Ainda sobre o Acordo Ortográfico
Por Carlos Evandro Martins Eulálio Em: 12/12/2021, às 21H12
[Carlos Evandro Martins Eulálio]
As alterações introduzidas na Língua Portuguesa pelo Acordo Ortográfico em vigor, além de necessárias assinalam um marco de unificação do uso do idioma pelos falantes da Comunidade dos Países de Língua Portuguesa (CPLP). Dados estatísticos recentes, colhidos do portal.mec.gov.br, atestam que a língua portuguesa é falada por cerca de 220 milhões de pessoas em todo o mundo - mais de 200 milhões só no Brasil.
A partir de 2016, deixamos de ter duas ortografias oficiais, uma em Portugal e outra no Brasil. Até então, sempre que redigíamos um documento de caráter internacional, envolvendo os dois países, ele deveria ser escrito nas duas versões: uma no português europeu e outra em português brasileiro, isto é, em duas línguas diferentes. Esse impasse só poderia ser resolvido com um acordo ortográfico que pudesse unificar o registro escrito nos oito países que falam o idioma: Angola, Moçambique, Cabo Verde, Guiné-Bissau, São Tomé e Príncipe, Timor Leste, Brasil e Portugal.
Para o filólogo Antônio Houaiss (1915-1999), principal negociador brasileiro do Acordo, e quem elaborou a Nova Ortografia da Língua Portuguesa (1991), “um dos objetivos do Acordo é criar uma comunidade que constitua uma unidade linguística expressiva, ampliando seu prestígio junto aos organismos internacionais.”
As bases do acordo que têm suscitado polêmicas são aquelas que dizem respeito ao emprego do hífen, em virtude do grande número de exceções e falta de clareza no enunciado das regras contidas nas bases XV e XVI do Acordo. Quanto a isso, alguns equívocos já foram esclarecidos na versão on-line do Vocabulário Ortográfico da Língua Portuguesa (VOLP), fonte oficial de consulta, lançado em 2009 pela Academia Brasileira de Letras (ABL). Em caso de dúvida, o leitor deve acessar o site da ABL: http://www.academia.org.br/. Ali encontrará no link VOLP a grafia correta da palavra que procura. Outra sugestão seria consultar a obra BECHARA, Evanildo. O que muda com o novo acordo ortográfico. Rio de Janeiro: Nova Fronteira/Lucerna, 2008 (2ª impressão).
Na prática, a vigência da nova ortografia não tem interferido de forma alguma na comunicação entre as pessoas, pois no Brasil, desde 2009, a grafia de nossas palavras tem seguido as bases do acordo nos documentos oficiais, na imprensa escrita, nas editoras e nos meios virtuais de comunicação. As pessoas vêm assimilando essas mudanças com naturalidade, uma vez que foram poucas as alterações.
Quanto aos acentos diferenciais, a retirada deles não é recente. A Lei 5.765, de 18 de dezembro de 1971, sancionada pelo então presidente Médici tratou de abolir, embora em parte, os acentos diferenciais dos homógrafos, exceto nas palavras pôde/pode e pôr/por, acentos mantidos até hoje. No primeiro caso, para evitar ambiguidade, o acento faz distinção entre as formas do verbo poder quanto aos tempos pretérito perfeito e presente do indicativo. No segundo, a distinção se faz entre pôr (forma verbal) e por (preposição homônima). Convém aqui mencionar que as palavras derivadas de pôr (repor, transpor, dispor etc.) não são acentuadas.
Pelo acordo atual, a maioria dos acentos diferenciais desapareceu, conforme a regra: “perdem o acento gráfico as palavras paroxítonas que, tendo respectivamente vogal tônica aberta ou fechada, são homógrafas, ou seja, têm a mesma grafia, de artigos, contrações, preposições e conjunções átonas.” (BECHARA, 2008, p.29)[i]. Portanto, essas palavras deixam de se distinguir pelo acento gráfico, como no emprego de para (á) [flexão de parar]; e para [preposição].
Não há por que se admitir ambiguidade, pois nesse caso o que distingue o sentido de uma palavra da outra não é o acento gráfico, mas o contexto em que ela se insere, como nos exemplos: “Sem nenhum motivo ele para com frequência no semáforo aberto”. / “Instruções para pouso e decolagem do avião”. No primeiro enunciado, empregou-se a 3ª pessoa do singular do presente do indicativo do verbo parar; no segundo, a preposição homônima para.
Com relação às palavras estrangeiras, que muitos se preocupam em virtude de sua inserção no nosso idioma, elas constituem uma fonte de enriquecimento do nosso léxico. Como se sabe, as línguas não são estáticas. Com o tempo elas se modificam por imposição da fala. A importação estrangeira é um fenômeno sociocultural decorrente da necessidade que tem o usuário da língua de representar linguisticamente coisas ou situações novas. Assim, a palavra “selfie”, a exemplo de tantas outras provenientes em sua maioria do inglês, como playback, playboy, playground, outdoor, output, design etc., quando não aportuguesadas, como gol (goal), jipe (Jeep), náilon (nylon), lorde (lord), iogurte (youghurt), bife (bieef) etc., deixando de ser estrangeirismo, se consagrada pelo uso popular, passa automaticamente a fazer parte do nosso léxico, isto é, do conjunto de palavras de que dispõe a língua portuguesa reunidas em dicionário. Equivocadamente, o deputado Aldo Rebelo, patriota que nem Policarpo Quaresma, apresentou o Projeto de Lei 1676/99 que prevê punições para quem abusar do uso de expressões estrangeiras, devendo substituí-las por outras do nosso vernáculo.
Outra ideia frustrada e infeliz foi a do latinista e filólogo carioca Antônio de Castro Lopes (Rio de Janeiro: 1827-1901), conhecido por Dr. Castro Lopes, médico homeopata polígrafo, gramático e poeta que, na passagem do século XIX para o século XX achou de criar neologismos tentando substituir abajur por lucivelo, futebol por balípodo ou ludopédio, pince-nez por nosóculos, piquenique por convescote e chofer por cinesíforo. Leis como a proposta de Aldo Rebelo ou ideias como a do Dr. Castro Lopes mostram um discurso conservador e autoritário, quando tentam regular aquilo que é de uso geral, espontâneo e irrestrito à nossa linguagem cotidiana.
[i] BECHARA, Evanildo. O que muda com o Novo Acordo Ortográfico. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2008.