A arte de escrever com a bola no pé

[Flavio Moura]

Um dos prazeres do trabalho do editor é corrigir o rumo dos livros. É achar personagens pouco desenvolvidos, enredos que podem ser mais bem costurados, narradores que pedem voz mais convincente, encontrar deslizes sintáticos e gramaticais.

Nesse sentido, editar O drible, de Sérgio Rodrigues, foi uma tarefa simples até demais: o livro chegou pronto, não havia uma vírgula para mexer.

Sérgio é conhecido pelo texto impecável. Nas colunas sobre literatura e língua portuguesa que mantém há anos na imprensa, sempre se fez notar pelo texto fluente, leve e bem acabado. Mesmo quando trata de livros complexos, quando mobiliza um repertório denso da crítica literária, o que aparece na frente do leitor é sempre uma frase limpa, precisa, concreta, capaz de transformar assuntos áridos em argumentos cristalinos.

O drible sintetiza e leva ao extremo esses atributos. As páginas de abertura, inspiradas na cena inicial de Submundo, do americano Don DeLillo, merecem lugar nas antologias da literatura contemporânea: transformam o drible de Pelé no goleiro uruguaio, na Copa de 1970, numa sequência em que cada segundo parece durar uma vida inteira.

A esse começo memorável, Sérgio une um mergulho pelo circuito cultural do Rio de Janeiro dos anos 1960 e 1970 ­— os escritores, a praia, o jornalismo, a boemia — a partir da figura de Murilo Filho, um cronista esportivo de caráter questionável.

Cria ainda um jogador capaz de lances sobrenaturais — Peralvo, aquele que teria sido melhor que Garrincha e Pelé ­—, e o encaixa no meio de uma disputa entre pai e filho que acaba num desenlace cruel.

Publicado pela Anagrama, uma das editoras mais prestigiosas em língua espanhola, prestes a sair pela francesa Seuil, igualmente respeitada, e já bem recebido por parte importante dos principais críticos literários do país, O drible já tem espaço garantido no cânone da prosa brasileira recente. E esse espaço, o prêmio de ontem só fez confirmar.

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Flavio Moura é editor da Companhia das Letras.

 

Publicado originalmente no Blog da Companhia das Letras,