Promessa é dívida e conforme prometi no post de ontem, sobre a Guerra da Independência no Dois de Julho, hoje pago a conta e revelo para vocês quem foi Maria Felipa de Oliveira, a guerreira negra que combateu os portugueses na Ilha de Itaparica.
Em janeiro de 2005, minha pauta era descobrir quem era a mulher que seria homenageada pelo Blocão da Liberdade, agremiação afro de Salvador, no Carnaval daquele ano, marcado para o final de fevereiro. A ideia dos meus editores era que a matéria fosse publicada antes da folia de Momo, assim, quem fosse para a rua brincar o Carnaval e assistisse o desfile do Blocão, já ficava sabendo quem era a homenageada – Maria Felipa de Oliveira.
Primeiro passo, entrar em contato com a diretoria do Blocão. Como sempre tem um santo chefe de reportagem que favore os repórteres desesperados, a minha chefe na época, descobriu que a coordenadora do mestrado em Turismo da Uneb (Universidade do Estado da Bahia), professora Eny Kleyde Vasconcelos Farias, tinha uma pesquisa que já durava dois anos sobre Maria Felipa de Oliveira. O objetivo era resgatar sua importância histórica e dar a ela o lugar de destaque que merecia por ser uma das heroínas da independência. Como não podia deixar de ser, grudei na professora Eny e em uma das suas orientandas, a super prestativa Priscila Caldas, feito chiclete. Entrevistas com as duas pesquisadoras, viagens para Itaparica atrás dos descendentes vivos de Felipa, uma tarde inesquecível com a artística plástica Filomena Orge, que recompôs o rosto da personagem a partir de resquícios de memória, literatura e arqueologia, a ajuda imprescindível dos bibliotecários da ilha, e pronto, eu já me sentia Indiana Jones. O que descobri foi isso aqui:
De mito a heroína, a biografia de Maria Felipa:
Um dos primeiros autores a falar sobre Maria Felipa de Oliveira foi o pesquisador Ubaldo Osório, avô do escritor João Ubaldo Ribeiro. Em homenagem à guerreira negra que liderou a resistência aos portugueses durante a Guerra da Independência, Ubaldo Osório batizou a filha, mãe de João Ubaldo, também como Maria Felipa. A personagem aparece ainda no romance Sargento Pedro, do escritor baiano Xavier Marques. Na obra de Ubaldo Osório, A ilha de Itaparica, Maria Felipa é descrita como uma crioula estabanada, alta e corpulenta. Descrição semelhante está presente na obra de Xavier Marques. Esse autor também narra uma surra que Maria Felipa teria dado em um vigia português chamado Guimarães das Uvas.
Outro episódio famoso envolvendo a personagem é a queima de 42 embarcações da frota de Madeira de Melo, o general português que queria dominar a ilha para, a partir de Itaparica, controlar a guerra na baía de Todos os Santos. Maria Felipa, liderando 40 mulheres conhecidas como as vedetas (vigias) da praia, entrou no acampamento do exército português, atacou os guardas com galhos de cansansão e ateou fogo às embarcações, promovendo baixas no exército. Seu grupo de mulheres era conhecido como vedetas porque eram elas que vigiavam a aproximação das embarcações portuguesas e das canoas com as tropas tentando desembarcar na ilha. Maria Felipa, que segundo as pesquisadoras Eny Kleyde e Priscila Caldas, devia ter uns 20/ 22 anos na época da guerra, subia nas árvores para fiscalizar o horizonte.
Na época em que escrevi a reportagem sobre Felipa, seu nome havia deixado de ser clandestino havia pouco tempo. Antes do início da pesquisa, em 2003, moradores da ilha que conheciam sua história passada de geração para geração, tinham medo de sofrer represálias ao citar a heroína que, se por um lado era motivo de orgulho, por outro, por ser negra, mulher e pobre, era descrita como bandoleira pelos representantes da elite. Lembro que uma das bisnetas dela, ainda viva naquela ocasião, dona Zizi, acreditava que seria presa se contasse para estranhos as façanhas de sua antepassada.
De 2005 para cá, o que se sabe sobre Maria Felipa não se alterou tanto. As pesquisadoras que estudaram a vida da personagem tiveram de fazer um trabalho de reconstituição histórica em que não faltaram documentos raros, garimpados em arquivos dentro e fora da ilha, mas não desmereceram a memória popular e é no inconsciente coletivo que repousa boa parte da sua trajetória.
O atestado de óbito de Maria Felipa, datado de 04 de janeiro de 1873, dá uma dimensão de que após a luta da Independência, ela continuou tocando sua vida de marisqueira na ilha, até morrer. Antes do documento ser encontrado por Priscila Caldas, no cartório de Maragogipe, cidade do recôncavo baiano, acreditava-se que Felipa havia morrido na guerra. No entanto, comprovou-se que ela sobreviveu e teve uma filha, também chamada Maria Felipa, que era parteira, a avó de dona Zizi.
Mas o ano exato e as circunstâncias do seu nascimento continuam um mistério. Ninguém sabe por exemplo, se foi uma negra alforriada, uma escrava ou se nasceu livre. Sendo que a última hipótese é a mais provável, devido ao fato de ter se oferecido como voluntária para espionar as tropas portuguesas e por sua atuação na resistência. Pela descrição física, acredita-se que descendia de africanos do Sudão.
O episódio da santa
Na reconstituição da vida de Maria Felipa de Oliveira, existe ainda um episódio de bravura que envolve a defesa de uma antiga imagem de Nossa Senhora da Piedade. Trazida para a ilha e depositada em um nicho na praia pelo Visconde do Rio Vermelho, Nossa Senhora da Piedade era uma espécie de protetora maior dos pescadores, marisqueiras e de toda a população pobre da ilha. Antes de ir pescar, quando os filhos nasciam, na hora da morte, os ilhéus rogavam à santa um socorro. Existem lendas em Itaparica que dão conta de que Nossa Senhora, em pessoa, até entrou na batalha em defesa dos ilhéus e contra os portugueses. Lendas a parte, a verdade é que quando o visconde morreu, seus descendentes quiseram tirar a imagem do seu nicho na pedra, onde ela já estava por gerações. Adivinhem quem enfrentou os soldados da polícia para impedir que os ilhéus perdessem sua padroeira? Exato, Maria Felipa. Ela e suas seguidoras se postaram diante da imagem e não teve quem tivesse coragem de tirar Nossa Senhora da Piedade do seu lugar. Aliás, a santa ainda está lá, dizem os itaparicanos, no altar da capela construída em honra da padroeira.
Capoieira mata um, zum zum zum
Na memória coletiva da ilha, a figura de Maria Felipa é confundida com a da capoerista Maria Doze Homens, que tem esse apelido por ter derrubado doze marmanjos numa roda. Em comum, as duas personagens tem o fato de serem capoeiristas, jogarem o brinquedo de Angola no antigo Cais Dourado (Mercado do Ouro), a corpulência e a valentia das poucas descrições que sobreviveram ao esquecimento do tempo e o fato de se chamarem Maria. No entanto, ainda não ficou provado que as duas são a mesma pessoa.
Na ficção, acredita-se que os feitos de Maria Felipa de Oliveira inspiraram João Ubaldo Ribeiro a criar Maria Da Fé, personagem de Viva o Povo Brasileiro – romance ambientado em Itaparica; enquanto Jorge Amado, inspirado em Maria Doze Homens, teria criado Rosa Palmeirão, personagem do romance Mar Morto.
O que se sabe de real sobre Felipa é que ela remava sua canoa até o Cais Dourado, para jogar capoeira, e que nas rodas, ficava sabendo das novidades sobre a guerra, levando as informações de volta à resistência em Itaparica. E sobre Maria Doze Homens, especula-se que tenha sido companheira de outro capoeirista famoso, o Besouro Cordão de Ouro (também conhecido como Besouro Mangangá). No entanto, como boa parte dessa história antiga da Bahia foi reconstituída com base na memória dos mais velhos, é difícil estabelecer o limite entre fato e ficção, porque a memória é uma das mais traiçoeiras habilidades humanas.
O que aprendi na época em que descobri a existência de Maria Felipe é que o Brasil já tem versões oficiais demais da sua história e também sobram por aqui heróis elitizados que bastam para encher dezenas de enciclópedias. A reconstrução da memória cultural deste país precisa destacar a participação de pessoas do povo, que lutaram pela sobrevivência daquilo que acreditavam (suas famílias, seus deuses, sua dignidade, o direito à liberdade, por um tento, por comida, por suas tradições). Como diz a escritora Ana Maria Machado, somos o resultado da mistura de três etnias (no mínimo) e não há mais justificativas para que nossas heranças culturais, étnicas e históricas sejam tratadas de forma desigual.
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Fonte: Reportagem Guerreira da Ilha, de autoria da jornalista Andreia Santana, publicada em 20 de fevereiro de 2005, no caderno Correio Repórter, edição de domingo do jornal Correio da Bahia (atual Correio*) – Salvador – BA".