A DECORAÇÃO DO PALÁCIO
Por Rogel Samuel Em: 11/02/2022, às 21H55
Sim, sou eu um velho de um outro século e ali vivi, observando, aprendendo e comendo durante o longo daqueles anos todos no círculo e em torno daquela povoação de objetos e móveis antigos que descreviam monstros consumidores: como na cômoda veneziana a visão da atividade sexualizada da imagem; no armário de Boulle cenas de caça com javalis do consumo e cães mastigando sangrentas aves abatidas a tiros pelo Duc de Chartres e outros cavaleiros fidalgos na idiotia de vistosas calças vermelhas e botas pretas; no silêncio rigoroso do gabinete inglês; na dinâmica, na morfologia prostituta do divã de Delanois; na unidade e variante elíptica do canapê - e nos cipós, íris, cardos, insetos estilizados, poliformes, incorporando-se aos móveis e às linhas dos painéis franceses num delírio neo-rococó como não quis a natureza: estátuas sobre lambrequins, rocalhas e rosáceas ecléticas, urnas nas cimalhas dos balcões simbolizando a energia, a ontologia e o desejo do capitalismo de tudo consumir, de tudo gastar, de tudo produzir, de tudo poupar e de tudo faltar e apropriar-se, transbordando e abortando na loucura, na miséria e na morte - cariátides, capitéis, folhagens da selva - o pequenino Pierre Bataillon comeu e consumiu e fez em detritos toda a sua imensa fortuna na degustação de suas mobílias suntuosas e amontoadas e sem uso, no processo da esquizofrenia desejante e reprodutora, no fluxo de sucção de sua fina boca desumanizada para pôr fim ao exagerado dos seus lucros surpreendentes, no autofágico prazer do mínimo consumo diário de seu capital miraculoso, sangrento e luxuriante para transplantar ali a qualquer custo todo espírito do humanismo europeu que se deslocava em navios fretados, trazidos, no embaraço dos seus belos e artísticos objetos inúteis, de uma arte vã, fútil e suicida porque improdutiva, insaciável e escrota. Tal é a ironia daqueles esforços feitos a fim de engastar no horizonte os filamentos de ouro e tomar mais nítida a impressão de distância, para emporcalhar de ouro a empestada história - em doença, em loucura, em mortes e crimes impunes e imperiais (vários povos desapareceram ali) nos critérios de uma singular estética do capital, nos vazios e nos inócuos de um paganismo coquete, amoral e moderno.