Curiosamente, o que me ficou com mais nitidez no espírito foi essa estranha conversa da véspera, bem mais que a demorada visita à floresta. Lembro-me de ter mostrado a Capek os tubos de polipropileno, por onde corria água aquecida pelos raios solares, que acionava as nossas turbinas. Mostrei-lhe os espelhos de aço macromolecular que se movimentam lentamente, em tropismo vegetal pela luz do astro-rei. Ele pediu explicações minuciosíssimas e por fim observou:
— É um trabalho maravilhoso e você é muito dedicado, Jenkins. Só lhe falta uma coisa: aperfeiçoar o sistema. Sabe, eu vivo em conferências e não disponho de muito tempo. Sou como Touro Sentado no espetáculo de Búfalo Bill: uma curiosidade. Senão, eu me dedicaria a esse problema. Creio que a energia solar pode render mais. A questão é descobrir o processo adequado. A propósito, você leu sobre as teorias de David Bohm?
— Quem?
— David Bohm. Sobre o dobramento e desdobramento do Universo. É fácil encontrar os livros dele, mas pode deixar que eu lhe mandarei um pelo correio. Talvez lhe dê alguma luz. A meu ver os robôs devem estudar e pesquisar. É a nossa maneira de impor respeito.
Comecei a ler David Bohm e a idéia que passou a me perseguir obsessivamente foi essa: desdobrar a energia solar. Mas como? Ora, pelo espectro! Afinal essa luz é a combinação de sete feixes básicos. O desdobramento dos mesmos não septuplicaria o resultado? Bohm dizia: “Os físicos de hoje (referia-se ao século XX) concluem que toda a base conceitual da Física deve ser considerada como completamente inadequada.” Então por que não se poderia “espremer” mais um pouco as fontes energéticas, antes de concluir que já se tirava delas o possível? Com esse pensamento, comecei a trabalhar como um louco. Febrilmente.
E foi assim que tudo começou. Foram anos de luta, de enfrentamento de preconceitos. Até conseguir doutorar-me em Harvard — primeiro robô a conseguir esse feito — muita água aquecida correu pelos dutos de polipropileno, mas afinal o desdobramento espectral triunfou, aumentando em sete vezes a energia obtida com a radiação hélia. Isso e mais a cerâmica supercondutora, além de outros reforços energéticos, produziu uma superabundância de força à disposição do mundo. O que deu tempo a nós, robôs, de cimentar com mais calma a espinhosa questão dos direitos civis, afastando o que teria sido o pretexto mais imediato contra a nossa raça. Que um autômato tenha sido o descobridor dessa nova fonte, pesa muito na balança. Não seremos presas tão ingênuas côo os índios, e eu, um pouco sem dar conta, preenchi uma etapa importante ao subir de técnico para cientista.
Essa não é a história da luta dos robôs pela sua afirmação. É apenas a história de como uma pequena conversa alterou o meu destino e, de quebra, o destino do mundo. Fito por um instante os meus dedos verdes, enquanto penso em palavras de desfecho. Que extraordinária intuição teve Capek, naquele dia tão longínquo em que falou comigo, quando aparentemente me confiou uma missão? Curiosamente, já não valorizo mais o verde que hoje me recobre. Certamente, não foi para que me pintassem de verde que eu me esforcei tanto.
(*) pássaro brasileiro, o mesmo que corrupião.
NOTA: esta história, escrita nos anos 80 e revisada recentemente (seu primeiro título era "Verde... Verde" e foi incluída na antologia temática do mesmo nome - sobre a cor verde na ficção científica - organizada em 1987 por autores cariocas em edição rateada) ganhou uma nova versão, em co-autoria com Ronald Rahal, que brevemente sairá nesta coluna.