A QUIMERA EM PONTO NEUTRO - ENSAIO DE DIEGO MENDES SOUSA
Por Diego Mendes Sousa Em: 20/02/2024, às 14H42
A QUIMERA EM PONTO NEUTRO
Por Diego Mendes Sousa
Há tempo descobri que poesia é emoção e acontecimento estético. Hoje sei que a confissão é um dos elementos mais poderosos do lirismo, pois o confessionalismo é universal, pertencendo à trama e ao drama históricos.
O estado poético do eu é profundo, difuso e requer intimidade consigo mesmo, além de uma dose elevadíssima de conhecimento sobre o abismo humano.
Aprendi cedo, aquilo que Nicanor Parra revelou: contra a poesia das nuvens, opomos a poesia da terra firme, cabeça fria, coração quente.
Com título curioso e místico, Maria Fernanda Brito do Amaral aporta na literatura em ponto neutro, nem fria, nem quente. Decerto, convicta daquilo que René Char ensinou: a poesia é o amor realizado do desejo que permanece como desejo.
A poesia é assim, a entrega e o tormento. Em Ponto Neutro (2023), Maria Fernanda traz à tona as comoções, os sonhos, as ilusões... Tonalidades imprecisas de uma alma devota ao amor e ao tempo.
Amante da vida, a matéria da sua expressão advém do recôndito. Diz: estou sempre me espantando. Espantar-se aqui é não perder a fortaleza ambígua do ser, nem o estranhamento do destino.
Detentora de uma intuição incomum, Maria Fernanda faz das percepções um lastro evidente de sabedoria: o meu tormento é adivinhar pisadas. Vidência que somente à poesia é proficiente reter.
A poesia de Maria Fernanda Brito do Amaral é sensitiva, com as peculiaridades femininas do erotismo (ora explícito, ora velado), do fogo e do desafogo das paixões, das indagações, das dúvidas e das incertezas que vigiam a existência.
Poesia leve e ritmada, que tanto embevece como ensina: uma maneira bem fácil / de sair da solidão / é contar às águas do rio / o que temos no coração.
Poesia de viagens, que alega movimento e extensão geográfica. É o piscar das estrelas / saudando a nuvem que passeia.
Poesia do amor romântico, natural e eterno, que se perfura em belas imagens: Amor é o imenso carinho / com que o mar vem beijar a areia.
Reservo, em Ponto Neutro, o arrojado poema “O meu tormento...”, em que Maria Fernanda opera, com maestria, a criação de uma peça valiosa, digna de encantamento, com grandeza legítima.
A leitura de Ponto Neutro fez-me recordar Fernando Pessoa: “Ser poeta não é uma ambição minha. É a minha maneira de estar só”. Ponto Neutro significa aquilo que está etéreo. É uma metáfora do silêncio. É uma descontinuidade cabalística do vazio. É um mistério. Vale tudo e vale nada. É uma intriga e uma miragem. Até mesmo um engano. Imaginações inúteis, como são próprias à poesia. Inutilidade e quimera.
Maria Fernanda Brito do Amaral vem a lume como poetisa. Ela que sempre se destacou como mulher de vanguarda, estudiosa, articulada, boa praça, ás, amiga generosa, guardiã da sua família, possuidora de todos os níveis de formação acadêmica, advogada, administradora, política, gestora pública, educadora, professora, pesquisadora, orientadora, conferencista, escritora e, sobretudo, uma cultuada e respeitada mestra, que encontrou na poesia uma pertinência para a sua evasão.
Ponto Neutro é estreia e não é. Tudo é novo, com sentimentos antigos e duradouros. Antítese. Inaugural, mas longevo. Poesia aguda, de amor e de dor.
Diego Mendes Sousa
Crítico de Literatura
===================
JOVEM DESESPERADA
A jovem estava calada
Absorta e pensativa
À beira da estrada
À espera do nada
A cabeça cheia de lembranças
De quando era criança
Das promessas, das esperanças
E das desesperanças
A perda dos pais
Naquele acidente funesto
A vida sem rumo
O corpo sem teto e os pés sem terra
A jovem deixava transparecer
A ausência da alegria
Era o retrato da tristeza
A angústia a consumia...
Poema de Maria Fernanda Brito do Amaral
Extraído do livro de poemas "Ponto neutro" (2023), de Maria Fernanda Brito do Amaral
====
O MEU TORMENTO...
O meu tormento é adivinhar pisadas
de uma outra que passou antes de mim
e que já andou talvez pelas estradas
onde por hoje sigo atormentada assim...
E o de pensar que só te achei agora
e surpreender-me, às vezes, a supor
que o grande amor que me inspiraste mora
na mesma casa de um antigo amor...
É imaginar também que os teus desejos
a outra alma estranha já fizeram louca
e que o doce champanhe dos teus beijos
fez transbordar de beijos outra boca!
É pensar
(doloroso é o pensamento
quando o encho assim
com os meus tormentos vãos)
- Que carícias ficaram como o vento, a roçar,
invisíveis, tuas mãos...
Ah! A angústia em que vivo
e em que hoje estou
ao julgar que teus braços, teus carinhos,
guardam marcas de um outro amor que passou
como a areia molhada dos caminhos...
Poema de Maria Fernanda Brito do Amaral
Extraído do livro de poemas "Ponto neutro" (2023), de Maria Fernanda Brito do Amaral