A CHIBATA, O ANJO E O JUMENTO
Por Elmar Carvalho Em: 31/01/2011, às 20H38
ELMAR CARVALHO
O jumento, talvez pela sua importância e simpatia para o nordestino, tem vários apelidos, alguns afetivos e graciosos, outros nem tanto, já declinados pelo imenso Luiz Gonzaga, o rei do baião, que também lhe homenageou com a música “O jumento é nosso irmão”, de sua autoria e de José Clementino.
É um animal dócil e paciente. Segundo a tradição, foi o escolhido para conduzir a Virgem Maria e o Menino Jesus, na fuga para o Egito, evidentemente com a presença de São José, na constituição emblemática da Sagrada Família. Provavelmente tenha sido a sua proverbial docilidade, mansidão e humildade a razão dessa escolha e honraria. Como a maioria desses animais ostenta uma mancha sobre as pás dianteiras, considera o povo simples, na voz da lenda, que essa marca é o sinal milagroso e honorífico do xixi com que lhe ungiu o Salvador, como uma forma de homenagem e gratidão pelo serviço prestado. Depois, encerrando apoteoticamente sua participação na Bíblia, foi o escolhido por Cristo para conduzi-lo em sua entrada triunfal em Jerusalém.
O jumento não chega a ser um animal de grande porte. A sua paciência e beatitude lhe impedem de galgar colocação no ranking dos mais velozes. Só disputa corrida entre seus pares, como, aliás, é o mais justo e lógico. Entretanto, pela sua força e resistência, desproporcionais para o seu porte, considero-o um pequeno trator, com tração nas quatro patas, cujo formato lhe renderam o apelido de “pé de escopro”. Enquanto o seu dono vai procurar fretes para a carroça, nisso gastando muito tempo, o jumento fica pacientemente esperando pelo início do serviço, em alta concentração, como se estivesse imerso em profunda perquirição filosófica. Não sei se dessa atitude é que lhe teria advindo o apelido de professor.
Tem uma voz forte, quase uma trombeta capaz de derrubar as muralhas de Jericó. Apresenta vários timbres, de característica metálica, de rica sonoridade e modulações, como se fora um instrumento musical. Como o seu relincho ocorre em intervalos regulares, ganhou também o apelido de “relógio”. Conta-se até que uma figura ilustre do Piauí, um tanto excêntrica, entusiasmou-se por um jumento de rinchar imponente, altissonante, um verdadeiro primus inter pares. Esse varão de Plutarco comprou o animal, colocou-o numa espécie de gaiola, naturalmente no intuito de se deleitar com o “canto” do asno, que lhe parecia mavioso.
Não sem propósito, conforme se verá a seguir, recordo uma cena cruel, em que um açougueiro rude e algo doentio, talvez portador de uma certa psicopatia, maltratava sem nenhum motivo, pelo menos aparente, um carneiro, que pela sua docilidade e mansidão emprestou o seu nome ao Cristo, chamado o Cordeiro de Deus. Esse ser, dito humano, dava uma pancada com o “olho” do machado na nuca do pequeno carneiro, que estremecia, mas sem emitir uma queixa sequer. O homem, quase dizia o bruto, sorria, e no momento em que o animal se recompunha, voltava a vibrar-lhe outra pancada, e assim sucessivamente. Mesmo correndo sérios riscos, ainda hoje me arrependo de ter ficado inerte, diante do repulsivo e cruel espetáculo, quando poderia haver abordado aquela pessoa, na tentativa de chamá-la à razão.
Quando jovem, mal saído da adolescência, no auge de meu entusiasmo pela vida e pela poesia, escrevi um poema, de que já não me recordo na íntegra, e cuja cópia foi devorada pelas traças, que, juntamente com o tempo rigoroso, são as mais implacáveis críticas da literatura, em que eu dizia que era mentira chamar o burro de burro, pois quem era burro era o cavalo. Hoje, se não fosse uma ofensa para esses híbridos e possantes animais, eu diria que quem é burro é quem maltrata seu próprio jumento, ou seja, quem prejudica seu próprio instrumento de trabalho. Aliás, o jumento é mais do que um simples instrumento, pois é também o próprio trabalhador.
Para dar um melhor condimento a essa crônica, vou apimentá-la um pouco, contando uma rápida anedota verídica do jumento Pimenta, que pertencia aos pais do venerável amigo Elson Antunes. Era o Pimenta, como seu nome está a indicar, um jumento muito esperto e rápido. Muito diligente, não se furtava ao trabalho, e o que tinha de fazer, seja transportar gente ou conduzir cargas, fazia com rapidez. Entretanto, tinha seus caprichos e mudança de humor, e, às vezes, poucas vezes, é verdade, quando “cismava da boneca”, birrava e se amuava. Nessas raras ocasiões empacava e, mesmo açoitado, não tinha quem lhe fizesse avançar. Mas essas ocasionais pirraças do jegue Pimenta são uma exceção, pois o jumento, por princípio e como regra geral, é dócil e diligente.
Ainda de Ribeiro Gonçalves, o mesmo Elson me contou a história “folclórica” que se segue. A caminho do então povoado de Baixa Grande, seguiam Otílio Antunes e um doidinho, de nome Daniel, vulgo Lombada, prestativo e estimado por todos da cidade. O primeiro seguia em seu fogoso corcel, árdego, estradeiro, marchador, elegante em sua locomoção suave; o doidinho montava um jumento lerdo, trotão. Um pouco por troça, Otílio, que foi prefeito do município por duas vezes, insistia para que trocassem de montaria, fazendo ver as vantagens evidentes de seu cavalo. O serviçal sempre respondia que não havia necessidade, que, do jeito que estava, estava bom demais. Depois de muita insistência, fizeram a troca. Quando o doidinho se achou em cima do veloz corcel, deu um “até logo”, diria quase uma “banana”, e disse que o outro só o veria de novo na faveira grande da estrada. Era esta uma frondosa árvore, de densa sombra, que servia de pousada aos viajantes da época, que ali faziam suas refeições e curtiam o sono reparador, para a última etapa da jornada. Essa imponente faveira, que deu conforto, sombra e abrigo a muita gente, sem discriminação alguma, foi estupidamente derrubada por algum imbecil, a quem ela dera, talvez, a sua sombra majestosa e revigorante.
Um jumento serve ao carroceiro durante longas horas, numa jornada trabalhista muitas vezes bem maior do que a prescrita ao ser humano, carregando cargas pesadas, brutais mesmo, e quando a carroça encalha numa vala ou empaca no atoleiro, certos condutores vibram o chicote, sem dó nem piedade, sobre o dorso daquele dócil e indefeso animal, que concorre para o seu sustento e de sua família, levando-o ao estresse, senão mesmo à morte, pelo esforço cruel e insuportável, que o extenua e arrebenta. Chego a ficar com uma vontade secreta de que algum anjo da guarda dos animais arrebatasse o rebenque e o vibrasse com mais intensidade contra o lombo do proprietário impiedoso.
Isso me faz recordar o episódio bíblico em que o Senhor, em represália à desobediência de Balaão, deu-lhe por adversário um anjo com a sua espada desembainhada. Por várias vezes a jumenta que o conduzia conseguiu esquivar-se do anjo, que somente por ela era visto, e nunca por Balaão. Este, sem atinar com o que estava acontecendo, por várias vezes, enfureceu-se contra a sua montaria, e a açoitou com brutalidade. Vendo tamanha injustiça e violência, do profeta contra quem o servia e defendia, o Senhor abriu a boca da jumenta e lhe fez pronunciar as seguintes palavras:
– Que te fiz eu, que me espancaste estas três vezes?
– Porque zombaste de mim; tomara que tivera eu uma espada na mão, porque agora te mataria – retrucou Balaão.
– Porventura, não sou a tua jumenta, em que cavalgaste desde o tempo que eu fui tua até hoje? Costumei eu alguma vez fazer assim contigo?
O profeta respondeu que não, e o Senhor lhe abriu os olhos, fazendo-o enxergar o anjo com a espada desembainhada, e ainda lhe esclareceu que, se não fora o zelo da jumenta, já o teria matado, pela sua perversidade e iniquidade. Balaão se ajoelhou e se arrependeu amargamente.
Quando eu vejo um carroceiro perverso para com a sua alimária, que só lhe faz o bem, contribuindo para o seu sustento e o de sua família, gostaria que um Anjo do Senhor, pusesse na boca do animal espancado as mesmas palavras da jumenta de Balaão, e tomando-lhe a chibata açoitasse rijamente o desalmado, abrindo-lhe a mente ao entendimento do justo, da gratidão e do amor, sobretudo a quem nos ama e nos serve.