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VIVER ATRAVÉS DO ZEN

VIVER ATRAVÉS DO ZEN

D. T. SUZUKI

O que significa "viver através do Zen"? Não estamos todos vivendo através do Zen, no Zen e com o Zen? Podemos escapar disso? Embora muito nos esforcemos para escapar dele, somos como aqueles pequenos peixes apanhados em quantidade; a luta não tem proveito algum, e termina por nos ferir gravemente.

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Visto de outro modo, "viver através do Zen" é como pôr outra cabeça sobre a que nós já tínhamos antes mesmo de nosso nascimento. Qual a utilidade, então, de falar sobre isso?

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Mas é da natureza humana perguntar sobre questões evidentes por si mesmas e, freqüentemente, nós nos encontramos inextricavelmente envolvidos nelas. Não há dúvida alguma sobre o tamanho da estupidez, mas é essa própria estupidez que abre um domínio de cuja existência nunca tínhamos suspeitado até agora. A estupidez é, em outras palavras, a curiosidade, e a curiosidade é aquilo que Deus implantou no espírito humano.

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Provavelmente, o próprio Deus estava curioso por conhecer a si mesmo e criou o homem, e está tentando satisfazer sua curiosidade através do homem.

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Embora possa ser assim, aqui está o título deste livro, Viver através do Zen, e vamos ver o que significa. Para fazer isso, descendemos de Deus, da Vida Divina, e fazemos uso do intelecto ou da consciência humana como se desenvolveu em nós, pois essa é a única coisa que distingue, essencial e caracteristicamente, a nós humanos do resto da criação. O intelecto revela-se, por várias formas.

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        Um mestre disse: "O Zen é como um pote de óleo fervendo" .

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        Outro mestre disse: "Os macacos sobem na árvore e, com suas        caudas, segurando um ao outro, penduram-se do topo".

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        E outro mestre: "É um pedaço de tijolo quebrado".

        Outro ainda: "Eu levanto minhas sobrancelhas, movo meus olhos".

Um monge jardineiro aproximou-se certa vez do mestre e manifestou-lhe o desejo de ser iluminado no Zen. O mestre disse: "Venha novamente quando não houver ninguém por perto, e eu lhe direi o que ele é". No dia seguinte, o monge chegou outra vez, observou que não havia ninguém perto e implorou-lhe para revelar o segredo. Disse o mestre: "Aproxime-se mais de mim", e o monge chegou mais perto dele. Disse então o mestre: "O Zen é algo que não pode ser transmitido por palavras".

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Conta-se uma história semelhante de Suibi. Certa vez ele foi abordado por Reijun (d.C. 875-919) de Seiei-san que desejava saber sobre o segredo do Zen, como fora levado para a China por Bodi-Darma. Disse-lhe Suibi que o segredo lhe seria transmitido quando não houvesse ninguém nas proximidades. Quando ele voltou, Suibi desceu de sua cadeira e levou o ansioso indagador para debaixo da alameda de bambus onde tudo estava quieto. Suibi disse, apontando os bambus: "Veja como estes são compridos e estes são curtos".

Estranhas definições essas, e não há concordância, nem ao menos como tentativa, entre elas. De fato, há tantas definições como há mestres, desde o início do Zen. E sobre o Buda, então, que é considerado como o primeiro mestre? Têm elas nutrido o único e o mesmo Buda?

Quando perguntaram a um mestre a respeito de quem era o Buda, ele respondeu: "O gato sobe no poste". O discípulo confessou sua inabilidade em compreender o sentido dessas palavras e o mestre disse: "Se você não compreende, pergunte ao poste".

Um monge perguntou: "O que é o Buda"?

Reikwan de Useki-san pôs a língua de fora e mostrou-a a ele.

        O monge fez uma reverência.

        O mestre disse: "Para com isso; o que você viu ao fazer sua reverência"?

Replicou o monge: "Tudo isso deve-se à bondade de seu coração, pois mostrou-me o Buda por intermédio de sua língua".

        Disse o mestre: "Ultimamente tenho uma fenda na ponta de minha língua".

        Um monge perguntou a Keitsu de Kwaku-san: "Quem é o Buda"?

        O mestre esbofeteou-o e o monge o mestre.

        Disse o mestre: "Há uma razão para você me esbofetear, mas não há tal razão para eu tê-lo esbofeteado".

O monge não soube responder, conseqüentemente o mestre esbofeteou-o novamente e correu-o para fora da sala.

Yero perguntou a Sekito (700-790) : "Quem é o Buda"? Sekito disse: "Você não tem a natureza do Buda". "E sobre aquelas criaturas serpeantes, então"?

"Elas possuem a natureza de Buda".

"Se é assim, como é que eu, conhecido como Yero, não possuo a natureza do Buda"?

        "O mestre disse: "Justamente porque você não reconheceu" .

Um monge perguntou a Gi-an de Tanka-san: "Quem é o Buda"?

"Quem é você"? Perguntou o mestre.

"Se é assim, não há nenhuma diferença"?

"Quem lhe disse isso"?

O poste ou o pilar freqüentemente aparecem no mondo [ Forma de perguntas e respostas do Zen] do Zen, pois é um dos objetos comuns à vista no mosteiro. Um monge perguntou a Sekito: "Qual é a idéia da visita de Bodi-Darma a este país"? Disse o mestre. "Pergunte ao poste". O monge confessou que não comprendera. O mestre disse: "Estou em pior situação quanto a isso".

Das respostas dadas às perguntas "O que é o Zen"? e "Quem é o Buda"? podemos avaliar qual a espécie de ensino do Zen. A forma em que o Zen concebe o Buda não permite nenhuma uniformidade da parte de seus seguidores, e o método adotado por cada mestre para fazer com que seus indagantes compreendam o que ou quem ele é tende a um absurdo que vai além da inteligência humana. Embora o Zen possa afirmar ser uma forma, ou mesmo a essência, do Budismo, isto não parece levar à mais leve indicação do que realmente seja.

Se formos julgar o Zen do ponto de vista do nosso senso comum, sentiremos o chão desaparecer sob nossos pés. O nosso assim chamado modo racionalista de pensar aparentemente não tem uso para avaliar a verdade ou a falsidade do Zen. Ele está inteiramente além da percepção da compreensão humana. Portanto, tudo que podemos declarar sobre o Zen é que sua singularidade está na sua irracionalidade ou no seu ultrapassar da nossa compreensão lógica. Na verdade, a religião geralmente tem algo que não pode ser entendido apenas pela lógica e recorre a uma revelação ou aceitação pela fé. Por exemplo, a existência de Deus, que criou o mundo do nada, não é plausível logicamente ou demonstrável experimentalmente só podendo ser aceita pela fé. Mas a irracionalidade do Zen não parece ser da mesma ordem da chamada irracionalidade religiosa.

O que possui o Zen, perguntamos, que afirma ser a quintessência do Budismo, para tratar da subida dos macacos na árvore ou na escalada dos gatos no poste? O que tem ele para tratar do elevar das sobrancelhas de alguém ou do abrir e fechar dos olhos? Se pedimos ao poste para explicar o que significa o subir nele, deseja ou pode o poste explicar-nos isso? O que realmente ganhamos dessas declarações feitas por mestres do Zen?

É verdade que todos eles falam a respeito do Buda e da verdade do Zen, mas, evidentemente, seus Budas não vão além do gato e do poste, e nada há neles que nos faça pensar em santidade ou algo sagrado, ou santificado, idéias que naturalmente associamos ao estado do Buda, ou o objeto de culto religioso. O gato não está envolvido em um halo, o poste não tem semelhança alguma com a Cruz.

Quanto ao oferecimento do mestre em divulgar o segredo do Zen a seus discípulos logo que estivessem a sós. pode uma verdade espiritual ser comunicada privativamente de uma pessoa para outra? Quando o discípulo apresentou-se ao mestre, foi-lhe pedido que se chegasse mais para perto, como se o segredo devesse ser sussurrado pelo mestre.

Mas nenhum segredo chegou aos ouvidos dos discípulos, exceto que não devia ser comunicado pela fala humana. Na realidade foi assim? Havia um segredo além desse? O mestre não enganou a si próprio quando afirmou que não havia segredo algum no Zen que pudesse ser comunicado por palavras? E o discípulo não se contradisse quando se comportou como se ignorasse a verdade do Zen? O episódio todo parece ser apenas uma farsa. Mas será mesmo? Não há nada profundamente espiritual que, na verdade, esteja escondido do intelecto, mas revelado no comportamento do discípulo, assim como o que não foi falado pelo mestre?

No segundo caso, onde o segredo do Zen é novamente o assunto, o mestre não disse que não poderia expressá-lo por meio da linguagem humana. Simplesmente apontou para os bambus e deu sua apreciação quanto ao seu comprimento; ele não disse uma palavra acerca da mensagem secreta que supostamente teria vindo para o Reino do Meio por intermédio de Bodi-Darma. Algum segredo foi aqui revelado? Os bambus aparentemente não transmitem nada para Suibi ou para Reijun. Mas, de acordo com O Registro, Reijun disse ter sido um lampejo da verdade do Zen. O que foi isso, então? Os bambus menores são curtos, os bambus maiores são compridos, e permanecem verdes durante todo o ano e ficam eretos, balançando-se suavemente quando uma brisa passa sobre eles.

Baso (-788), um dos maiores mestres do Zen, da dinastia T'ang, foi certa vez interpelado por um monge que lhe perguntou: "Deixando de lado as quatro proposições e indo além de uma centena de negações, Mestre, por favor diga-me qual é o significado da vinda de Bodi-Darma para a nossa terra".

Bodi-Darma ( -528) tradicionalmente é considerado como o primeiro patriarca do Zen na China; isso significa que ele é considerado como aquele que primeiro trouxe a idéia do Zen da índia para a China, na primeira parte do século VI. A pergunta: "Qual é o significado de sua vinda para a China"? vem a ser o mesmo que perguntar: "Qual é a verdade do Zen-Budismo"? Ora, o monge que fez a pergunta desejava saber se havia alguma coisa que fosse especificamente conhecida como a verdade do Zen, o que está absolutamente além do entendimento humano. As quatro proposições são: (1) afirmativa, (2) negativa, (3) nem afirmativa nem negativa, (4) tanto afirmativa. como negativa, "centena de negações", que na realidade se refere a cento e seis declarações negativas no Lankavatara sutra, significa uma negação por atacado de toda declaração que possa ser feita sobre qualquer coisa.

A pergunta do monge, portanto, equivale a perguntar sobre uma verdade absolutamente última, se poderia haver alguma assim, quando é categórica e consistentemente negado. O Zen está, na realidade, na posse de tal coisa? Se é assim, o monge procurava obter isso do mestre. Na. terminologia cristã, tal verdade última é Deus ou a Divindade. Quando alguém vê um ou outra, uma busca espiritual ou religiosa chega a um fim; uma alma inquieta encontra seu lugar de repouso final. A pergunta do monge não é realmente uma pergunta infundada; ela brota dos recessos mais profundos de seu coração que busca a verdade. Qual foi a resposta de Baso? Foi esta:

"Estou cansado hoje e não posso contar-lhe. Fale com Chizo (Chihtsang) e pergunte". O monge foi até Chizo, um dos discípulos chefes de Baso, e repetiu a pergunta. Disse Chizo: "Por que não pergunta ao próprio mestre'?"

O monge replicou: "Foi o próprio mestre que disse para vir aqui e lhe perguntar sobre isso." Chizo disse: "Estou com dor de cabeça hoje e não lhe posso contar nada a nesse respeito. Vá ao Irmão Kai (Hai) e pergunte." O

monge dirigiu-se a Kai e repetiu a pergunta. Disse Kai: "Realmente, não compreendo nada disso." O monge finalmente voltou a Baso e relatou tudo o que acontecera. Baso observou d seguinte: "Chizo tem a cabeça branca, enquanto que a de Kai é preta."

O que podemos deduzir deste "incidente" ou desta "história" (Yin-Yuan) do Zen, aparentemente, é apenas o sentimento de cansaço do mestre, sendo que um dos dois discípulos tinha uma dor de cabeça e o outro não compreendia, e, finalmente o comentário displicente do mestre sobre os cabelos grisalhos de um e o pretume dos do outro. Todos estes são incidentes comuns de nossa experiência diária, que parecem não ter muito a ver com objetos tão profundas como a verdade, Deus ou a realidade. E se eles todos concordam que o Zen poderia dar-se ou se daria ao que busca fervorosamente a verdade, depois de muitos anos de sérias investigações, valeria a pena realmente estudar o Zen? A mensagem secreta do Bodi-Darma que veio para a China no século VI pondo em risco sua vida sobre as ondas violentas dos mares do sul - ela não vai algo além disso?

O que quer que seja, vemos que a singularidade do Zen não consiste apenas na sua óbvia irracionalidade, mas também em seus métodos, na maioria incomuns, de demonstrar a verdade. A respeito da irracionalidade, na sua maioria, podem as classificar as proposições religiosas. Por exemplo, tomemos a afirmação cristã de que Deus enviou seu filho único para salvar a humanidade da condenação final. Para dizer o mínimo, isto é irracional. Supõe-se que Deus seja onisciente e onipotente e devia estar completamente cônscio do destino do homem ao criá-lo, se assim é, por que se deu ou teve de se dar ao trabalho de sacrificar seu único filho gerado para salvar

a humanidade pecadora? Deixando de lado sua onisciência, não poderia ele provar sua onipotência por outros meios que não o de dar seu filho único para ser sacrificado na Cruz? Se Deus fosse racional como o são os humanos, ele não precisaria ser tão irracional a ponto de se transformar em um de nós para provar seu infinito amor de pai para conosco. Estas e muitas outras interrogações irracionais podem ser levantadas contra a concepção cristã de Deus e seu plano de salvação.

Pode-se dizer que as irracionalidades do Zen são de ordem diferente das do cristianismo, porém são tão irracionais apenas quanto ao que se refere à ilogicidade. Diz o Zen: "Seguro uma espada em minhas mãos e fico com as mãos vazias. Monto em cima de um boi e estou caminhando a pé." Isto não é tão ilógico e contra a experiência humana como quando os cristãos afirmam que Cristo levantou-se de sua tumba três dias depois da crucificação?

Não há dúvida alguma de que o método do Zen de tratar seus assuntos é único na história do pensamento. Não usa idéias ou conceitos; apela diretamente para a experiência concreta. Se o monge não consegue despertar em si próprio a consciência da verdade assim transmitida da maneira mais viva, pessoal e prática, ele tem de esperar por outra oportunidade. Enquanto isso, pode ir percorrendo a imensidão do pensamento abstrato.

Todas as outras religiões ou ensinamentos espirituais tentam provar a verdade de suas irracionalidades por meio, de dedução ou indução, através de abstração, racionalização e postulação; mas os mestres do Zen se recusam a fazer isso. Eles apenas põem em liberdade sua "ação direta" e dão suas lições da forma mais efetivamente pessoal. Se o monge não pode captá-la no momento, o mestre espera pela próxima ocasião, quando o próprio monge sente um anseio interno de abordar o mestre, desta vez, provavelmente, com outra forma de. pergunta.

Quando Suiryo abordou Baso com a pergunta: "Qual é a verdade do Zen assim convertida por Bodi-Darma?" o mestre golpeou-o, derrubando-o. Esse tratamento rude despertou-o para a verdade do Zen. Quando ele restabeleceu seu equilíbrio, bateu as mãos, rindo alto e disse:

"Que estranho! Todos os samadis, toda a profundidade inesgotável que aparece nos sutras são, de uma só vez reveladas no ponto de um único fio de cabelo!" Então, ele faz uma reverência para o mestre e retira-se. Posteriormente, ele costumava dizer: "Desde que experimentei o pontapé de Baso, não pude parar de rir." Quando lhe perguntavam qual era a verdade última do budismo, ele simplesmente esfregava as mãos e ria alto.

Há no Zen uma grande quantidade de atos violentos, bofetadas e golpes com a vara. Quando um monge é tratado de maneira tão inesperavelmente sem-cerimônia, muitas vezes ele abre os olhos para a verdade do Zen. Mas, freqüentemente, ele segue sem dizer, o golpe não é proveitoso e deixa o indagante ainda num dilema.

Tokusan (780-866), um grande monge da última disnatia T'ang, destacou-se por balançar seu bastão. Seu dito predileto era: "Não importa o que você diga, seja 'sim' ou 'não', você obterá somente as mesmas trinta reverências." Certa vez, ele fez um sermão em que dizia: "Se você pergunta, é culpado; se não pergunta, também está errado." Um monge dirigiu-se a ele preparado para fazer sua reverência, quando Tokusan bateu-lhe com o bastão. O monge protestou:

        "Eu estava justamente indo fazer-lhe minha reverência, por que esse golpe?"

        "Se eu esperasse que você abrisse a boca, o golpe não teria, absolutamente, serventia alguma", disse Tokusan.

Kotei foi um discípulo do Kisu Chijo de Kosan. Um monge de Kassan veio até ele e, quando ele estava fazendo suas reverências cerimoniais, o mestre bateu-lhe. O monge falou: "Estou aqui para receber sua instrução específica, por que esse golpe, Mestre?" Assim dizendo, ele se curvou

novamente.. O mestre aplicou-lhe outro golpe e levou-o' para fora do mosteiro.

O monge voltou a Kassan, a quem fez um relato completo de sua entrevista com Kotei. Disse-lhe Kassan: "Você entendeu Kotei?" "Não, Mestre", respondeu o mongei Logo após, Kassan observou: "Foi sorte que você não tenha entendido; se isso tivesse acontecido, eu ficaria mudo."

Quando Chosa estava apreciando a lua com um de seus irmãos monge, Kyosan do século IX, este último observou: "Cada um possui isto, e é uma pena que não saibam utilizá-lo de modo completo." Chosa falou: "Posso fazer com que você utilize isto?" Replicou Kyosan: "Tente, ó monge irmão." Em conseqüência disso, Chosa deu um forte pontapé em Kyosan, derrubando-o. Levantando-se do chão, disse Kyosan: "ó meu Irmão monge, você não é realmente como um tigre selvagem."

A literatura Zen narra um grande número de tais relatos que podem assustar, afastando-os, alguns dos não-iniciados. Eles podem pensar que o Zen é apenas uma forma de disciplina cheia de rudeza e de irracionalidade e, provavelmente, muito daquilo é puro contra-senso. A afirmação do Zen de que é a essência do ensinamento budista pode ser mera fanfarronice. Essa crítica talvez estivesse certa se a percepção do crítico não pudesse ir além da superficialidade. Mas o fato histórico é que o Zen tem florescido desde o seu estabelecimento na China, há mais de mil anos, e que ele ainda é, no Japão, uma ativa força. espiritual na formação de sua cultura. É possível concluir, depois disso, que pode haver algo vital no Zen que apele diretamente para as nossas mais profundas experiências espirituais.

II

Outro fator singular no método Zen de ensinar é o que é conhecido como mondo. O discípulo faz uma pergunta (mon) e o mestre responde (to ou do), mas às vezes é ao contrário, e a resposta não se dá sempre em palavras. Pois esse perguntar e responder dá-se na região do pensamento concreto, e não da abstração e do raciocínio. Não há nenhuma troca extensa de palavras entre o mestre e o discípulo, nenhuma argumentação discursiva. O mondo geralmente pára com a sentença do mestre, declaração epigramática, ou sua exibição de força física, e nada leva a um sério desenvolvimento de sutilezas lógicas. Se o discípulo não compreender o mestre imediatamente, ele bate em retirada, e esse é o fim da entrevista pessoal.

O Zen nunca se encarrega da conceitualização. Ele vive numa percepção intuitiva ou estética e sua verdade sempre é demonstrada por meio de contato pessoal, o que é a significação do mondo. O golpear derrubando, ou esbofetear a face, ou vários outros atos de "rudeza" ou violência são o resultado natural de contato pessoal. Pode parecer estranho que o entendimento do Zen surja desses feitos, mas, visto que o Zen não se baseia num raciocínio lógico e numa persuasão conceitual, seu entendimento deve vir da própria experiência pessoal. E deve ser compreendido que a experiência pessoal significa não apenas a experiência do mundo dos sentidos, mas também a daquele dos acontecimentos que tomam lugar no domínio psicológico de uma pessoa.

Rinzai (-867) fez certa vez um sermão para o efeito seguinte: "Há um homem verdadeiro sem um título na massa de sangue vermelho; ele sai e vai através dos portões dos sentidos. Se você ainda não o testemunhou, olhe, olhe!"

        Um .monge dirigiu-se a ele perguntando: "Quem é esse homem verdadeiro sem um título?"

        Rinzai desceu de sua cadeira e agarrou seu cofre ordenando: "Fale, fale!"

O monge hesitou e depois disso exclamou: "Que espécie de avarento sujo é esse homem verdadeiro sem um título!" Assim dizendo, Rinzai voltou para seu quarto.

        A idéia de um "homem verdadeiro sem um título" é bastante clara, bastante geral; mas quando um testemunho de sua presença em cada um de nós é reclamado, Rinzai lança mão não da verbosidade, mas de um encontro pessoal direto. É dada ao indagante a tarefa de testemunhar sua existência tal como se apresenta. Não há dialética abstrata aqui, e sim um fato de experiência viva, repleta de carne e sangue. Quando não podia tê-lo do monge cuja mente estava trabalhando no plano da elaboração intelectual, ele empurrava-o para fora e chamava-o de velho avarento sujo. "O único homem verdadeiro sem nenhum título" virou do avesso para ser um desprezível pedaço de madeira. Este é o destino do racionalista. E é somente nas mãos do mestre do Zen que a "folha insignificante da grama na estrada passa a brilhar na cor dourada do Buda de dezesseis pés de altura." Rinzai, isto é,

o Zen exige isso de cada um de nós.       .

A esse respeito, pode-se dizer que Cristo pertence à. escola do Zen-Budismo, quando ele declara que "A não ser que vós comais comigo a carne do filho do homem o bebais seu sangue, vós não tereis vida em vós" (João, VI, 53). O que quer que o filósofo ou o espiritualista possam

dizer sobre nossa existência corporal, nós temos fome quando não comemos, sede quando não há o. bastante para beber - esses são fatos concretos da experiência humana. Todos nós somos feitos de carne e sangue, e é nisso que a verdade do Zen vê a luz.

Por esse motivo, o mestre do Zen descreve-o como sendo um pote de óleo fervendo. Esta é a autêntica experiência de cada estudante do Zen, pois ele tem de mergulhar seus dedos nele, prová-lo na essência do seu coração. Novamente descreve-se o Zen como a vida de "sete jornadas e oito tombos" o que significa um estado de confusão indescritível; a idéia é que se alcança o Zen somente depois de atravessar uma série de crises mentais e espirituais. Aprender a verdade do Zen não é uma ginástica espiritual fácil. Tem-se de comer a própria carne e beber o próprio sangue.

A propósito desse comentário, acrescentarei algumas palavras. Quando se diz que a vida espiritual surge do fato de se comer a carne de Cristo e de beber seu sangue, isso pode soar grosseiramente materialista, mas, do ponto de vista do Zen, é um grande engano fazer distinção entre a mente e o corpo, e considerá-los irrevogavelmente diferenciados um do outro. Esse ponto de vista dualístico da realidade tem sido um grande bloco vacilante para o nosso

'Correto entendimento da verdade espiritual.

As observações seguintes podem ajudar o leitor a esclarecer o ponto de vista do Zen em relação a uma concepção advaitística [não-dualistica] da realidade.

        Quando perguntaram a Chosa, um disCípulo de Nansen (748-834): "O que é o Buda?" ele replicou: "Ele não é outro se não este corpo físico nosso." É significativo que Chosa tenha falado do corpo físico (rupakaya) que se identifica com o Buda, e não a mente, ou a alma, ou o espírito que popularmente apresentamos para identificação nesses casos. Não se associa, em geral, a condição do Buda à corporalidade; é algo um tanto à parte de nossa presença material que comumente relegamos a uma ordem mais baixa da existência. Chosa colocou seu dedo no ponto mais vulnerável do nosso racionalismo de senso comum. Um dos objetos do treinamento do Zen é esmagar a idéia dualística da mente e corpo. O mestre é enfático a esse respeito. O seguinte trecho é citado na Transmissão da Lâmpada (fasc. X) :

Não há aqui nenhum muro de obstrução que resista a seu modo de fazer,

Não há nenhum vácuo que permita livremente sua passagem:

Quando seu entendimento alcançar este ponto,

A mente e o corpo recuperam sua identidade primária própria.

A natureza do Buda manifesta-se de um modo muito conspícuo.

Somente aquele que se demora com a natureza é que não a vê:

Ao estarmos iluminados quanto à individualidade de todos os seres,

Que diferença há entre minha face e a face do Buda?

Alguém perguntou a Chosa: "Como podemos transformar a montanhas, rios e a grande terra, e reduzi-los em sua Individualidade?"

Retrucou o mestre: "Como transformar essa individualidade e fazer com que volte a ser montanhas, rios e a grande terra?"