Cunha e Silva Filho


                         No início de minha vida literária, quando os sonhos eram dourados e parecia que todos iriam dar certo, eu pensava ser a vida literária o melhor dos mundos possíveis.
                         No entanto, acordei, mais tarde, dos sonhos e dos entusiasmos juvenis. Hoje, penso diferente Piso mais em terra firme, deixo as ilusões para trás. Descobri, além do mais, outra coisa: a vida literária só nos interessa por certos ângulos. Entre estes mencionaria autores, temas, movimentos literários.. Descobri também como são diferentes os gostos, as preferências. Descobri ainda que, no que respeita a autores e a gêneros, somos impelidos a pensamentos contraditórios, a falar meias-verdades. Descobri, finalmente, que há uma grande cisão entre autores e suas obras. Ah, como são diferentes essas duas partes, e quão raro é o encontro harmonioso entre um caráter digno e uma obra digna!
                        A grande conclusão a que cheguei sobre a vida literária é que nela não medra em grande medida a amizade pura. Amiúde, sou obrigado a afirmar que a comunidade literária não prima pela simpatia mútua. Para muitos a literatura começa e termina em si mesmos. O narcisismo impera e impede, pois, que os membros dessa comunidade realizem a travessia para o outro. Cada escritor, a uma certa altura de sua vida, se torna um ilha humana cercada de pares sem távola redonda que, por sua vez, só cuidam dos seus interesse e de seu sucesso.
                      Um vez, um professor meu, em aula de literatura, deixou escapar essa confissão algo pessimista: -“ Estamos aqui porque gostamos do que fazemos e do que escolhemos, mas ninguém se importa com a literatura. Não somos nada fora dos muros da universidade. Veja , ao nosso lado, uma faculdade de engenharia. Que valor nos dariam seus cultores, tão diferentes de nosso objetivos, de nosso trabalho?
                     A vida literária não é nem nunca foi uma comunidade coesa, solidária. Por que, então, isso? Porque, no nosso meio, há vaidade, gerações diferentes, orientações diferentes, formações culturais e ideológicas diferentes. Isso tudo jamais conduzirá a cumplicidades vividas sob o signo da amizade e da sinceridade espiritual. 
                  O que existe, de fato, são grupos, subgrupos, que se encastelam e que pretendem sobrepor-se aos outros, seja conspirando entre si, seja procurando abafar as conquistas alheias, tentando silenciá-las pela inveja, pelo despeito, pelo isolamento, pela ocultação proposital, inimiga da cultura, obscurantista e parcial. Aquele mesmo professor que fez a observação acima referida, noutra ocasião, aproveitou para fazer este comentário: -“ Ah, eles, os intelectuais, têm os grupos deles, os seus admiradores, o seu cortejo de fãs; nós, de nossa parte, fazemos o nosso grupo, nos admiramos entre nós, e é dessa maneira a vida literária...”
                 A par de grupos e gerações que não se entendem por múltiplas razões, há ainda as antipatias individuais entre escritores. Os motivos delas são também muitos. Demos um exemplo do último. Há bons e até ótimos escritores, preparados, que têm uma obra respeitada – ninguém pode negar - de que não gostamos pelo caráter, pelas atitudes, pela prepotência, até mesmo pelo estilo de escrita. Sabemos que, por dever de ofício, devemos ler suas obras, mas a antipatia que nos causam é tamanha que o nosso subconsciente rejeita nossa aproximação com eles pelas suas obras. É terrível constatar isso, mas é um fato que acontece e acontece muito.Sei que o dever do ofício repugna essa nossa posição diante deles. Mas, somos mortais e, portanto, sujeitos a essas falhas
                 Essa situação já vivi e bem sei o quanto difícil é superá-la, se é que possamos fazê-lo na vida prática.
                Assim como, na vida social, há os inimigos cordiais, na vida literária os há igualmente. Em certa época da vida acadêmica da PUC-Rio de Janeiro, disputavam, pela hegemonia, dois grupos de alunos: os admiradores de Gilberto Mendonça Teles e os de Afonso Romano de Sant”Anna. Só não sei o que pensava a esse respeito  cada um desse dois escritores.
               Muitos erros de perspectiva de juízo critico se cometem na vida literária. Fulano é o melhor romancista, o melhor crítico, o melhor poeta, o melhor dramaturgo, o melhor cronista, o melhor historiador, etc., etc. Ora, isso não passa de uma falácia, de uma opinião meramente opinativa que carece de substância lógica. Não passa de puro subjetivismo e entusiasmo inconsistente, apressado e injusto. . “Tudo é relativo”, como naquela história dos esquimós das regiões geladas do Norte. Como se sabe, todos são homens de pequena estatura. Mas, havia, entre eles, um que era mais alto do que os outros e, por isso, era chamado de “gigante”. Essa diferença o colocava em posição privilegiada entre seu povo, a ponto de gabar-se que, sozinho,  poderia defender a todos. Um dia, porém, correu um boato que  um  barco de estrangeiros se aproximava da praia. Foi aí que os pequenos esquimós, com medo dos invasores, procuraram o “gigante”  para que fosse enfrentar, cara a cara, os estrangeiros. Quando estes vissem o gigante ” dos esquimós, iriam logo fugir em direção ao seu barco. Ora, ocorre que, quando os invasores , que eram noruegueses e negociantes, homens fortes e de quase dois metros de altura, mostraram-se para o pretenso “herói-gigante” esquimó, este não perdeu tempo, saiu correndo amedrontado...
              Conseguimos livrar-nos desses preconceitos, desses juízos, frutos mais de camaradagem e igrejinhas, exemplo típico de provincianismo? Provavelmente, não. Somos criaturas falhas, incompletas, contraditórias, sujeitas a afirmações ligeiras e, por serem ligeiras, injustas.