A poética de H. Dobal
Em: 10/08/2008, às 10H32
ENTREVISTADO:
Wanderson LimaDÍLSON Lages - Incontestavelmente, a poesia de H. Dobal está entre as mais expressivas da literatura de autores piauienses. Dobal alcançou o reconhecimento do valor da literatura que produziu ainda em vida. Por que, professor, ele está entre os melhores de nossa literatura?
WANDERSON Lima - De alguma forma, tentei responder parcialmente a esta pergunta em minha dissertação, defendida na Ufpi. De um modo bem geral, Dobal está entre os nossos melhores autores porque conseguiu manter uma poesia de raro poder de comunicação sem abrir mão de uma alta realização estética. Isto num século cuja poesia nasceu sob a égide do hermetismo, com Baudelaire e especialmente Mallarmé.
DÍLSON Lages - Em sua dissertação de mestrado, professor, o senhor aproxima H. Dobal e Da Costa e Silva. Teoricamente, o que os aproxima? E nos textos deles, materialmente, o que permitiu essa aproximação?
WANDERSON Lima - Não é exatamente em minha dissertação, mas num artigo que saiu, creio que em 2005, na revista Cadernos de Teresina: “O oculto diálogo”. Este artigo foi ampliado duas vezes, e parece que quer virar um opúsculo. O que os aproxima é o propósito de representar poeticamente a paisagem física e humana do Piauí, e fazê-lo sob uma ótica verdadeira (na concepção de cada um deles), singular e, se possível, melhor que os antecessores. Materialmente, isto é, estilisticamente são poetas opostos: ornamento versus concisão; subjetivismo versus objetivismo; pendor romântico versus pendor clássico. Em comum mesmo, que eu me lembre agora, só a sensibilidade do olhar. São poetas que vêem, e que sabem dizer o que vêem. Mas eu não os estudei partindo de semelhanças materiais, a partir de categorias como intertextualidade. A categoria “influência”, que foi a que eu utilizei, conforme a concebe Harold Bloom, não se prende tanto a rastros, a marcas, porque localiza as semelhanças no nível psicológico. A “angústia da influência” e a “desleitura” são categorias de uma psicoestética. Um grande poeta, quando se influencia por outro, costuma escamotear, daí que nem sempre a influência gere semelhança de estilo. Bloom parte de uma concepção agônica da história literária, predicando que todo poeta é uma resposta a um outro poeta e que todo poema é uma desleitura (misreading) de outro. Um poema é o produto de uma angústia pela falta de primazia. Pessoa, por exemplo, seria uma resposta a Camões e seu “Mensagem” uma resposta, agônica e angustiada, a Os Lusíadas. Minha tese foi a de que H. Dobal, aquele que visa representar poeticamente o Piauí, é uma resposta a Da Costa e Silva. Ele lê o poeta amarantino de uma forma radicalmente revisionista, procurando “corrigir” os seus excessos. Em linhas gerais, Dobal responde aos “defeitos” (ressalte-se estas aspas) da poética dacostiana impondo o metonímico ao metafórico, a concisão ao ornamentalismo, o realismo poético à idealização poética, a consciência histórica ao modelamento arquetípico. Nesta linha de raciocínio, podemos ler O Tempo Conseqüente e A Serra das Confusões como uma resposta radical a Zodíaco.
DÍLSON Lages - Nos últimos anos, H. Dobal recebeu considerável número de estudos críticos. Qual o seu olhar sobre a crítica que se fez e que se faz sobre a poética dobalina?
WANDERSON Lima - Vou ser bem genérico e poupar nomes, exceto o do iniciador. A primeira leitura que se fez de Dobal, salvo engano meu, foi um prefácio de Odylo Costa, um texto curto e esplêndido. Entre as iluminações de Odylo, me impressiona como ele percebeu o traço ecumênico da poesia dobalina, apresentando as diferenças entre a tradição da poesia sertaneja e o “anti-sertão” de H. Dobal; ele também notou o horror de Dobal ao subjetivismo e ao confessionalismo, preferindo tratar as coisas de um modo quase fenomenológico, viu a unidade entre tema e linguagem nos textos dobalinos e acentuou a singularidade da narrativa épica em “Leonardo”, na sua fusão de discurso poético e discurso histórico. Depois de Odylo, seguem abordagens que oscilam entre o biografismo, o impressionismo e a análise estilística. Atualmente, a tendência mais forte, embora o cenário seja plural, é a de escavar as relações intertextuais nos poemas de Dobal e destacar o poder crítico de seus versos, numa visada pluridisciplinar em que ganha destaque a relação entre história, cultura e literatura.
WANDERSON Lima - Não escrevi sobre a intertextualidade, mas sobre a angústia da influência, como tentei explicitar acima. Gosto do trabalho do Kennedy porque ele resgata o saudável hábito da leitura imanente sem cair no fetiche da forma, mas para avançar mais seguro nas relações entre os versos de Dobal e a crítica ao projeto racionalista e progressista da modernidade. Particularmente acho que, na comparação entre Faustino e Dobal, Kennedy forçou um pouco. O risco de se trabalhar com intertextualidade é que semelhanças estilísticas podem levar o crítico a “produzir” parentescos. Não nego que os paralelos encontrados por Kennedy não sejam um exercício brilhante de percepção de estilo; só não tenho certeza se Dobal retomou Faustino ou se trata de mera convergência. Digo isso por que esta mesma convergência pode ser notada em outros poetas órficos, místicos e vitalistas, especialmente os de tradição anglo-americana. Nas outras aproximações intertextuais, com a Bíblia e Eliot, o estudo de Kennedy me parece certeiro e preciso. DÍLSON Lages - O que, para o senhor, ainda estar a merecer estudo na poesia de H. Dobal? DÍLSON Lages - H. Dobal, apesar de sua poesia de primeira grandeza, não alcançou ainda (?) projeção nacional? Examinando o sistema literário, o que, para o senhor, impediu que esse reconhecimento ocorresse?
DÍLSON Lages O professor Kennedy Eugênio vê um diálogo entre os poemas de Dobal, de inspiração órfica, e a poesia de Mário Faustino. O senhor que já escreveu sobre a intertextualidade em Dobal interpreta de que modo a análise de Kennedy?
WANDERSON Lima - Vou inverter a pergunta: o que em Dobal já foi estudado? Uns cinco ou seis tópicos, no máximo, e alguns mal estudados. Quem tiver paciência, sistematicidade e sagacidade há de descobrir coisas interessantes.
WANDERSON Lima - Há uma ladainha que contamina os terreiros literários piauienses, cheia de autocomiseração, que nos faz de vítimas e coitados. Isso é bobagem, complexo de inferioridade que ou superamos ou vamos ficar onde estamos por merecimento. Sabemos que num contexto em que cultura e mercado são inseparáveis, estamos – nós, piauienses – em franca desvantagem, embora isso não justifique por inteiro nossa exclusão. Basta ver como o nível geral da literatura que se produz no Piauí é deplorável, e isso não é só por questões econômicas e históricas. Se projeção nacional for aparecer em livro didático e nas páginas amarelas da revista Veja, ser lido na Ana Maria Braga ou entrevistado no Jô Soares, podemos esquecer. O piauiense H. Dobal, o maranhense Nauro Machado, o paraibano Sérgio de Castro Pinto e a potiguar de adoção Zila Mamede, só para citar alguns “marginais involuntários”, jamais chegarão ali. Agora, se projeção nacional tiver um sentido um pouco menos pedestre, e significar ser lido, reconhecido e amado por leitores seletos e esclarecidos e por boa parcela da crítica, então os quatro autores que citei já atingiram projeção nacional considerável. O sistema literário sempre será injusto num país tão vasto, cheio de zonas historicamente marginalizadas e com tantas desigualdades sociais. O máximo que pode ocorrer é este “sistema” abrir o cânone seguindo a moda do politicamente correto promovida pelos estudos culturais. Mas, neste caso, a qualidade estética não seria um critério em pauta.
DÍLSON Lages - Geralmente, autores costumam se agrupar em torno de publicações cujos pares pensam de maneira próxima. No caso de H. Dobal, ele integrou o grupo que editou alguns números da Revista Cadernos de Letras Meridiano. Levando em conta o momento cultural de então e o teor da revista, como o senhor avalia o significado desse veículo literário na formação do poeta?
WANDERSON Lima - Meridiano foi primordial na formação de H. Dobal. Era um campo de testes. Em alguns textos daquele veículo, principalmente nos de crítica, Dobal exibe uma franqueza ímpar e que não volta a se repetir, entregando o ouro para seus críticos.
DÍLSON Lages - Alfredo Werney, em ensaio, analisa a musicalidade em O tempo conseqüente. Segundo Alfredo, “a musicalidade de Dobal é exata, não quer se sobrepor aos outros elementos. Está mais próxima da fala”. O senhor endossa esse ponto de vista? Se positivo, como isso se revela estilisticamente?
WANDERSON Lima - Sim. Creio que no próprio ensaio do Alfredo está bem explicado como isso se mostra nas opções estilísticas do autor. Dobal é um escritor clássico, no sentido em que trabalha com um certo senso de harmonia: som, imagem e sentido formam um todo harmônico em seus versos. Como quem não quer chamar a atenção, rechaçando o que os espanhóis chamam de efectismo, explora uma musicalidade condizente com as outras camadas significativas do poema: simples, mas não simplória, próxima da fala e anos-luz distante da sinfonia anti-natural dos sonetos parnasianos e simbolistas. Um diretor de cinema iraniano, Abbas Kiarostami, disse certa vez, e sem ironia, que se sentiu satisfeito quando um expectador lhe disse: “Parece que este filme foi feito sem diretor!”. Quer dizer, todo o artificialismo das operações estilísticas do diretor, todo o seu virtuosismo foram escamoteados, de modo que o filme parecera um produto natural. Assim também a maior parte dos poemas de Dobal: de elaboração complexa, inclusive em sua melopéia, mas aparentando ser um object trouvé.
DÍLSON Lages - Para finalizar, escritor, quem quer se iniciar na leitura de Dobal deve começar por qual livro? Por quê?
WANDERSON Lima - Apelo aos meus amigos e alunos que selecionem suas leituras literárias pautando-se primordialmente na excelência artística. Faço isso não por julgar quem quer que seja incapaz de fazer escolhas, mas para opor minha alternativa démodé àquela que uma parte da inteligência local propõe: o critério geográfico. Vejo (e me ruborizo quando vejo) em carros de Teresina: “Leia literatura piauiense”. Como considero a obra de Dobal de boa qualidade e bastante equilibrada, excetuando o último livro, creio que o leitor tem várias opções por onde começar.