A foto do primeiro crachá, a gente nunca esquece
Por Chagas Botelho Em: 15/01/2023, às 12H31
[Chagas Botelho]
Esta semana no ônibus, eu e um senhorzinho de sessenta e poucos anos de idade dividimos o mesmo assento. Não perguntei seu destino e nem o seu nome. Sua prosa era interessante. Na trepidação da condução, dizia ele que os coletivos de hoje eram parecidos com os de sua época de jovem, isto é, de péssima qualidade. De fato, a coisa só piorou, sentenciou desapontado.
Entre 1975 e 1985, continuou a narrativa, foi motorista da empresa Marimbá. Fazia linha de Teresina à Parnaíba. Não chegava a Luís Correia, seu ponto final era na capital do Delta. Era um sufoco o final de cada viagem. As condições, tanto de BR como de ônibus, eram precárias. Porém, havia vantagens, como, por exemplo, o fluxo de poucos veículos nas estradas e a educação dos passageiros. Isso era muito compensador. Lembrava-se com lágrimas quase nostálgicas.
Trabalhar na Marimbá foi um bálsamo, seguiu com sua prosa distinta. Era o seu primeiro emprego. Tinha lá seus 18 a 19 anos de idade. Apesar da dureza das viagens, o ofício era de status. E como era jovem, tudo lhe prevalecia, ou quase tudo. Mostraria-me seu crachá, que ainda guarda com zelo, caso estivesse com ele. Quer dizer, mostraria apenas o crachá, mas tamparia a foto, pois não era digna de exibição. Nela, estava muito feio. Parecia um pinto depenado. Riu zombeteiro.
Em nossa despedida, perguntei-lhe se podia tirar uma selfie. Que escrevia crônicas e que gostaria de contar sua história. Com uma foto de capa, a narrativa soaria verdadeira. Ele, meio ressabiado, me respondeu: “Conte sem foto, pode contar. Mudei muito, estou mais bonito, embora ainda pareça não com um pinto, mas com um galo velho e depenado”. Não insisti. Desembarquei e fui embora pensando em seu crachá. Na imagem pregada àquela identidade trabalhista.
Aí, lembrei-me da foto estampada em meu primeiro crachá. Inesquecível. Na admissão, a empresa solicitou uma 3 × 4. Tirei-a no Photo Rick, no bairro em que morava. Eu tinha também lá os meus 18 e 19 anos de idade. E eu só continha pele, osso e feiura. Muita feiura. Mas não podia perder o emprego por conta de uma fotografia. Entreguei-a ao RH. Quando me entregaram o crachá confeccionado, ri de mim mesmo.
É, meu caro Washington Olivetto, gênio da publicidade e criador da peça publicitária “Meu Primeiro Sutiã”, realmente a gente nunca esquece. No caso das moças o sutiã, e no caso dos moços, o crachá. Assim como a do senhorzinho do ônibus, a foto do meu primeiro crachá nunca caiu no esquecimento. Impossível. Ela é muito marcante. Quando a olho, ao resgatá-la do fundo do baú, me recordo de um dizer de Mário de Andrade. O pai de Macunaíma dizia assim sobre uma fotografia rota:
“Às vezes, quando espio esse retrato, eu me perdoo e até me vem um vago assombro de chorar. De dó. Porque ele denuncia todo o sofrimento dum homem feliz”.
Obs: Não vá ri do meu retrato