As múltiplas Vozes da Ribanceira
Em: 05/10/2007, às 12H29
Terceira obra de ficção de Oton Lustosa, Vozes da Ribanceira(2003) não desmerece o bom nível, já por duas vezes, alcançado pelo autor, primeiro com Meia-vida(1999), romance de estréia, em seguida, com O pescador de personagens(2000), coletânea de contos.
Nas duas primeiras obras acima o ficcionista deu suficiente mostra de saber lidar com o difícil ofício da criação literária, respeitando os limites de gêneros, ou seja, ao escrever Meia-vida conseguira ser plenamente romancista e, ao construir O pescador de personagens, lograra ser apenas contista. E me parece que com esses dois gêneros irá realizar sua carreira de escritor, já que podemos constatar em apenas três livros um potencial e um preparo técnico aliados a uma inegável capacidade de, no terreno da ficcionalidade, criar enredos, intrigas, situações dramáticas e habilidade de saber narrar e descrever, movimentando personagens com naturalidade, com absoluto domínio dos usos da linguagem literária, isto é, familiaridade demonstrada, sobretudo neste terceiro livro, em transpor, pela linguagem, paisagem e ações com um conhecimento estudado e pesquisado da natureza piauiense, nos três reinos, animal, vegetal e mineral, da sociedade nordestina, da sua cultura e do que resta ainda de suas tradições, de uma visão suficientemente arejada do mundo. A arte de contar história pressupõe por parte do romancista essa consciência estética e social.
Num artigo publicado no jornal Meio-Norte (Teresina, PI, 9/7/2000) Os anti-heróis de Oton Lustosa, eu já havia apontado na ficção do autor pelo menos duas qualidades, a do domínio da “manipulação da trama, do “plot”, e a “capacidade de criar personagens”. Na construção da trama quero significar a lucidez que confere ao desenvolvimento das ações dos personagens, ou melhor dizendo, à competência literária demonstrada na articulação do discurso e da história, para ficarmos apenas com dois componentes basilares da estrutura da narrativa.
Quanto á capacidade do autor de criar personagens, aludo à sua potencialidade de, no âmbito da imaginação, condição essencial ao sucesso na arte da ficção, poder compor “criaturas de papel”, conforme definia Roland Barthes, que, na recepção dos leitores, pudessem se transmudar em seres ou criaturas humanamente verossímeis, sem o quê qualquer tentativa ficcional estaria fadada ao insucesso.
Não é por acaso que, na segunda obra do autor, O pescador de personagens, vemos confirmada essa habilidade do ficcionista de elaborar admiráveis seres de carne e osso, para aqui lembrarmos uma expressão do velho e talentoso crítico impressionista, Agripino Grieco, falando de personagens de Jorge Amado.
Entre o nouveau roman ou anti-romance de Alain Robbe-Grillet e um romance de personagem de feitio tradicional, eu não hesitaria em preferir o segundo, porque, se o romance, grosso modo, me proporciona a visão panorâmica da vida, essa visão eu só saberia encontrar na sua plenitude através da forma dos personagens dos grandes romancistas ocidentais.
Se em Meia-vida Oton Lustosa povoou seu universo literário de personagens de grande densidade humana, como Zezão, Belim e Maria de Fátima, no livro de contos O pescador de personagens ele nos brindou com a figura do juiz-literato, amante do futebol, Dr. Dionísio Trajano de Mendonça Abreu. Aliás, esse personagem, alter-ego provável do autor, segundo já lembrou Ronaldo Cagiano, funciona no texto com uma espécie de gancho para entendermos melhor a visão do escritor como homem e criador. Alguns dos doze contos aí valem como verdadeiros exercícios meta-ficcionais, nos quais o personagem-juiz, presente em todos os contos, confessa suas preferências literárias e sua maneira de tratar seus temas e personagens e até projetos de livros.
No conjunto das três obras escritas, posso sem esforço divisar em Vozes da Ribanceira uma evolução positiva de maturidade do autor, sobretudo no domínio dos recursos de técnica narrativa, segundo veremos mais adiante, e de sua correspondente formalização da linguagem literária.
Em Meia-vida Oton Lustosa fez um corte temporal, indo buscar sua vigorosa trama romanesca na Teresina dos anos 80 e, como nível social preponderante, os desafortunados da sorte, a gente miúda, os anti-heróis, como os defini em meu citado artigo. Mas, observe-se que essa gentinha vem sempre em contraponto com a classe social mais privilegiada. Como se vê, as preferências do autor até aqui são por esses tipos desvalidos, e são eles que formam o número de personagens mais bem compostos esteticamente, dos quais são exemplos o engraxate, a prostituta, o camelô, o feirante. Como ficção costumbrista, de corte neo-realista e mesmo com traços por vezes neo-naturalista, aí não faltam outros personagens típicos como o delegado, o político, o marginal, o viciado.
Em Vozes da Ribanceira, recuando um pouco e avançando mais ainda até os meados da década de 80, o escritor passa, agora, a enfocar a vida dura, sofrida e mesmo heróica dos oleiros, dos pescadores, contribuindo, então, com uma nova galeria de personagens incrivelmente humanos, como Zito, oleiro rude e operoso, Totonho, líder dos oleiros e pescadores, Sousa Martins, soldado de polícia, cego às transformações sociais, Arlindo Viola e Caetana, cantadores, Valdo Paim, líder político fisiologista, Dasdores, beata zelosa das coisas sagradas e defensora incondicional do padre Pedro.
A galeria de tipos sociais é imensa nesse romance povoado de gente de vário naipe: o oleiro, a prostituta, o traficante, o macumbeiro, o bodegueiro, o padre politizado, o boticário, o motorista, o poeta-cantador, o capataz-jagunço, a artesã, o padre estrangeiro, o jogador de futebol, os amantes da poesia, o agente do DOPS, a “autoridade”, o drogado, o alcoólatra, o traficante, o hippie, a radialista (protagonizada por Zizinha de Almeida, formando par amoroso com o hippie Tenório, ambos de origem burguesa). Mas, tal como em Meia-vida, o personagem principal, no caso o hippie Tenório, não é a criação ficcional mais convincente esteticamente. Tudo gira em torno dele, porém da pena do escritor são os personagens secundários, em sua maioria, que se destacam mais pela perfeição e densidade dramática e, portanto, por seu convencimento como criação ficcional Tenório mais parece um símbolo, uma abstração. Já uma Dasdores, um Zito, um Nego Mundico transpõem, por sua veracidade, da ficção para a vida. Oton Lustosa parece, assim, querer abarcar, o quanto possível, esse enorme contingente da sociedade local, e nisso anda certo na sua condição de romancista, competidor, na esfera da Arte, de simulacros do Universo. No caso desse romance, é o Poti Velho, em Teresina, que lhe serve de cenário principal de sua narrativa, variando apenas o seu espaço mediante flashbacks das reflexões do personagem Tenório em direção a Recife.
Politicamente, a narrativa se localiza num período em que o país ainda atravessava os fins sombrios dos anos da ditadura militar e o período de promessa de abertura acenado pelo governo Figueiredo.
A narrativa, portanto, se desenvolve em meio a esse momento discricionário assustador e, mais adiante, a uma mudança que já é esperada pela sociedade brasileira ansiosa pelas conquistas democráticas.
O eixo da narrativa se divide em duas células temáticas principais: a) a realidade dramática vivida por uma população ultrajada em suas reivindicações de condição de vida: acesso à terra própria, à moradia e a uma vida mais decente pleiteada pelos trabalhadores rurais; b) o direito à liberdade reclamado pacificamente por um emigrante nordestino do Recife, o hippie Tenório, pivô da trama e personagem em torno do qual, segundo já mencionamos, boa parte da fabulação se concentra como forma de representação dramática.
As duas células acima referidas, a meu ver, explicitam à perfeição a divisão do romance em duas partes, conforme propõe o ficcionista: o Barro e o Fogo. A primeira parte sinaliza, em meu entender, o trabalho dos oleiros na busca de dar forma à argila, atividade associada à forma do húmus, da natureza telúrica, das condições do solo, tão bem ilustrada pelo heroísmo e dignidade de ofício do personagem de Zito, sucessor do pai na faina de oleiro. A segunda, o fogo, metaforiza o ato de denúncia feita contra Tenório, acusado de mandar incendiar os pastos e da invasão do latifúndio de Raimundão Araújo. Metaforiza ainda todas as acusações contra o hippie e contra a população invasora. O fogo sintetiza a visão antagônica entre o latifúndio e os sem-terra, entre os despossuídos e os exploradores no sistema capitalista rural. O barro é o trabalho e o suor do operário; o fogo, a revolta contra a posse e a prepotência dos poderosos.
Vozes da Ribanceira é uma ficção que reúne uma gama de problemas polêmicos, alguns ainda bem atuais, enfrentados pela sociedade brasileira tanto urbana quanto rural: a exploração de mão de obra barata, o conservadorismo dos latifundiários, a droga, o autoritarismo não só rural (donos de terras) mas institucional (o do governo, representado pela força policial e pelo regime de exceção), a prostituição, o clientelismo, o mandonismo rural, a questão da reforma agrária e as relações tensas de natureza reificadora entre propriedade e trabalho no campo.
Romance também em que se discutem as relações familiares, a moral burguesa, o complexo de Édipo (este na relação entre Tenório e sua atraente mãe), o erotismo de fundo neo-naturalista, o aborto, enfim, a questão da liberdade sexual exemplificada na figura do hippie Tenório com todas as implicações existenciais e ideológicas decorrentes das práticas e costumes da beat generation identificada no lema de Paz e Amor, ou na expressão em inglês On the road remetendo à obra de Jack Kerouack. Podemos, agora, entender o clima de alguns momentos de sonho, fantasia e alucinação experimentados por Tenório e expressos numa linguagem entre vigília e o sonambulismo, dado que o personagem, amigo do “baseado”, em alguns trechos da narrativa mergulha nos mistérios inapreensíveis dos efeitos alucinógenos das drogas.
Um outro aspecto positivo que devo salientar nesta apresentação de Vozes da Ribanceira me parece ser a forma de focalização habilmente utilizada pelo escritor. Sendo inegável o tributo pago por ele à geração do romance nordestino de 30, sobretudo a Graciliano Ramos, deve-se louvar no ficcionista piauiense o seu recurso de combinar a voz do narrador em terceira pessoa, o uso do discurso indireto livre, ao expediente de ceder a vez do narrador a um personagem na mesma pessoa gramatical. O efeito disso é altamente eficaz ao discurso do narrador, que irá representar a fala de vários personagens num salutar exercício de polifonia ou de perspectivismo narrativo. Tal recurso dá ao leitor uma impressão de que não é o narrador em terceira pessoa que conduz o discurso, mas este instaura, no fluxo da narração, a consciência da voz do personagem. A narração assume, assim, uma função de desdobramento de vozes. Esse recurso já podemos rastrear em alguns romances de Machado de Assis, como Quincas Borba(1892).
Finalmente, considero como avanço significativo em Vozes da Ribanceira, com respeito aos livros anteriores do autor, a revelação de um ficcionista de amplos recursos descritivos e narrativos, agora no domínio pleno de elevar sua linguagem a um patamar de um autêntico criador de formas de comunicação literária. Bastam capítulos primorosos como “Caieira”, “Pescaria”, “Festa de São Pedro”, “Incêndio”, entre outros, para poder-se ter a prova provada de um escritor que já se encontra dono de sua própria maneira de produzir ficcionalmente, mercê da energia de seu verbum irradiada para todos os lados e para todas as esferas do Cosmos, com capacidade de transformar sentimentos, ações, paixões, sofrimentos, alegrias e reflexões em vidas que brotam dessa química, que é a palavra elevada ao seu estatuto estético, reunindo céu e terra, ar e água, vegetação, animais, situações humanas e transcendências, nessa fusão encantatória, que é fazer, com consciência e dignidade intelectual, da linguagem uma imagem vigorosa e visceral do mundo.
Cunha e Silva Filho é piauiense de Amarante, radicado no Rio de Janeiro. Doutor em Literatura Brasileira e Crítico Literário.