AS ESPIGAS FURTADAS
Por Elmar Carvalho Em: 01/11/2012, às 17H18
ELMAR CARVALHO
É um tanto comum, hoje em dia, atribuir-se a culpa da falta de limites de muitos jovens às leis, especialmente ao Estatuto da Criança e do Adolescente. Esses arautos dizem que o estado interfere demasiadamente na família, sobretudo na maneira de os pais criarem os filhos. Apregoam que as crianças não podem receber surra, nem mesmo leves palmadas, e não podem ser colocadas para trabalhar. Alegam que esses dois itens – castigo e trabalho – eram importantes na educação e formação moral de um jovem.
Talvez essa análise seja simplória, e não seja correta. O que parece, em muitas famílias, é que os filhos não são observados de perto pelo pai e pela mãe, que em muitos casos trabalham em empregos fora de casa. Desse modo, os infantes, sob os cuidados de empregadas ou de avós, não seriam admoestados em seus deslizes, e se acostumam a fazer o que bem entendem. Já com doze ou mais anos, quando os pais querem lhes impor regra e disciplina, se rebelam e não aceitam as recomendações paternas, porquanto a isso não foram acostumados desde tenra idade. Sou da opinião de que a formação moral e a disciplina devem começar já a partir dos primeiros anos de vida.
Com relação ao trabalho, outrora os lavradores, sobretudo, tinham muitos filhos, tanto por falta de educação no planejamento familiar, como porque alegavam que os filhos eram a riqueza dos pobres. Desde os oito para os dez anos, colocavam os menores para lhes ajudar nos serviços de agricultura, mesmo porque poucas localidades dispunham de escolas. Como a prole era enorme, os lavradores contavam com a ajuda de filhos até ficarem velhos, ou não tão velhos assim, já que a expectativa de vida era muito baixa, sendo que um rurícola de 45 anos de idade já parecia um ancião, com a pele enrugada, os dentes extirpados ou cariados e os cabelos encanecidos.
Desse modo, os filhos trabalhavam para os pais até constituírem suas próprias famílias, sendo os mais velhos substituídos sucessivamente pelos irmãos mais jovens. E haja parto e haja menino. De qualquer sorte, todos continuavam a dar dia de serviço para os velhos pais, ao menos em relação aos serviços mais pesados, como broca, derrubada e capina, através do sistema de troca de diárias (ou não), no chamado regime de economia familiar. De algum tempo a esta parte os lavradores passaram a ter a aposentadoria rural, que lhes dá uma certa dignidade e conforto.
Todavia, como é fácil de se notar, por ser óbvio, se o garoto ia para o trabalho, não poderia frequentar a escola, e isso contribuía para que os filhos dos mais pobres e analfabetos continuassem analfabetos, e situados entre os mais pobres. Foram infantes que praticamente não tiveram infância, pois em sua faina pesada não brincavam. Nessa época a disciplina era muito rigorosa, geralmente vigorando a lei da chibata, em casa, e a da palmatória, na escola. Para certos mestres, a palmatória parecia ser mais importante que a Cartilha de ABC ou a tabuada. Parecia o emblema da educação rude desse tempo antigo, em que os alunos eram sabatinados, e a cada resposta errada eram “contemplados” com um “bolo” ou palmada aplicada com esse instrumento.
Ao falarmos sobre os rigores da educação de antigamente, um amigo contou-me o fato que passo a narrar, e que ilustra um pouco o que tentei transmitir neste breve registro. O Duda – é esse o nome do meu amigo, paulista do interior – frequentava livremente o sítio de um amigo de seu pai, que ficava perto do de sua família. Era considerado pelo casal de proprietários como se fosse um filho, e eles tinham a maior satisfação com as suas constantes visitas, com direito a merenda e refeições.
Numa dessas visitas, o Duda viu várias espigas empilhadas em determinado local da varanda. Os grãos estavam tenros, macios, dourados, prontos para serem cozidos ou assados. O garoto, sem nenhuma malícia, muito menos a menor ideia de que estivesse fazendo algo errado, escolheu quatro ou cinco espigas e as colocou na garupa de sua bicicleta, e retornou para a casa de seu pai. Ao chegar, as colocou perto de seu calçado, em seu quarto, sem dar maior importância ao episódio.
Quando seu pai, que era médico, retornou do serviço, logo notou a presença do milho perto dos sapatos do filho. Imediatamente lhe perguntou sobre a origem das espigas, tendo o rapaz contado o fato, sem nenhuma omissão, e sem nenhum sentimento de culpa, mesmo porque achava nada ter feito de errado. O pai explicou-lhe que ele furtara as espigas, uma vez que não as pedira aos donos, e mandou que ele, em sua companhia, fosse devolvê-las.
Assim foi feito. Os donos do sítio até se agastaram com o pai do Duda, pois disseram que ele era como um filho para eles, e tinha toda a liberdade para levar quantas espigas quisesse; que ele levara o que na verdade lhe pertencia, porquanto eles jamais lhe negariam alimento. O médico não aceitou a justificativa, e o certo é que esses amigos ficaram um tanto distanciados, por causa desse incidente, durante algum tempo. Contudo, esse episódio parece ter contribuído de forma poderosa na formação moral do Duda, uma vez que ele não mais praticou fato semelhante.
Acrescentou-me que certa feita, já casado, passou por um belo e grande milharal, em que não havia cerca. Como sua jovem mulher desejasse obter duas ou três espigas, o Duda preferiu caminhar mais de um quilômetro, até chegar à casa do proprietário, embora elas estivessem ao alcance da mão de quem percorresse aquela estrada. Bateu palmas, até aparecer o agricultor. O meu amigo contou-lhe o sucedido, e propôs comprar quatro ou cinco espigas. O fazendeiro, com cara de pouco amigo, retrucou de forma ríspida, peremptória e abrupta:
– Não vendo e não dou!
Deixo que cada leitor tire a sua própria conclusão desse caso mais do que emblemático, e que pode ser uma grande lição de vida.