A crônica memorialista de Afonso Ligório Pires de Carvalho
Em: 11/01/2004, às 10H08
Dílson Lages Monteiro(*) “Texto envolvente, gracioso, motivador de percepções muito ricas, sensoriais e coloridas, com o uso mínimo de adjetivações e descrições”. As palavras são de Gilberto de Abreu Sodré de Carvalho em apresentação de “Outros Tempos” (Editora Thesaurus, Brasília, 2002), último livro do piauiense Afonso Ligório Pires de Carvalho, que há vários anos reside em Brasília, onde atua na imprensa e no magistério. Ao prefaciar o livro, Abreu Sodré põe relevo ao estilo do autor, centrando o olhar na perícia de Pires de Carvalho para “atender ao agrado estético que deve ao leitor”. Sodré enfatiza esse ponto de vista aludindo à objetividade e à simplicidade da linguagem, bem como à identificação afetiva com os temas tratados. Endossar o pensamento do prefaciante é sensato – e o que pretende a leitura aqui em processo – posto Afonso Ligório construir seu livro de memórias (sim, Outros Tempos se constitui em livro de memórias) de maneira personalista (atitude que demanda por si só preocupação estética). Personalismo colorido, sobremodo, pela associação de três categorias: a memória, a crônica e a história. Outros Tempos exprime-se como resgate da história do autor, de seus antepassados, de aspectos de seu estado natal. O fluxo da memória, contudo, não se encarcera em lembranças restritamente pessoais; pelo contrário: o que se lê, por exemplo, é um panorama do Piauí dos séculos XVIII e XIX; de Teresina na década de 1940: 1. O Parnaíba - “O fascínio do rio tornava-se maior quando as chuvas cessavam e as seca fazia baixar o nível das águas até mostrar coroas ou bancos de areia que se ofereciam para os moradores como irresistíveis praias. (...) Ali, o povão fazia sua grande festa anual. Armava barracas para a venda de caldo de cana, bolos, frutas, amendoins, carne-seca, paçocas e bebidas alcoólicas” (p. 90); 2. Os cinemas - “O Royal podia ser considerado, na época, talvez a mais mal cuidada casa de projeção de filmes do país, com uma platéia também por demais bagunceira (...) O Olímpia, na praça Rio Branco, de propriedade da firma Martins e Omatti, contava com freqüência mais selecionada. O Teatro 4 de Setembro estava arrendado a um cidadão igualmente de origem árabe, com o nome brasileiro de Alfredo Ferreira. Ainda no início dos anos 40, foi aberta nova casa de exibição de filmes, o Rex, na praça Pedro II, dotada de “moderno sistema de som”, alta novidade técnica. Em seguida, o grupo Cícero Ferraz construiu o Cine São Luiz, casa de exibição mais sofisticada, defronte ao Clube dos Diários” (p.85); 3. O rádio e a publicidade – “Embora o rádio existisse no país desde o início dos anos 20, a capital do Piauí só dispunha, até o final da década de 40, de um serviço de alto-falante, chamado de Rádio Amplificadora de Teresina, com transmissão para receptores instalados nas praças Rio Branco e Pedro II. Uma loja de tecidos, a Rianil, na praça Rio Branco, simultaneamente pôs em funcionamento outro serviço de alto-falante para fazer concorrência à pioneira Amplificadora” (p.75); 4. A cidade em chamas – “Em 1941, a população (sobretudo moradores da periferia), foi surpreendida com a ocorrência de incêndios em 450 casas de palha, acontecimentos que se repetiram nos anos seguintes e muito iriam afetar a vida da cidade. Junto com os incêndios, começaram a falar de atrocidades praticadas pela polícia, antes tão eficiente e ao mesmo tempo pacata” (p.63). Tal panorama, elaborado não apenas para exibir um mundo interior, mas, principalmente, pintar o retrato nu de um tempo: o tempo de sua infância e adolescência, o qual não significa apenas sua infância e adolescência, porém, os próprios acontecimentos sociais da época em foco. Isto é tão notório que, mesmo em se tratando de um livro de memórias, o autor traz nas páginas finais da obra referência bibliográfica. A bibliografia, desse modo, prova a intenção de realizar obra de reminiscência que não se resume a emoções individuais, nem tampouco a assuntos de foro íntimo, de interesses tão somente familiares. Também provoca fascínio em Outros Tempos o lirismo inerente ao modo de dizer do autor. Lirismo seco, enxuto e camuflado, em passagens como a que descreve a bravura das águas do “Velho Monge” durante a época das chuvas: “Nos períodos de chuvas pesadas nas cabeceiras, as águas se avolumavam, turvas, e deslizavam velozes, alargando o leito, a conduzir árvores e outras vegetações, cavalos e bois mortos. O rio parecia um ser vivo de barriga inchada, a papar o que encontrasse no caminho e a promover desordens em suas margens. Em Teresina, a população, a conveniente distância, assistia receosa, mas deslumbrada, o espetáculo das águas em fúria”(p.90). Outro aspecto fascinante em Outros Tempos é que Pires de Carvalho, na construção de suas memórias, opta pela crônica, reflexo da preocupação com a objetividade e com a história. Nesse sentido, retoma a crônica na sua feição tradicional – dando ao texto conotação histórica, traço que, segundo Massuad Moisés, assinala o gênero em sua versão primeira (no caso dos textos da obra em discussão, uma historicidade que não tenta anular as marcas da subjetividade). Traço magistralmente exercitado, por exemplo, pelo português Fernão Lopes (século XV), que inovou a crônica de então, ao impedir que ela se vertesse unicamente em relato de fatos. Em Outros Tempos, de Afonso Ligório Pires de Carvalho, memória, crônica e história fundem-se para denotar um lirismo, além de pedagógico, existencial e antitético, porque ao mesmo tempo pessoal e universal; cujo objetivo é, acima de tudo, abrir seu mundo interior e penetrar no universo alheio. (*)Dílson Lages Monteiro é professor e editor de Entretextos.