A edificação do amor


[Chagas Botelho]

Era início de domingo de Páscoa. Naquele dia santo, o pai cumpriria plantão. A profissão de vigilante, não lhe dava trégua. Ou trabalhava (mesmo no feriado), ou seria engolido pelo mar de contas. E, convenhamos: ser sucumbido pela alta maré de notas promissórias, não estava em seus planos. Antes de partir para a lida, beijou a doce esposa e o filho amado, ambos dormiam sob a manta dos arcanjos. Por um instante, sentiu-se desencorajado a sair de casa. Pensou na enorme dificuldade da condução, ainda mais numa manhã como aquela de poucos ou nenhum ônibus. 

Olhou pela janela semiaberta, e viu lá fora, um pedaço de céu, cor de chumbo estendido. Sorveu o hálito frio matinal e o seu esmorecimento se refez. O tempo nublado que fazia, era um convite tentador para voltar à cama. Com certeza, o lençol que cobria o corpo jovial da mulher, estava quentinho feito pãozinho na chapa. Mas, não podia retornar ao quarto tentador. Precisava obedecer aos ossos do ofício. Dependia dele. Além do mais, emprego estava difícil, refletiu. Na atual conjuntura, uma colocação em qualquer firma era tão rarefeita como salvaguardar uma semana pascal — assombrou-se com os desajustes econômicos. Afinal, era melhor um pouco de tostão do que tostão algum. 

Outra vez, deu vontade de permanecer em casa. Fincado no seio familiar. Faria café quentinho e beiju amanteigado e levaria para a esposa que, àquela altura, em sono reparador, estaria sonhando tangendo as ovelhinhas para dentro do cercado. A decifração desse sonho era que ela desejava uma vida abundante e sossegada. Ao filho, como o mundo dele era de mistura, providenciaria seu desjejum predileto: Nescau misturado ao leite e ao açúcar. Depois de tudo, prepararia o almoço domingueiro. 

Não, não e não. Pararia de imaginar essas coisas que pareciam inacessíveis. Sabia que o desejo assaltava seu coração, mas não podia deixar de trabalhar. Já pensou enganar o chefe dizendo-lhe que amanhecera com virose? Ou que batera com a cara na vidraça e que por isso precisaria repousar naquele dia bíblico? Não. Outro não expansivo. Nada de mentiras. Se a folhinha do calendário marcava sua presença na escala, era dever seu cumprir. 

Recompôs-se da indisposição momentânea, levou a mochila às costas, e antes de atingir o limiar da porta, o filho, que acabara de acordar, ainda sonolento e com os olhinhos semicerrados, foi ao encontro do pai. Esticou a mãozinha em sua direção, como se lhe pedisse a benção, e com a voz fanhosa lhe perguntou: “já vai trabalhar, papai?”. Este, desmoronado em emoção, meneou a cabeça com um sim. 

O menino, agora um pouquinho desperto, completou com entonação religiosa: “bom trabalho, papai. Vá em paz, e não esqueça: Jesus, o filho de Deus, nesse dia que ressuscitou para o mundo, abençoará a todos nós”. Comovido e quase em lágrimas, o trabalhador agachou-se, impôs suas duas mãos calosas nos ombrinhos do filho e abraçou-o apertado. Chegou a sentir o seu coraçãozinho a bater acelerado como a de um passarinho e lhe sussurrou ao ouvido: “filhinho, neste dia do Cristo redivivo, papai vai, mas volta. Guarde um pouco de torta para mim, que lhe trarei um ovo de páscoa gigante”. Saiu para o batente com a certeza de que uma criança edifica o amor de um homem.